Em dezembro de 1999, há quase 20 anos, fui atordoado pela notícia da morte do poeta potiguar Black Out. Eu trabalhava na redação do extinto Diário de Natal e fui incumbido de registrar o fato. Resolvi escrever muito mais do que um mero obituário, ferido pelo drama de um artista massacrado pelo sistema e pelo preconceito do nosso mundo. Guardo esse escrito como algo que me veio da alma e que me serve como guia para entender a humanidade e rebuscar o meu humanismo.
Foto: Ivanizio Ramos
Eu sou um sonho
ou talvez um pensamento
jovem que gosta da vida
Eu vim pregar a prece
atual em poesia…
sem rimas e sem fantasias
Deixe-me dividir
para todos os dias
Sou um sonhador da paz
da fome
e da alegria.
E vocês são os sonhos
Um canto (meu reino)
um prazer que jamais será imitável…
(Black Out)
Morreu Edgar Borges, o Black Out, o poeta preto, pobre e considerado louco pela sociedade. Vivia andando pelas ruas do centro da cidade alta, carregando seus papéis e fumando seu cigarro Belmont, vestido em suas roupas exóticas. Tinha todos os atributos de um artista maldito e discriminado.
Até o fechamento desta edição do Diário de Natal, o corpo de Black Out continuava no necrotério do Hospital Walfredo Gurgel. Sem parentes próximos, corria o risco de ser sepultado como um indigente.
Morou quase toda sua vida em Mãe Luiza, bairro que amava e onde era conhecido por quase todos os populares. Desce cedo começou a escrever sua poesia de cunho social e político. É dele o texto de ‘Canto à Paz’, um dos mais contundentes escritos contra as ações bélicas do ser humano.
Publicou em 1981, se único livro, ‘Duas Cabeças’, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Natal – Coorjonat, contendo inúmeros fragmentos poéticos escritos naquele período.
O jornalista Franklin Jorge, em seu livro ‘Spleen de Natal’, lançado em outubro de 1996, dedica um capítulo inteiro ao poeta negro, relatando inclusive as perseguições e torturas que Black sofria da polícia. No livro, o próprio poeta narra um episódio:
“Hoje mesmo me aconteceu uma coisa chata: quando eu ia atravessar a Avenida Rio Branco, na esquina da João Pessoa, um PM, do outro lado da calçada, me chamou. Fui e ele me perguntou meu nome e se eu era daqui mesmo de Natal. Estava grilado com a minha produção. Achou minha roupa estranha e pediu meus documentos. Me revistou alí no meio da rua como se eu fosse um criminoso.”
Essa não foi a primeira humilhação sofrida por Black Out. Foi perseguido nas ruas como um animal perigoso e incômodo. Porém, nunca matou nem roubou. Mas era pobre e tinha a ousadia de vestir-se de acordo com os caprichos de sua imaginação. “É o meu traje a rigor que incomoda eles”, costumava dizer o poeta.
Black Out podia ser visto trajando um blazer ou uma roupa lilás, ou um paletó e calças cor de goiaba, camisa azul celeste, pulseiras prateadas em alto relevo que realmente chamavam bastante a atenção. Mas o poeta nunca se importou muito com os comentários pejorativos sobre o seu modo de se vestir. Além dos modos exóticos, Black era conhecido pelos galanteios às garotas que frequentavam a noite, sempre ofertando seus versos e seu sorriso.
“Se eu descesse o morro de sandálias, vestido como todo mundo, as pessoas iriam logo pensar que eu sou um marginal… Se eu desço vestido assim, bem produzido, elas ficam pensando pelo menos que eu sou um marginal diferente, sacou o lance?”
Black Out foi preso inúmeras vezes, em algumas foi acusado de portar drogas, outras por mera implicância policial com a excentricidade de suas roupas. Em muitas das vezes apanhou e foi obrigado a fazer coisas impublicáveis. “Esses massacres me levaram à loucura. Eles me davam coronhadas na cabeça, rindo. O sistema não queria me ver feliz”, dizia Edgar.
Tais experiências agravaram seus problemas psiquiátricos. A partir de 1981 começou a ser internado no Hospital Colônia, graças a ajuda do padre Sabino Gentille. Ficou internado quase um ano.
Filho de Severino Borges e Maria Felícia, pais separados, Black Out nasceu em Mãe Luíza. Ainda menino, vendia cocadas nas ruas da cidade e dormia nas praças.
O poeta percorreu desde então muitas residências, fazendo pequenos trabalhos para sobreviver e comprar suas vestimentas. Ao lado do saxofonista Paulo Johnson, participou do Festival de Música do SESC em 1979. Dois anos depois, incentivado pelo poeta Jarbas Martins, Inscreve-se no Laboratório de Criatividade da UFRN, criado pela professora Socorro Trindade.
A partir daí passou a conviver com a poesia de João Gualberto, Chico Traíra, Milton Siqueira, Osório Almeida, Volonté, João da Rua, Chico Ivan, Adriano de Sousa, Jóis Alberto, entre outros.
Dialético, Black questionava todos os paradoxos de um sistema desumano. Íntimo dos mistérios profanos da cidade, o poeta tinha como terapia andar. “Tem gente que fica arretada e pergunta como eu consigo estar em vários lugares ao mesmo tempo”, dizia.
Edgar Borges produzia e vendia seus poemas intuitivos cheios de delírios nonsense. Pintava quadros expressionistas sobre papelão. Também pintava letreiros comerciais para sobreviver. E foi pintando a parede de uma casa que morreu, em uma triste ironia com seu apelido.
Agora pergunto eu, que cheguei a conhece-lo um pouco:
“Quem vai chorar pelo poeta preto, pobre e tido como louco?”
O escritor Lívio Oliveira sempre gostou de literatura, e a poesia sempre esteve na sua vida. Quando menino costumava jogar xadrez e até chegou a ser prefeito-mirim de Natal, por um dia. Nascido no bairro do Alecrim, foi morar no Barro Vermelho, onde passou a infância e adolescência brincando pelas ruas, jogando bola, ouvindo rock, lendo Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira… e, claro, escrevendo, quando recebeu também o chamado para fazer Direito na UFRN.
Já adulto, estreou, pelo menos de forma pública, no jornal cultural “O Galo” de Natal, em junho de 1999, com três poemas: “A Cada Esquina”, “Náufrago” e “Culpa”. Em 2002, lança oficialmente seu primeiro livro de poemas com título muito feliz, “O Colecionador de Horas” (AS Editores, 2002). O livro tem um nível considerado bom para um poeta de estreia, enxuto, sem excessos, bem construído, sem hermetismos, o que desperta o gosto da leitura nos mais variados tipos de leitores, como por exemplo, no poema: DE CRIANÇA
Pulei
e, após o muro,
vi que meus companheiros…
eu já não os podia alcançar
Em seu segundo livro “Telha Crua” (Sebo Vermelho, 2005), fica evidente a marca de uma maturação poética, em relação à obra inicial; nele o autor passeia livremente por temas como as memórias, erotismo, amor, solidão e referências da infância, e cada vez mais ousando de experimentos poéticos em versos minimalistas. Ganhador dos dois principais prêmios de poesia do Rio Grande do Norte, “Prêmio Luís Carlos Guimarães” e “Prêmio Othoniel Menezes”, “Telha Crua” confirmou as habilidades artísticas com as palavras, do jovem autor.
Ainda nesse período Lívio Oliveira mostrou toda sua veia de pesquisador e ensaísta no livro “Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte” (Editora Sebo Vermelho, 2005). E em 2007, publica a interessante obra “Pena Mínima – Haikais & Poemas Curtos” (Edições Sebo Vermelho, 2007). O livro abre com prefácio de Nei Leandro de Castro, que resume um pouco da estrutura do que é um haikai e elogia bastante o estilo, a leveza e força verbal do poeta, que não tem medo de arriscar.
Em seu quarto livro, “Dança em Seda Nua” (Sela Azul, 2009), Lívio Oliveira inova, ao trazer para o público uma obra totalmente voltada para os elementos eróticos verbais. Destaque especial no livro são as ilustrações feitas por Dorian Gray Caldas, vários desenhos, que complementam visualmente o jogo sedutor dos versos. No mesmo período, Lívio estreia como letrista lançando, em parceria com Babal o Cd “Cineclube” que tem a participação de vários cantores como Khrystal, Valéria Oliveira e Geraldo Azevedo. Obra temática é uma homenagem ao universo cinematográfico, do qual o poeta é fã declarado.
