Nascido e criado em pleno sertão, François Silvestre de Alencar (1947) teve a sua formação nas cidades de Martins, Caicó e Natal. Depois aventurou-se por São Paulo, onde atuou como jornalista em alguns órgãos de imprensa da capital.
Jovem cheio de ideias, empolgado com o marxismo, tornou-se militante do PCR, vindo a sofrer na própria pele a repressão da ditadura militar pós-1964.
De volta a Natal, ingressou na Faculdade de Direito, mas teve dificuldade em concluir o curso, porque, de vez em quando, passava uns tempos na cadeia, acusado de subversão. Finalmente, obteve o tão sonhado diploma de bacharel, mas não seguiu, desde logo, a carreira jurídica; preferiu enveredar, novamente, pelo jornalismo.
Após uma experiência mal sucedida na política partidária, logrou aprovação em concurso público para Procurador do Estado (RN), cargo que passou a exercer.
No Governo Wilma de Faria foi nomeado presidente da Fundação José Augusto, entidade responsável pela política cultural do Estado, à frente da qual realizou importantes programas de difusão cultural, como, por exemplo, casas de cultura em várias cidades do interior.
François Silvestre de Alencar estreou nas letras com um livro de poemas, acentuadamente neorromântico, “Luz da Noite ao Vento Norte” (1979). Em seguida publicou “Rio de Sangue” (1981), contos, e “Dormentes -a Serra da Festa Encantada” (1983), novela em que a narrativa sobre utópica terra é intercalada com histórias que exploram o humor e o pitoresco de tipos sertanejos.
“Rio de Sangue” tem altos e baixos, revelando, no entanto, potencialidades de autêntico ficcionista. Os melhores momentos, justamente, são relatos da militância política do autor, na clandestinidade, e suas memórias do cárcere.
Em 2002, François Silvestre surge com nova obra de ficção, “A Pátria não é Ninguém” (Natal: A.S. Editores). Mais uma vez ele se vale da memória, recriando-a, e amplia aquelas suas experiências das histórias curtas. E nos dá – fruto maduro – uma das melhores crônicas sobre os anos de chumbo. Embora julgando-a simples narrativa, construiu um romance, um verdadeiro romance, com todos os atributos próprios do gênero.
Essa obra, no meu modesto entender, afigura-se relevante pelo caráter de documento – painel das trevas -, mas, principalmente pelos aspectos formais, reveladores de um artesão da palavra, no pleno domínio dos instrumentos do seu ofício.
A ação romanesca desenvolve-se em três planos distintos, sem preocupações quanto ao ordenamento cronológico: 1) Os horrores da era Médici; 2) a distensão “lenta, gradual e segura”. vale dizer, a ditadura agonizante; 3 ) a infância sertaneja do narrador no sertão pernambucano. Pedaços, aparentemente desconexos, formam um todo de perfeita unidade temática e formal.
Ao contrário do que se possa pensar, esse romance nada tem de panfletário. É testemunho e denúncia. Mas, antes de tudo, é uma obra de arte admirável. Das melhores surgidas, nas últimas décadas, nesta terra de Poti.
O segundo romance do autor, “Remanso da Piracema”. (Natal: Casa. de Bakunin, 2009) veio confirmar a desenvoltura e a segurança com que ele explora esse campo mais largo da ficção.
Já tive oportunidade de dizer quanto me agradou a leitura desse livro, mas, não custa nada reafirmar que me encheu as medidas.
Para mim, a literatura, enquanto arte da palavra, seja ficção, seja poesia, tem de dar prazer. Notem bem: não digo “divertir”, mas “dar prazer”, e talvez estas palavras sejam insuficientes para expressar o que quero dizer. Seria “encantamento” o termo adequado?
Li “Remanso da Piracema” de um fôlego, encantado com as peripécias do seu grande personagem, e com tudo que lhe acontece: fatos, cenários, tipos humanos, costumes e tradições da nossa terra.
Frederico é o anti-herói por excelência. Irreverente, cáustico, não poupa ninguém, nem mesmo o lendário Frei Damião. Mas – ironia da vida – termina cooptado, feito pastor de uma seita protestante, que funda, juntamente com outros espertalhões, para ganhar dinheiro. Macunaimamente.
As alusões que ele faz, com muito senso de humor, a personagens reais – umas disfarçadas, outras, não – temperam a narrativa com pimenta malagueta, e certamente irão servir de motivação extra para muitos leitores… Tais ingredientes acentuam o sabor picaresco, que já se delineara na estrutura narrativa desde o início. Neste sentido, aliás, revelam-se pontos de afinidade com “As Pelejas de Ojuara”, de Nei Leandro de Castro, e outros romances brasileiros contemporâneos de cunho picaresco, como, por exemplo, alguns da segunda fase de Jorge Amado.