Continuando a interagir com a poesia produzida no Brasil, nesse início de novo século, publicou, nos anos seguintes “Teorema da Feira” (Caravela Selo Cultural, 2012), “Resma” (Caravela Selo Cultural, 2014) e “`Cais Natalenses – 101 haicais de Lívio Oliveira” (8 Editora, 2014), obras bem recebidas pela crítica e pelo público.
Fica evidente ao longo dos últimos vinte anos a inquietação literária de Lívio Oliveira. Observa-se, nesse espaço de tempo, uma espécie de projeto poético em seu trabalho como literato, que começa, nos primeiros livros, com marcas de um jovem eu lírico; as lembranças de menino, as figuras, os personagens, os amores, os filmes, a descoberta do erotismo, seguindo pelo experimentalismo nos versos, seja em poemas curtos, haicais, e poemas em prosa e vai, até a simbólica e significativa afirmação do poeta maduro, firmado, com sua presença nas letras potiguares, já se tornando referência para uma novíssima geração que surge.
Tivemos a oportunidade, em 2013, de entrevistá-lo para o livro “Impressões Digitais – Escritores Potiguares Contemporâneos”, vol. 1, do qual destacamos o seguinte trecho:
“Alguém que crê no valor da arte e um cara que já acertou algumas vezes e se equivocou outras tantas, mas que sempre buscará o caminho mais acertado, ética e esteticamente. Aprendi a pedir desculpas pelos meus erros e agradecer pelo que recebo através da generosidade dos outros. Tento fazer o bem e nunca faço o mal de caso pensado. Mas todos incomodamos, em um momento ou outro. Faz parte da natureza humana, que conheço melhor, mas que ainda me traz enigmas. Confesso, ainda, que – antes de tudo – este escritor é alguém que se sente melhor como leitor, em meio ao colorido e os cheiros de uma boa biblioteca. Aceito e trabalho razoavelmente o mundo digital e as suas novidades, mas ainda amo apaixonadamente um bom livro posto sensualmente entre as mãos e com suas palavras impressas reluzindo diante dos olhos.”
Também escrevemos sobre a sua obra poética no livro “Os Grãos – Ensaios Sobre Literatura Potiguar Contemporânea” (Sarau das Letras, CJA Edições, 2016). Afirmamos, então:
“Trata-se de uma poesia que traduz o impasse entre romper com a tradição, e / ou posicionar-se como seguidora de procedimentos típicos das vanguardas ou de outros movimentos poéticos.
Todos os dilemas e virtudes da poesia potiguar contemporânea, que na verdade é poesia brasileira, poderiam ser resumidos no livro ‘Resma’. Lívio faz experimentações felizes num momento em que parece haver uma certa estagnação em determinados segmentos da poesia produzida aqui, quando alguns poetas têm caído na cilada de escrever mais do mesmo”.
Nascido em Natal, há exatos cinquenta anos, 16-08-1969, além de poeta, Lívio Oliveira é cronista, ensaísta, letrista, ativista cultural, ex-presidente da UBE/RN, escreve para jornais, revistas e sites culturais e atua profissionalmente como Procurador Federal, tendo atuado também durante muitos anos como professor universitário. É membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, além de outras instituições culturais.
Ao ler a notícia sobre as declarações do novo Ministro da Educação, sugerindo que os estudantes universitários deveriam limpar os corredores das universidades federais, separei um livro para ler, antes de começar a dividir meus estudos com a faxina recomendada por ele. Fiquei a pensar se o senhor ministro deve entender muito da problemática educacional brasileira ou talvez não saiba para que serve a educação.
Diante dessas notícias, preferi abrir a estante à procura de um bom livro, e eis que me surge de cara um certo João, não aquele “fabulista, fabuloso”, como disse Drummond, mas, um outro João nascido aqui, que também tem Andrade em seu nome. O natalense João Andrade, que produz sua poesia longe das grandes capitais.
Nascido no litoral do RN, João Andrade morou, certo tempo, ainda criança de calças curtas, no interior da Paraíba, e talvez seja esse um dos motivos de tantos espinhos em seus versos, metáforas à parte, pois aquela vivência foi um período rico para o menino João, sobretudo pelo contato com a poesia de cordel. Menino leitor, devorava tudo que via pela frente, quadrinhos, romances, que com certeza o influenciaram no seu processo de escrita iniciado ainda muito cedo.
Já crescido, João Andrade decide fazer faculdade de Letras na UFRN, evidente consequência natural do prazer de lidar com as palavras, e com certeza objetivando o aperfeiçoamento da sua escrita. E não deu outra, já bem moço deu sua contribuição, ainda que tímida, para o movimento da poesia marginal, que acontecia em Natal, e, em meados da década de 1980, João começava a participar de antologias literárias pelo país afora.
Nos anos seguintes, ocupou-se a dar aulas e paralelamente a produzir seus versos, participou de várias antologias, dentre elas, “Poetas Brasileiros de Hoje” (1987); “Novos Poetas do Rio Grande do Norte”, (1990); e “Poesia Circular”, (1996). Até que, decorridas algumas décadas, finalmente, em 2005, João Andrade surge com seu primeiro livro de poemas, “Por Sobre as Cabeças”, obra vencedora dos dois principais prêmios literários do Estado no ano de seu lançamento (Prêmio Câmara Cascudo e Prêmio Luís Carlos Guimarães). O título talvez contenha uma alusão à obra de Nietzsche “Assim Falou Zarastruta”, em que o famoso filósofo tenta pôr a cabeça por sobre os demais para conseguir descobrir aonde estaríamos indo. Ou pode nos remeter também até mesmo ao professor do John Keating, do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, em que o docente estimula os seus alunos a subirem nas cadeiras para verem a vida por outro ângulo.
Destacamos a seguir um poema do primeiro livro de João Andrade.
Andando por ermos caminhos,
quando sou eu mesmo,
estou mal acompanhado e sozinho.
“Por Sobre as Cabeças” é um livro que traz além da solidão e angústia de um eu lírico quase agonizando, uma certa perturbação psicológica. Boa parte do livro são poemas existenciais, muitos inclusive dialogando com dramas gregos, outros de natureza filosófica, todavia sempre num tom existencialista de cunho psicológico. A propósito, Antônio Cicero, no livro “Poesia e Filosofia” reflete que, principalmente na Antiguidade Clássica, os poetas transmitiam seus ensinamentos, seus pensamentos através de poemas. Para ele a questão não é saber se alguém pode ser poeta e filósofo, mas sim que um texto pode ser simultaneamente, uma contribuição original ao pensamento filosófico e um bom poema.
Não estamos afirmando que João Andrade é um filósofo no sentido literal da palavra, porém, recorrendo novamente ao mestre Antônio Cicero “o que faz algo ser chamado de poema é o seu grau de escritura: penso que um poema realizado é um objeto dotado de um altíssimo grau de escritura”.
Para Cicero os textos técnicos, científicos, dentre outros, têm tendência maior a cair no esquecimento, ou serem modificados constantemente como, por exemplo, os dicionários, e as enciclopédias, “se não quiserem caducar”, afirma o poeta. Por isso , segundo ele, os textos cognitivos ou práticos são descartáveis, ao contrário do texto literário, que admite ficção, ou seja, o valor dele não depende de ser verdadeiro ou falso, como um livro de história, que pode conter proposições falsas e perder seu valor com o tempo. O ensaísta afirma que só não são tão fluidos ou perecíveis os textos que têm valor documental ou artístico, isto é literário.
Depois da primeira experiência em livro, João Andrade publicou em 2010, “Cantigas de Mal dizer” (a palavra Maldizer, seccionada), livro de temática mais dolorosa, onde temos um eu lírico repleto de angústias, e fica clara a alusão ao trovadorismo, primeiro movimento literário da língua portuguesa, e sua cantigas reunidas nos cancioneiros. Uma das formas de cantigas satíricas eram as cantigas de maldizer, que tinham como principal característica a sátira e o duplo sentido. Alguma semelhança se faz sentir com “Cantigas de Amigo” de Myriam Coeli.
O segundo livro de João traz de alguma forma um pouco da psique dolorosa de Clarice Lispector, exposta, por exemplo, no romance “A Paixão Segundo GH”. Calma, caro leitor, não estou comparando João Andrade à genial Clarice, estou apenas tentando mostrar, que existem nos versos do poeta natalense e na obra da escritora, pontos em comum, algo que pode ser interpretado de várias formas e que depende do leitor para definição do seu significado: questões inquietantes, angustiantes e, ao mesmo tempo, intrigantes.
O poeta, consciente do seu papel como criador de um mundo fabulátorio, metadiscursivo, cria também pontos de contato com a realidade exterior ao seu poema. A respeito disso, assim falou o poeta Baudelaire: “Não creio que seja escandaloso considerar toda infração da moralidade, do moralmente belo, como uma espécie de ofensa contra o ritmo e a prosódia universais”. (Baudelaire apud Hambúrguer, 2007, pag.35).
É clara também, no livro de João Andrade, a presença de grandes nomes da poesia, num diálogo constante, Ferreira Gullar, por exemplo:
Metade de mim é metade
a outra metade também.
Uma metade não me cabe,
a outra não me cai bem.
(…)
Percebemos também em toda a obra poética de João Andrade, a influência de Cruz e Souza, de Florbela Espanca, Drummond, Manoel de Barros, Cecilia Meireles, Leminski, João Cabral, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa. Estão todos lá, nas entrelinhas, para um leitor mais apurado.
Entendemos que João Andrade é um dos poetas, da nova geração, digamos assim, que mais tem contribuído para a poesia produzida em solo potiguar, desmentindo a afirmação generalizada de que diferente da poesia feminina, a masculina não tem tanta força e tradição. O mesmo poderíamos dizer de bons poetas veteranos, como Jorge Fernandes, Deifilo Gurgel, Alex Nascimento, Demétrio Diniz…
O seu verso é uma espécie de grito, um discurso metafisico, que se abre para outros discursos, tornando a poesia dele universal e permanente. No entanto, reconhecemos que João Andrade, deve permanecer na nossa literatura, muito mais pelo conteúdo abordado, em suas poesias, do que pela própria forma, já que não traz novidade nesta área.
Em 2013, João Andrade ataca novamente, dessa vez com o “Livro de Palavra”, repleto de poemas, fazendo uma espécie de resumo de vários anos dedicados à poesia. Esta obra parece reunir, (no assunto) os livros anteriores de sua autoria, claro, com poemas novos, todavia quase sempre com a mesma temática antes abordada na maioria das vezes, nos demais trabalhos.
Outro ponto questionável é a enorme quantidade de poemas selecionados para um livro de poesia, quando o ideal seria fazer uma seleção de 40/50 poemas no máximo, uma boa média. Apesar dos pontos discutíveis, este é, sem dúvidas, o melhor e mais bem trabalhado livro de João Andrade, e demonstra certa maturidade poética em relação aos anteriores.
Evidentemente, a obra tem seus pontos fortes, como, por exemplo, no poema “Quando nasci”
Quando nasci, um anjo tísico,
desses que vivem das sobras,
apesar da tosse e dos pigarros,
disse em alto e bom som:
não serás nenhum drummond,
mas já que nasceste com a alma ferida,
vai, joão, ser poeta na vida.
Nesse poema é clara a referência ao “anjo torto” do “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade. O eu lírico reconhece suas limitações, mas segue sua sina de poeta, fazendo seus versos mesmo sem que haja um motivo especifico.
Tal poema, fez-me lembrar de um episódio acontecido conosco, em 2017. Ao dar aula numa escola da rede municipal de ensino, na periferia da capital, um aluno nos indagou, para que servia a poesia? Fui pego de surpresa pela pergunta tão peculiar a um aluno do subúrbio da capital, que ia para a escola apenas por obrigação imposta pelos pais. Quem me salvou nessa hora foi o poeta Manoel de Barros: “Todas as coisas cujos valores podem ser/disputados no cuspe à distância/servem para a poesia”. Ao menos a resposta foi poética.
João Andrade também é artista plástico, e recentemente lançou um livro de contos, “Contos de Escuridão e Rutilância” (esta última palavra nos parece excesso de preciosismo), mas isso já é assunto para outro artigo. Por enquanto, temos que nos dividir entre os deveres da rotina, estudos, trabalho, leituras, e brevemente, as faxinas sugeridas pelo Ministro da Educação.
É João, o tempo e a política brasileira, andam mexendo com a gente, sim. Mas vá, João, siga com seu verso, torto como faca, cortando sobretudo a carne dos sensíveis à poesia.
O sociólogo, literato e professor Antonio Candido afirmou no seu livro “Literatura e Sociedade”: “Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo distinto nos diferentes Estados”.
Ao mesmo tempo que nos alegramos, refletindo com a brilhante afirmação do mestre Candido, reconhecemos que, infelizmente, muitas vezes, essa constatação é ignorada, simplesmente pelo fato de estarmos distante dos grandes centros culturais do Brasil. Na maioria das vezes, nossos escritores são injustamente subestimados, sobretudo por residirem em um país com dimensões continentais, como o nosso.
Quando passamos um olhar pelas regiões periféricas do território nacional, vemos no Rio Grande do Norte, uma espécie de barreira intransponível, construída por um injusto pensamento provinciano, menosprezando o que é feito pelo seu povo, valorizando apenas o que vem de fora.
Enfim, refletimos sempre sobre essa questão, para tentar compreender porque determinados trabalhos literários, dos mais variados gêneros e autores, produzidos aqui no Estado, não conseguem ultrapassar a barreira cruel desse muro imaginário. Dentre inúmeros casos que já citamos, temos mais um: o livro de poemas “Pulsar” (Scortecci Editora, 2017) da escritora seridoense Valdenides Cabral.
Antes que o leitor faça qualquer julgamento precipitado, achando que o título pode parecer clichê, a palavra pulsar, empregada como denominação do livro, não significa apenas algo breve e repetido a intervalos regulares. Aqui o Pulsar está ligado às estrelas, as pequeninas estrelas, com seus pulsares excepcionalmente densos, resultados de explosões extraordinárias. E está provado em alguns dos versos do livro, que a real intenção da poeta é de expressar, simbolicamente, esse fenômeno.
Natural de São José do Sabugi (PB), Valdenides Cabral de Araújo Dias, foi criada em Parelhas (RN), e atualmente divide-se entre as cidade de Recife e Natal, todavia sempre visitando seu Seridó de nascença e criação. Poeta, escritora e professora, Valdenides Cabral faz parte da geração que traz consigo uma tradição literária, que vem das bandas do Seridó, desde Zila Mamede e José Bezerra Gomes, passando por Luís Carlos Guimarães, Nei Leandro de Castro, Moacy Cirne, Nivaldete Ferreira, e mais recentemente Humberto Hermenegildo de Araújo, Iara Maria Carvalho, Ana de Santana, Maria Maria Gomes, Theo Alves, Jeanne Araújo, Muyrakitan Kennedy Macedo, Wescley J. Gama, Antonio Fabiano, Luma Carvalho e vários outros valores.
Graduada em Letras (UFRN), com mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela UFPE, a escritora foi durante anos professora do Curso de Letras, da UFRN, no Centro Regional de Ensino Superior do Seridó. Valdenides Cabral tem vários livros organizados e publicados, dentre eles, “Pulsações”, (1999); “Poesia Menor”, (2009); “Pontos de Passagem”, (2011), “O Retórico Silêncio”, (2013), todos de poesia, e mais recentemente lançou “Pulsar” (2017). Atualmente é professora adjunta da UFRN, lecionando no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem.
Tendo lançado seu primeiro livro de poemas há exatos vinte anos, tornou-se uma autora bastante conhecida no nosso contexto literário. Suas obras já foram lidas por escritores e leitores das mais variadas formações, em diferentes situações de tempo e lugar. Arriscamos dizer algumas palavras, evidentemente sem o rigor analítico da crítica, mas apenas a opinião de um curioso leitor de poesia, tentando esclarecer a possíveis novos leitores sobre os bons versos que constituem “Pulsar”.
Vejamos o poema a seguir:
Eu
Uma náufraga,
salva
pela palavra
É lugar-comum dizer que a poeta diz muito com poucas palavras, sugerindo amplas possibilidades, numa poesia concisa, enxuta, como no referido poema. Diferente de uma possível vítima perdida no mar, o eu lírico talvez infeliz, decadente, foi salvo pela poesia, pela magia simbólica da escrita.
É de se ver que, cada poema do livro de Valdenides Cabral nos traz uma possibilidade de leitura, cabe ao leitor criar ou melhor recriar o sentido deles. Evidentemente, quanto maior for o seu universo de conhecimento literário, melhor e mais apurada será a sua leitura, e poderá notar várias alusões a poetas como Drummond, Fernando Pessoa, Manoel Bandeira etc., o que fica bem claro, em relação a este último no seguinte poema:
Uma outra estrela
Não quero ser a estrela da manhã.
Não. Não busco a estrela da manhã…
Busco uma estrela-bandeira
da vida inteira.
(…)
Se “Pulsar” está ligado de certa forma às estrelas, há em alguns dos seus poemas, evidentes alusões, não apenas à estrela de Bandeira, mas, também a Maiakovski, por exemplo, e seu famoso poema “Estrela”: “Escutai, pois! Se as estrelas se acendem é porque alguém precisa delas”, ou até mesmo a outra estrela de Bandeira: “Vi uma estrela tão alta/Vi uma estrela tão fria!
O lirismo expresso com clareza é uma grande marca da poesia de Valdenides, só alguns dos seus versos não são fáceis de decifrar, quase herméticos, logo da primeira vez, mas isto pode tornar a leitura ainda mais rica. Não há como negar que são poemas bem construídos e possuem certa musicalidade, que nos cativa. Encontramos também intenso lirismo em outros poemas de sua autoria como no “Acalanto ziliano”.
Passagens belíssimas, que enriquecem essa obra, resultam da vivência do eu lírico na cidade do Recife. Vários dos poemas são dedicados à capital pernambucana, demonstrando a interação da autora com a cidade: sentimentos, memória, amor, além de menção a lugares, rios, ruas, favelas, o mar. Destacamos abaixo o poema: Recife nº 6
Recife se decompondo
dentro de mim
com todo esse mar
por trás dos meus olhos.
(…)
Conseguindo chegar a um bom nível lírico, Valdenides nos transporta para a cidade mauricia através da sequência de poemas dedicados a Recife, nos faz viajar por Recife, como Alceu Valença em “Pelas Ruas que Andei” e, ao mesmo tempo, nos faz lembrar um escritor esquecido injustamente, na verdade ,cruelmente esquecido nesse pais de tempos tão estranhos, Gilberto Amado (1887-1969), memorialista dos mais eruditos da nossa literatura, um verdadeiro estilista da palavra, autor de “Minha Formação no Recife”, livro de memórias, engenhosa criação literária do autor sergipano, que estudou na tradicional Faculdade de Direito da capital pernambucana.
Além de poeta, Valdenides é grande leitora de poesia e dialoga muitas vezes com os poetas que leu, por exemplo, João Cabral de Melo Neto, que está lá, no “Pulsar” com seu “O Cão sem Plumas” ou “Poesia da Composição”, afora outros grandes nomes como Manuel de Barros e Zila Mamede, também presentes nas entrelinhas do texto para um leitor mais atento observar…
Evidentemente, se “Pulsar” não chega ao ápice da sofisticação linguística ou formal, atinge claramente o seu propósito, dentro do seu universo luminoso, pulsante, formado por símbolos, sons, ritmos e imagens.
Com este livro, Valdenides Cabral, afirma-se como poeta de valor, pelo zelo com a palavra, o cuidado com a temática e a busca pela universalização dos versos, e claro, merece destaque dentro da nossa tradição literária, que conta com poetas do porte de Anchella Monte, Rizolete Fernandes, Carmen Vasconcelos e Iracema Macedo.
Ainda vale exaltar a dedicação da professora Valdenides Cabral, para com a literatura produzida no Rio Grande do Norte. Sua luta, em prol das nossas letras, ajudou a formar toda uma geração, que, hoje, lê, divulga, produz e escreve sobre nossa produção literária.
No entanto, Valdenides ainda não recebeu o reconhecimento, que bem merece.
Em momentos tão sombrios, como os que vivemos atualmente, não custa nada perguntar, por que o menosprezo por tantos autores de valor? Infelizmente, isso acontece em países emergentes, como o Brasil, sobretudo na conjuntura atual, onde nós, alunos universitários teríamos que ir limpar o chão da universidade federal por sugestão do Ministro da Educação. Todos padecemos os males da incultura.
Reverenciado como um dos maiores estudiosos das manifestações culturais populares e tradições brasileiras, o mestre Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) também se aventurou na criação poética quando era um autor jovem, na década de 1920. Esta faceta pouco conhecida do historiador e etnógrafo, como autor e leitor de poesia que flertava com o Modernismo e as vanguardas dos anos 20, ganha destaque com o lançamento do livro “O Poeta Câmara Cascudo – Um Livro no Inferno da Biblioteca”, do escritor e gestor Dácio Galvão.
A publicação chega ao leitor através do Selo Fecomércio e será lançada no próximo dia 30 de maio, às 18h30, no Salão de eventos do Sesc Rio Branco, av. Rio Branco, 375, Cidade Alta.
“O Poeta Câmara Cascudo – Um Livro no Inferno da Biblioteca” traz encartado uma nova tiragem do álbum ‘Brouhaha’, com versos de Cascudo musicados por grandes nomes da MPB, além de posfácio do professor da USP e estudioso de Cascudo, Marcos Silva.
No livro, Dácio Galvão relaciona Cascudo com as vanguardas nacionais e internacionais da época e sua aproximação com o primeiro time do Modernismo. Aprofunda os laços do intelectual potiguar com Mário de Andrade, e se debruça em aspectos pouco esmiuçados em estudos anteriores, como a aproximação de Cascudo com Oswald de Andrade e sua admiração pela poesia do norte-americano Walt Whitman, de quem traduziu poemas.
Na curta produção poética cascudiana, Dácio analisa flertes com a poesia japonesa, o jazz e outras linguagens. E mais leituras que influenciaram poemas como “Não Gosto de Sertão Verde” e “Kakemono”, dentro outros. Também publica, pela primeira vez, os manuscritos dos poemas “1, 2 e 3”, “Não Gosto de Sertão Verde”, “Smimmy”. Entre as observações, revela o pioneirismo de Cascudo na experimentação no campo da poesia visual, antes de Jorge Fernandes — poeta potiguar que é referência modernista.
Vale lembrar que Cascudo não lançou livros de poemas, preferiu deixa-los ocultos de todos, exceto para os amigos Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira e Joaquim Inojosa com os quais se correspondia. Sobre isso, o livro aborda por que Cascudo interrompeu sua produção poética, voltando a escrever um último poema já nos anos 1950.
Consta que um dos motivos que tentam explicar a não publicação do livro foram as críticas feitas por Mário de Andrade aos quatro primeiros poemas produzidos por Cascudo, confirmadas nas correspondências entre Mário a Cascudo e publicadas na recente biografia de Mário de Andrade.
“…Um Livro no Inferno da Biblioteca” nasceu a partir da coletânea sonora “Brouhaha”, organizada por Dácio Galvão à época em que era curador do selo Nação Potiguar, em 2008. O disco põe os versos inéditos de Cascudo nas vozes e intervenções de diversos cantores, compositores e instrumentistas brasileiros. O trabalho “provocou” um mergulho mais aprofundado com uma tese de doutorado apresentada por Dácio, em 2012, que agora chega em formato de ensaio. O livro lançado próximo dia 30 traz anexo o CD Brouhaha: Câmara Cascudo Poeta e Leitor de Poesia.
na colina periférica da província
urros e guelras
se espalham
do Forte
na barra do dia que vem
uma barcaça berra
feito grito que acorda
o espanto por onde a boca do rio
pulsa
lá longe
onde daqui se tem maresia
a língua seca da cidade explode
cinza cintura senil
esborracho
e como um proscrito
velo a vela que voa
entre o cais e a canoa.
Não é mesmo flor
que se cheire, o cu.
Mas nem o fedor
não repele o cúpido
e contumaz beija-flor
quando emproa o curso
à busca do palor
apaziguado a cuspe.
Língua, dedos, verga
varam a fauce rugosa
e colhem, às cegas,
a flor sulfurosa
no buquê de merda.
No entanto, rosa.
o tempo passa
e eu me masturbo além do mar
vivo pra morrer de saudade
e todas as noites parecem pardas
quase incendiárias
com seus ocres e mel
escorridos pelas paredes das calçadas
Adoçam o céu
invertem as incertezas
desnuda vulcões
e trazem as erupções para dentro
do outro lado
Quase sempre a mesma calçada
na beira dessa casa em que ninguém se muda
Predadora
Vadia
De joelhos ou sentada
Faz média com todo mundo
– Você não presta!
Sisuda ou escancarada
Posa de santa, a bandida
Quer ser o holofote da festa.
Estava pensando em me tornar um leve e gracioso bailarino, que tivesse o peso de uma pluma em comum com seus movimentos cadenciados, como os do peixe voador, Ah! quem dera, sofrer por uma paixão irreal, imaginária como a fidelidade pura das gaivotas que voam e acasalam aos pares. Tropeço em tropeço, encontro pedras no caminhar sobre abismos transpostos e intransponíveis sobre o vale do amor derradeiro. Chegaria ao entardecer da próxima madrugada, furtivamente, feito um ladrão saltibanco, para roubar o beijo do primeiro olhar com um sorriso franco, escancarado, inconfesso e indecente. Perpetuar-se em um abraço feito de horas de uma ampulheta que não findam nunca. Retorcidas procuras na noite insone, ouve-se um acorde de violino de uma orquestra de cordas e só, marcando os passos do bailado arrítmico, solto como velas ao vento. Vale a pena juntar-se aos loucos em seus devaneios mais profundos, recriar a estória da história contando o milagre do amanhã distante. Quem sabe o contista mentiroso saiba todas verdades da cura de um mal ainda oculto? ou mente para proteger seus segredos? Aquém, muito aquém do infinito particular. acende a chama do eterno amor e o pretenso bailarino desiste de suas performances, ao constatar que o corpo refletido no espelho, tremula movimentos impróprios para seu desejo de ser pássaro migrante na tarde chuvosa de um outono frio e cinzento.
Diante do inevitável
vejo-te a chorar
lágrimas de dor.
O arfar do transitório .
Um choro aflitivo.
A ausência do amor.
E entre a vida e a morte
o interstício de lume.
De vagas quimeras em
decomposição.
Gira a terra,
“Que é plana”, dizem os “sábios” das esferas.
Se aqui tem Brumadinho, arrumadinho e Museu Nacional,
Notre-Dame pega fogo.
E Jesus, no desafogo, também tá na brincadeira:
Desce da cruz de mansinho
E sobe na goiabeira.
Enquanto a miséria cresce na terra de leite e mel,
O messias de Copacabana,
Tatibitate, forte, bacana,
Sai pisando no azeite.
E vai plantar oliveira/ na eleição de Israel.
O inventor da justiça deixa a toga na reserva,
Inventa um “novo” idioma, brinca de fazer lei,
-entre aplausos e suspiros-
Congeando a vaga aberta
Na caverna dos vampiros.
Na botija desenterrada
O novo Delfim se finda
E descobre que manda em nada.
Corre pra Nova York e ouve de ouvir dizer
Que por aqui, sem ser ouvido,
Houve estouro da manada.
Quem vai cair, não se sabe.
Só perguntando aos filhotes,
Pois no carteado da zorra
São eles que dão as cartas.
Tudo exposto e tuitado
Nas redes do vendaval.
Quem, de fora, assiste a tudo
Fica tonto e nem se espanta
Se isso é Semana Santa
Ou Terça de Carnaval.
(François Silvestre)
Aquilo parecia um sonho
Não imaginava nada igual
Algo que despertava uma magia
Tão colorida e tão surreal
Encontrei você
Parecendo lhe conhecer de algum lugar
Suficiente para fazer brotar em mim
Uma vontade espetacular
Queria muito conversar com você
Mas alguma coisa impedia
O meu mundo de cruzar o seu
E tornar real a nossa harmonia
Nossos olhos queriam se juntar
Sem conseguir superar a vontade
De descobrir quem somos nós
E nos entregarmos à mais intensa verdade
Enfim, tenho que ir embora
Mas acho que lhe conquistei
E mesmo no silêncio das nossas almas
A chama do amor eu sei que lhe despertei
apoio em minhas costas
metade da carcaça
toda fodida da baleia
e tomamos sol juntas
eu caminhando vestida de peixe
em direção ao fim da praia,
ao palco onde os pássaros descansam
no cair do dia
e o filhote dela exercendo um peso enorme
para dentro de mim
seus olhos caçando mamãe no oceano
seus olhos caçando mamãe,
caçando oceano
e depois caçando azul, medindo azul
que horas são, é baixamar
deslizar como desliza a comida na garganta
voltar voltar voltar voltar
caçando desesperadamente um pescador
que queira experimentar seus anzois
eu não, anzol eu não tenho,
digo ao abrir as pernas e devolver
o filhote ao mar
– Oi? Tenta! Tenta não sangrar.
Depois que o mundo virou
e seus dentes mostrou
como vais ignorar?
– Oi? Tenta! Tenta não gritar
essa dor miúda
que transpassa aguda
de fora a fora teu lar.
– Oi? Tenta! Tenta não te abalar
com os corpos-peneiras
aqui, ali, acolá.
Congelados na tela do celular
vulneráveis, sem eira nem beira,
espetados de medo, nosso lugar.
Quando arqueio as costas
vibro igual violino
e mesmo as amarras
mordaças e estacas
não me bastam.
A voz, a tua, arrepia
as porcelanas, os quadros
e estremeço
onde o corpo de contrai.
Meu horror é teu mandamento
consentido em meu corpo inteiro.
Se preciso eu uivo, sibilo
acendo tua vela, teu pavio, tua adaga
porque és armadilha de cilício
no meu ventre.
VALQUÍRIA
Tua alegria está rondando meus mistérios
Na penumbra em que estamos
Escuto teus passos docemente
Pisas sonhos escuros
Vences os fogos noturnos
E um pai te desafia com uma lança
Finjo que estou ferida, adormecida
Aguardo que ouses tocar-me e que me acordes
Para que eu possa cavalgar
Dentro da tua vida
A Olegária Siqueira
Manhã de rosas. Lá no etéreo manto,
O sol derrama lúcidos fulgores,
E eu vou cantando pela estrada, enquanto
Riem crianças e desabrocham flores.
Quero viver! Há quanto tempo, quanto!
Não venho ouvir na selva os trovadores!
Quero sentir este consolo santo
De quem, voltando à vida, esquece as dores.
Ouves, minh’alma? Que prazer no ninhos!
Como é suave a voz dos passarinhos
Neste tranqüilo e plácido deserto!
Ah! entre os risos da Natura em festa,
Entoa o hino da alegria honesta,
Canta o Te Deum, meu coração liberto!
Ai,flores de meu verde prado,
Fazei acordo comigo.
Que das manhas do amor sentido
Vistes vós o desalmado.
Ai, flores, procurai o amado,
Ao rouxinol perguntai.
Bem asinha logo aprazai
Tempo de estar ao meu lado.
Ai, flores de meu verde prado,
Tanta ausência jaz comigo
sem grito de esperança, ázigo
canto da amante e do amado.
Desse amor que descaminha
por quem só vivendo ama,
Ai, flores de verde rama,
triste sina estar sozinha.
A morte chega sob forma de asas,
às cinco e trinta da manhã no pátio desta casa.
Resta-me abraçá-la.
O dia luminoso aplaude o cortejo.
Eu e ela sombrias e felizes
aceitamos nosso destino:
sépia, secreto, inadiável.
Eu e ela, mães dos nossos ninhos,
revelamo-nos: dois antigos e livres pássaros.
Sozinhos.
O pânico que me escorre das mãos
não é outro
senão
o de ter que ancorar navios
no vazio.
Fez-se uma soma de sonhos:
pedaços enfileirados de coisas supérfluas,
não fundamentais aos demais dias.
Foi uma manhã desse modo como receituário botânico:
porções verdes: palhas brancas e azuis,
necessárias à cura.
Depois… tudo assentou-se
sobre os pontos dos bilros, e os marcadores do tempo,
ocuparam seus lugares de origem.
Aqui jaz o menino azul
Tragicamente morto
Num desastre de velocípede.
Quando publicou seus primeiros poemas no “Livro de Bolso” (Natal, edição do autor, 1980) João Batista de Morais Neto (João da Rua, como se assinou nos anos 80), talvez não tivesse uma real noção da sua relevante contribuição para a literatura produzida no Rio Grande do Norte.
Poeta dos mais atuantes na chamada geração mimeógrafo, João Batista estreou, na verdade, um ano antes, em 1979, numa obra coletiva denominada “Buraco de Muro”.
João Batista de Morais Neto nasceu em Natal, no início dos anos 60, e participou ativamente da cena cultural na capital, sobretudo entre os anos de 1970 e 1980. Colaborou como organizador do Festival de Artes de Natal. Nessa época participou de vários mimeógrafos como “Liquidação de Poema”, “Buraco no Muro”, “Vibrações Panfletárias”, além de colaborar em suplementos literários e culturais de vários Estados.
João da Rua. Acervo de Antônio Ronaldo
Para efeitos didáticos, explicamos que essa geração em que João Batista surgiu como poeta, ficou conhecida pela frequência com que os seus escritores recorriam ao mimeógrafo para reproduzirem seus textos. O método quase artesanal era um procedimento alternativo de criação, produção e distribuição do poema, que substituía os meios clássicos de circulação das obras, como editoras e livrarias.
Vendidos ou doados, de mão em mão, os trabalhos eram comercializados a um valor simbólico, na maioria das vezes restrito aos que frequentavam eventos relacionados com a própria cena cultural alternativa, apelidada também de marginal, conhecida dessa maneira por estar fora dos chamados cânones literários.
Evidentemente o movimento, que teve uma espécie de boom, no país, revelou importantes nomes como Paulo Leminski, Waly Salomão, Francisco Alvim, Torquato Neto e Chacal. No Rio Grande do Norte, pelo menos três importantes livros abordam a temática, “Geração Alternativa” de Jota Medeiros, “Poesia Submersa” de Alexandre Alves, e mais recentemente, “Delírio Urbano” de Afonso Martins e outros. Evidentemente, existem outros trabalhos e pesquisas na área.
Entretanto, é bom dizer que João Batista de Morais Neto, não se limitou apenas à experiência informal dessa fase, e deu um salto significativo em sua produção literária contribuindo de modo acentuado para nossa literatura, sobretudo ao publicar a novela “Temporada de Ingênuos”, em 1986, espécie de romance fragmentado, combinando aforismos, reflexões, prosa poética, dialogando com a literatura universal e fazendo uma espécie de balanço daquele período, antenado com o que acontecia no universo das artes. Tudo com um estilo moderno para a época, aqui na província, que via surgir seus primeiros espigões, como cantou Zila Mamede em seu famoso poema “Rua Trairí”.
Nos anos seguintes João Batista de Morais Neto continuou a contribuir com a nossa cultura publicando vários outros trabalhos como, por exemplo, “A Canção e o Absurdo Revisitados” (Natal: Edições Sebo Vermelho, 2001); “Revendo Itajubá” (Natal: Sebo Vermelho Edições, 2007); “Caetano Veloso e o Lugar Mestiço da Canção” (Natal: IFRN editora, 2009); “O Veneno do Silêncio” (Natal: Edições Sebo Vermelho, 2010), além de ser autor de dezenas de ensaios críticos e literários.
Graduado em Letras, João Batista fez mestrado na Universidade Federal da Bahia e doutorado em Estudos da Linguagem pela UFRN. Atua profissionalmente como Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no IFRN de Natal. Mais recentemente, lançou o livro de poemas “Bissexto” (Editora Gageiro Curió, 2018). O livro traz uma amostra, em dezesseis poemas, da sua recente produção artística.
Ao ler os versos de João Batista rememoramos o mestre Mário Quintana, que disse, certa vez: “Esquece todos os poemas que fizeste/Que cada poema seja o número um”. Compreendemos através dos versos do genial escritor gaúcho a sugestão de criar, de se surpreender, de se espantar com novos textos.
Rememoramos Quintana após termos lido “Bissexto” percebendo bem o amplo potencial de criação, o poder intrigante e transformador da poesia. Seja pela mobilização da fantasia, seja para aliviar uma dor, pelo simples prazer da leitura ou até mesmo para desvendar os homens, a poesia, nos deixa nus diante da existência; é uma arte essencial ao ser humano e, como tal, revela muito do que somos e como somos hoje e sempre.
Encontramos na leitura dos versos de João Batista de Morais Neto uma espécie de intimismo que está ligado ao fato de que, sendo este um dos principais atributos de sua experiência poética, traz consigo também uma tensão, que transparece em versos como, por exemplo no trecho seguinte:
Meu bem,
Sejamos sublimes
Não deixemos
Que nos invadam
As almas pequenas
(…)
Interessante compreender também, que “Bissexto” não se trata de uma obra de poesia de vanguarda, dessas que parecem receita de laboratório, mas é moderno, e ao mesmo tempo alcança certos efeitos linguísticos e estéticos, cuja análise pode ser aprofundada em estudos futuros.
O inconformismo com os moldes literários impostos pela “academia” e com a chamada “cultura oficial” brasileira, responsável por deixar à margem toda produção cultural que estiver fora dos padrões, foi a propulsão para escritores como João Batista, assaz criativos subverterem o lugar comum ao propor uma constante inovação poética, tudo sem “forçar a barra”, mas de maneira interessantíssima.
Em nossa compreensão, embora João Batista tenha nascido artisticamente e participado de forma ativa da geração mimeógrafo no Estado, sendo uma das suas principais figuras, atualmente ele ganhou um destaque maior, e justo, de poeta, escritor e pesquisador consciente de seu oficio e da sua produção.
O livro “Bissexto” inaugura a mais nova editora do Estado, Gageiro “Curió, do também poeta e livreiro Oreny Júnior, que faz com o titulo homenagem ao grande Newton Navarro e sua novela publicada em 1974, “De Como se Perdeu o Gajeiro Curió”.
Natural de São Vicente (RN), Wescley J. Gama reside há muitos anos na cidade de Currais Novos. Escritor e poeta, faz parte da geração que traz nos versos uma tradição literária seridoense que vem desde Zila Mamede e José Bezerra Gomes, passando por Luís Carlos Guimarães, Nei Leandro de Castro, Moacy Cirne, Nivaldete Ferreira, Humberto Hermenegildo, e mais recentemente Iara Maria Carvalho, Luma Carvalho, Ana de Santana, Maria Maria Gomes, Theo Alves, Jeanne Araújo, Muyrakitan Kennedy Macedo, Valdenides Cabral, dentre outros valores.
Vencedor de vários concursos literários neste início de novo milênio, Wescley J Gama é um dos administradores do Grupo Casarão de Poesia, ONG cultural que incentiva a leitura, a literatura e a música entre os jovens seridoenses.
Músico, compositor e militante cultural, além de escritor e poeta Wescley gravou três Cds, “Chuva, Estiagem, Água, Lampiões”. “Seridolendas”, e “Campos Grandes Reunidos” e publicou dois livros: “Com a Força das Folhas que Estiverem Vivas” (poesia) e, mais recentemente, “Nove Contos Serranos” (Editora OffSet, 2017).
De um artigo, que tivemos oportunidade de escrever sobre um livro de sua autoria, destacamos o seguinte trecho:
“Para o escritor Wescley J. Gama, em seu novo livro, ‘Com a Força das Folhas que Estiverem Vivas’, a poesia está diretamente relacionada ao seu chão de origem.
O local da sua vivência, fonte inesgotável de poemas, o Seridó, é cantado em versos: as lembranças dos dramas da seca, que agoniam periodicamente a região; o fruto, a água, o homem, os bichos, são intermináveis matérias para a poesia de Wescley. A partir de alguns dos seus poemas, conseguimos penetrar nas paisagens do interior do Estado, numa parte da sua história, com seus tipos humanos.
A poesia de Wescley cumpre a sua missão, que é representar fatos, coisas e pessoas de forma artística, servindo como registro de uma realidade, captando com sensibilidade a paisagem seridoense…”
Em sua estreia na ficção, o desempenho do autor não é diferente. A ideia de sertão é construída discursivamente ao longo das narrativas de Wescley, e todo esse pequeno/grande mundo ressurge em uma prosa intensamente poética, afirmando, sem dúvida, uma das principais referências literárias da cultura seridoense contemporânea.
A produção poética em Natal ganha mais uma nova compilação: a antologia Blackout. O lançamento ocorrerá próximo sábado, 3 de março, no Bardallos Comida & Arte (Rua Gonçalves Lêdo, 678, Cidade Alta), a partir das 19h. Além de um sarau poético, o evento contará com atrações musicais: Luan Bates, Binnê e Uma Senhora Limonada.
Reunindo 18 poetas da chamada “novíssima geração”, o projeto tem como objetivo a publicação de poetas ainda inéditos em livro, até a reunião dos textos, além de fazer um panorama fiel do que é produzido, em termos de poesia, na Natal de agora.
Ayrton Alves Badriyyah e Victor H Azevedo, ao longo de um ano, trabalharam na seleção dos nomes, na captação dos poemas e na produção artesanal do livro, em edição cartonera, com a finalidade de torná-lo mais acessível ao público.
A coletânea faz homenagem ao poeta Blackout, em ter seu nome no título, como forma de impulsionar a fuga do ícone da marginália natalense do ostracismo.
Ao longo de 144 páginas, poetas Murilo Zatu, Olga Hawes, José Zapíski, Ana Mendes, Ian Itajaí, Gabrielle Dal Molin, Caroline Santos, Maíra Dal’Maz, Igor Barboà, Maluz, Ionara Souza, Pedro Lucas, Folha Joice, Jota Mombaça, Gessyka Santos, Ayrton Alves Badriyyah, Victor H Azevedo e Fulô, escrevem sobre tudo, a partir da percepção oferecida ou dissolvida por essa cidade.
“Adeus: cinco letras que choram.” Esta foi a última frase do poeta Blackout para o livreiro Abimael Silva, em visita ao Sebo Vermelho, no Centro de Natal. Dois dias depois, a 14 de Dezembro de 1999, o poeta foi eletrocutado, ao fazer um ‘bico’ numa residência do seu bairro, e se encantava de vez deste mundo.
Blackout, pseudônimo de Edgar Borges, foi poeta, pintor de paredes e eletricista, radicado na cidade do Natal, no bairro de Mãe Luiza.
Sobrevivia de fazer ‘bicos’ e de trocar seus poemas por dinheiro ou refeições no café São Luis, no centro de Natal. Sua vida se dividia, muitas vezes, entre as ruas e as noites passadas no Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado, na capital potiguar. Durante o tempo que ficou internado, o psiquiatra Franklin Capistrano, que também se dedica à literatura, o diagnosticou com hebefrenia, uma perturbação psíquica que se desenvolve ao término da puberdade.
Lembrado por todos pelo seu estilo excêntrico de vestimenta, era perseguido pela polícia por ser pobre e, sobretudo, por ser negro. No entanto, esse racismo não era (é?) praticado apenas pela polícia, o que pode ser verificado na exclusão do poeta de importantes antologias e trabalhos acadêmicos sobre a produção poética no Rio Grande do Norte.
Infelizmente Blackout caiu no esquecimento e acabou se diluindo na memória dos natalenses, à la “memória do Brasil”, um poema visual de sua autoria.
Em 1981, aos 20 anos, publica pela Cooperativa dos Jornalistas de Natal (COOJORNAT), com a ajuda de amigos, seu primeiro e único livro intitulado “Duas Cabeças”, numa edição bem simples. Além disso, participou da antologia “Geração Alternativa”, organizada por J. Medeiros e, também, publicou alguns poemas dispersos em jornais locais, todos completamente inéditos em livros.
Informações sobre o poeta são de difícil acesso ou inexistentes.
E, para concluir, ninguém melhor do que o próprio poeta, para falar de sua própria vida. Abaixo segue uma pequena autobiografia presente no início do seu livro. Texto publicado pelos organizadores na Poesia Subterrânea:
“Nasci a 16 de outubro de 1961. E comecei a despertar meus sonhos quando criança porque na época passei por diversas condições. Indo estudar num Colégio Interno; este mesmo pertencia ao Governo do Estado.
Depois fui encaminhado para o Ginásio Agrícola de Currais Novos, onde tive o prazer de conhecer mais de perto, todas as barras que passam um ser humana para conseguir sua identidade.
Andei bastante para alcançar este cálice e aqui confesso o pouco que aprendi está aqui nestas páginas cansadas e de tantas lutas, onde a cada dia procuro a finalidade de um EU.
Agora faço uma pequena pausa para agradecer todas as pessoas que fazem parte desta mesma maratona. Incentivo abertamente… persista que jamais será vencido por outras palavras.”
O mossoroense Vicente Vitoriano é um dos mais reconhecidos críticos de arte do Estado potiguar. Arquiteto pela UFRN, especialista em ensino de arte pela UFPB, IFPA, IFRN/UFRN (quando ETFRN), e mestre e doutor em educação pela UFRN. É também pesquisador da história da arte e do ensino de arte no RN. Publicou “Os vértices do triângulo” (FJA, 1985) e “A falsa simetria” (Sebo Vermelho, 2002). Artista plástico, crítico e professor de arte, segue abaixo a vertente poeta de Vicente Vitoriano, nosso POETA DA SEMANA.
—————
Para Luiz Virgílio
Noite adentro
madrugada a fora
nas ruas ácidas mossoroenses.
Minguantes minguando vazios de vazios
no cinza verde quase das algarobas.
Os amigos também sombrios
jaziam sob o asfalto novo
cobrindo futuros.
O poeta sozinho
partia para aonde
em trens inexistentes.
—————
Abro meu olho para o sonho e o sonho se acoberta
Canto para o sonho e meu olho desperta
O mundo me olha
sou o sonho do mundo
Minha forma é o mundo
—————
Tenho preguiça de respirar
preguiça de ter preguiça.
Espreguiçar-se na espreguiçadeira
e olhar de lado para a natureza.
A preguiça mata
mas eu tenho preguiça de morrer.
Ela é mãe da pobreza
e eu sou rico só de preguiça.
Tenho preguiça de amanhecer
preguiça de estar.
Uso a preguiça como cobertor
e tenho preguiça de sonhar.
—————
quando as balas raspam
quando as caras mascaram-se
quando a música para
a poesia cala
ou fala trôpega
dúbia
com seus pés quebrados
—————
na precariedade do ninho
três mínimos passarinhozinhos
tão menores que seus pais passarinhos
já tão pequenininhos
—————
O esboço é obra
mas a obra é baça
Falsa premissa
no ar de cachaça
O escorço engana
o olho indigno
Inútil órgão
no mar de colírio
A linha é firme
mas o traço falha
A forma some
no fogo de palha
A cor desbota
a luz se apaga
Jaz o artista
na terra amarga
Leonam Cunha é areia-branquense, do olho do elefante erre-ene. Vive em Salamanca, é advogado, formado pela UFRN, e publicou três livros de poesia: Gênese (2012), Dissonante (2014), e Condutor de Tempestades (2016).
Leonam Cunha é nosso POETA DA SEMANA
—————
Levo comigo só o que foi bom e só o que foi ruim e tudo aquilo que é além de bom e ruim. Porque nosso atar de corpos possui tudo carrapicho vela flores cornetas cometas passos escuros dentro do iluminado vento oeste cartas e espermas sobre a mesa distribuídos entre as taças de cristal os pratos de porcelana e minha vontade de fazê-los em cacos. Tudo difere dentro de mim. Nesgas de solidão te despontam no meio do sexo e eu as espalho para sorvê-las com o hálito. Tua glande rosada é oráculo é objeto que nos toma de pronto é bomba de hidrogênio é como fumar haxixe em Lisboa é limão siciliano de que se serve o grosso sumo para dourar a ceia. Esse diastema também me destrambelha ao convite de conduzir minha saliva dura para as bordas do teu esmalte, para o cozimento de teus lábios, para a disritimia do teu miocárdio. Tuas décadas a frente são tempero, tu bem o sabes que são tempero para minha alma tão jovem e que sempre longe se despenteia, se revela, se mata, se deixa ser resto de comida entregue à rede sanitária. O pau esta flâmula esse interstício para as bobagens e o afundar-se esta senha para abrir o portão de casa para fazer adormecer o estremecimento do meu corpo-diálogo corpo-pedra-bruta corpo-mamulengo osso que se distorce ao sol. Quando penso na penugem
penso imediatamente na infância
na serralheria do meu avô
e me remeto sempre à posição inveterada
de vadia que mesmo expulsa cantarola sambas-enredo
Não consigo ver imagens do Pão de Açúcar sem um tremor a mais.
Sem uma saudade inconstante mas sempre acidificada.
Me entrego à primeira nuvem
que destrone tua paralisia
teu colo gordo
tua retidão
teu caráter
para cair sobre ti para de novo
propormos céus e infernos
num ritual de destumbamento
num ritual de arrebatamento
como se os astecas tivessem dado a certeza
de que o mundo se explodirá em luzes e fogo
no segundo seguinte.
—————
A mulher chorosa come maçãs
como mastigasse pedaços de céu.
Os meninos deslocados de abismo
sabotam os sistemas sem o saber
e isso encanta
A fome de prédios não eleva os monturos
dos seres humanos
e eles seguem de nariz duro apontando
toda forma inusual de vida
como insegurança ou pobreza –
quando na verdade é o oposto
Toda manhã os ratos descobrem buracos,
enquanto os relógios derretem e
o lixo aparece dentro do olho aristocrático;
é dessa forma que o horizonte se amplia.
—————
Não durmo mais sozinho.
Ao meu lado, em minha cama,
descansa uma onça no sempre.
Ela me revela os costados mais altos,
de onde se beija a cidade
sem que ela doa.
Sem que os lírios amarguem o tato,
sem que a lua enrijeça o fôlego.
Minha onça vez ou outra
fica a guardar-se dentro das páginas
das filosofias que bebi
sem conhecer das outras utilidades do coador de café
Minha onça aponta a lança
dentro do breu,
repovoa-me de silêncios.
É quando posso sentir o hálito
do medo baforando-me a lembrança.
Num sopro de alcatrão,
e a onça me seduz
Aprender a dormir com a onça
é saber-se pobre mortal manso
e que, contudo, a onça respeita
a distância que há entre eu e ela,
o espaço ao qual nos encolhemos
A onça tolera meu translado
– fumar a louça lavar cigarros enxugar poemas escrever a pele –
e só me visita depois do desaparecimento solar.
Faz-se, mesmo longínqua, perene,
para que eu a acolha costurada à lembrança turva
Minha onça atende pelo apelido de morte.
—————
O homem
preso tem 3 décadas
na Avenida Brasil
come uma borracha acidente nuclear
(com Césio-137 sofreu Goiás)
matuta que quando
deitar-se na poltrona
sentirá o bigode cheirando à mostarda
A criança constrói
um castelo de peças plásticas
monárquica brinca e desinventa
então põe toda a arquitetura
do brinquedo ao chão para montar
de novo o mesmo castelo
A presidenta da república
imagina que vida triste ela
levaria caso fosse presidenta da república
O senhor do alto
de sua varanda branca
fuma um cachimbo
rega a morte já no décimo
andar do prédio
: qualquer passo e viver se faz pior
qualquer anoitecer faz
da morte amiga fácil
A dama de véu
de dentes arranhando o altar
faz dos beiços motivo de ligeireza
deus, mulher
não tem headphones
O adolescente sobe e desce
os quinze lances de escada
(parece viver em Tóquio)
todos os dias sobe e desce
subirá e descerá aqueles degraus
até comprarem mármore do último dia
e a moça da farmácia lembrar
de uma vez por todas
que ele é tuberculoso e não poeta
– Nós continuamos a saga, Oswald,
a saga de ficar de olhos abertos
e bruços sobre a civilização do tédio.
—————
Vi a tristeza de Madame Cézanne
cerrada sob um olhar vago de
quase morte.
Vi os tons de Monet que especulam tanto sobre a luz dessa cidade
que ora apreendo ora me escapa.
La realité française não dorme
sobre os braços do homem que toca clarinete
nem no balanço do patinador reverenciado
pelos turistas bobocas.
Está na ponta de cigarro jogada
no Rio Sena, na merda espalhada
pelo chão dos mendigos.
Vi os pontinhos de Seurat,
a peripécia no olhar de Rimbaud e Verlaine,
por onde se encaram os esconderijos
dos quartos quase sem abajur.
Vi a noite de Van Gogh
e saquei uma fotografia a que chamei
“Portrait of a portrait”
com o chinesinho de 15 anos a capturar
o azul do quadro sem saber de onde vem o azul.
Da melancolia, sugere ele e dá de ombros.
Ele foi-se justo no momento que eu quis dizer:
– O azul vem da distância.
João da Mata Costa (Damata Costa) é doutor em Física e professor da UFRN. Bibliófilo, escritor e poeta, escreve em jornais, revistas e blogs da capital há bastante tempo. É colunista do Substantivo Plural desde o seu início. No facebook mantém as páginas Quixote com Rosas e seu perfil pessoal para divulgar suas publicações. Tem poemas publicados no Livro “Sangria e outros poemas”, provenientes do Concurso Literário Américo de Oliveira Costa, além de outras publicações. Colecionador e amante das artes, estudioso de Camões, Joyce, Cervantes e da Cultura Popular, comemora desde 2002 o Dia Mundial do Livro e o Dia de Camões.
João da Mata é nosso POETA DA SEMANA!
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A Língua é nossa identidade
A Língua é a alegria dos homens
A nossa também é feita de suspiros
Arrastando luxúria e dizendo loas e palavrões
Fala um dos mais belos idiomas e diz saudades
Peregrina, carrega consigo a voz de três raças tristes.
Juntando a todos nos no mesmo tronco do ão.
Carregando a poesia de todos os desejos
A melancolia que teima em não deixar
E a exaltação com que toca o nosso céu.
—————
Cercas do meu sertão só
Pedras do meu Caicó arCAICO
pedras que cercam solidões
e casarões de duas águas.
Cercas do meu ser tão encurralado
Cercas de pedras e paus
Isolando as chapadas sertanejas
Cercas de Avelós marcando paisagens
Cercas de Cama com armação em arcos
No meu do caminho uma cerca
De ramada
De pau -a- pique
De enchimento
De pau em pé
Com passagem, passo ou passador
Se as pedras dividem – o coração
ajunta – o que o tempo esconde
nas dobras da grande civilização.
Sertaneja.
a Moacy Cirne
Homem galego do Seridó
Num eterno processo
O poema
Moxotó, camará a catingueira
Sustentam a vida
Ele foi muitos amores
Um tricolor apaixonado pelo cinema
Estudioso do quadrinho
Poeta
No seu balaio porreta cabia o mundo
Odor de zimbro e chumbo
Meu sertão caritó
Pediu para ser enterrado no seu Caicó amado
Onde aprendeu a gostar de cinema
Caicó e Jardim do Seridó
De homens-ferros,
Cachimbos, galegos
Judeus e Portugueses
O papa para alguns
De chinela cavalgou mundos
A doença suspende a vida – letargia -morte
Não, encantamento !
Moacy está bem vivo em nossos corações e artes
Milton seu irmão
Fátima Arruda sua ultima companheira
AMIGOS
Meus sentimentos
Vivendo estamos doendo
Morrendo estamos partindo para o reino de Hades
Não há fim para essa lembrança.
Engenho torto
Açúcar o sangue
Chouriço espécie
O sol a carne
Queijo de coalho e linguiça
Saudades querido Moa
Sefus gões
Quadrivium
Guerra – o Padre Nosso
E Sant´ana a nos ensinar.
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De minha Janela
Vejo as dunas
E sinto o mar
Toda tarde uma pintura no céu
Visto da minha janela
O big jump flutua e
O passarinho voa saindo do chão
A noite vem e forma uma aquarela drapejada
A noiva do céu segue o ser cortejo e reina por entre estrelas
Da concha celeste.
Um bouquet é jogado.
Na praia um tapete prateado.
Pescadores atiram a rede
No oceano virtual da net.
Sim, eu disse sim te espero às quatro
De uma tarde onde tudo acontece
Leio as horas de um tempo cuco.
O corpo diz sim amar o mar.
Um dia todos os dias de um poema
Nunca terminado: vozes, sons e risos
Se encrespam em outros monólogos
Chega à noite e tento te abraçar.
A tarde gris de um roteiro lentamente
Suspirado sem ponto final e declamação
A vida é o durante
Respiro, suspiro e morte
Tudo acontece antes do anoitecer.
São quatros horas da tarde.
E espero…
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