A linguagem que o autor utiliza, valorizando o linguajar nordestino, sem afetações, por vezes incursionando pela poesia em prosa, flui com espontaneidade e clareza.
Aspecto digno de nota: a inserção de pequenos contos ao longo da narrativa, sem que esta perca o fio condutor. Graciliano Ramos fez algo semelhante, porém de modo mais definido, em “Vidas Secas”. Alguns críticos literários falaram em “romance desmontável”.
François Silvestre de Alencar é um contador de histórias. Como Érico Verísssirno, por exemplo. Este seu dom está bem presente em obras anteriores – “Rio de Sangue”,”Dormentes – a Serra da Festa Encantada”, “O Mel de Benquerê” e, principalmente, “A Pátria não é Ninguém”.
Por falar neste romance, que lhe deu posição de destaque entre os nossos ficcionistas: muitos leitores hão de querer compará-lo com o “Remanso da Piracema” . Comparação inútil, ao meu ver, pois um não é melhor ou pior que o outro. Vale a pena citar aqui um velho provérbio espanhol, que Luís da Câmara Cascudo adotou como epígrafe num dos seus livros: “Não é melhor nem pior, é outra coisa.”
“A Pátria não é Ninguém” constitui-se numa das melhores obras de ficção já escritas sobre os anos de chumbo. Testemunho e denúncia, como já tive oportunidade de dizer. “Remanso da Piracema”, com o seu viés anarquista, aparentando ser mais leve e divertido, vale, na verdade, por uma futucada (o termo é bem este) na sociedade burguesa. De resto, a destacar o seu lado memorial, ou seja, o aproveitamento da memória-experiências do autor – como parte da matéria-prima ficcional.
Vivenciando uma fase de grande operosidade, François Silvestre retornou à ficção com a novela. “Esmeralda – Crime no Santuário do Lima” (Natal: Casa de Bakunín ,2010), que narra uma história de crime e paixão, com o foco numa bela cigana, cujo nome remete à personagem principal do romance “O Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo.
Objeto do desejo de três admiradores, Esmeralda termina sendo assassinada por ocasião de um evento festivo no Santuário da Serra do Lima, onde ela vivia como uma espécie de agregada ao pessoal de serviço.
Na primeira parte da obra, o autor, após historiar as origens da cigana, num clima rocambolesco, detém-se a descrever os três cortejadores, lançando suspeitas sobre eles e outros personagens, inclusive um padre pedófilo.
Mas, a parte mais interessante, mesmo, é a segunda, com a narrativa das investigações sobre o crime: o inquérito policial que não acerta coisa alguma e as diligências de um desastrado detetive particular, figura cômica, impagável, que, afinal, consegue descobrir o matador de Esmeralda.
Como se vê, trata-se de uma novela policial, modalidade em que a literatura do nosso Estado é muito pobre. Leitura deliciosa, capaz de prender o leitor em sua malha, que nem os folhetins de antigamente. Aliás, muito de folhetinesco há nesta novela, da primeira à última página.
Os personagens, quase sempre pessoas do povo do Médio Oeste Potiguar – Patu e arredores – estão bem construídos, vivem na prosa sugestiva de François Silvestre. Só tenho um reparo: ao caracterizar a personagem central, Esmeralda, o autor poderia ter realçado os encantos da mulher bonita e esquiva. Tudo mais nos conformes.
Eu me pergunto por que um livro, como este, não se tornou best-seller a nível nacional; ficou, como tantos outros, emparedado na província. Uma província que não sabe prestigiar os seus valores culturais.
Como toda crítica, o texto contém alguns spoilers. Nada demais para o que vem a ser, talvez, a melhor
das três temporadas da série Demolidor. Ou pelo menos a mais densa do ponto de vista psicológico e religioso, sem deixar as cenas de quebrapau de lado.
Por essência, o advogado Matt Murdock, o Demolidor, é mentalmente perturbado pelo abandono durante a infância e adolescência. Isso ficou claro nas duas temporadas iniciais, mas nesta última, com 13
capítulos disponíveis na Netlix desde sábado, ganhou intensidade.
Matt parece cansado e confuso sobre seu papel de justiceiro. A todo instante se martiriza sobre perdas de pessoas próximas e se isola com medo dos amigos Foggy e Karen também sofrerem o mesmo destino. Parece querer fugir da sua essência e, de fato, em nenhum episódio ele veste a farda do Demolidor.
Na tentativa de reencontrar seu eu, ele se refugia no orfanato onde viveu sua infância. Enquanto isso, o Rei do Crime, Wilson Fisk arquiteta seu plano dominante com ajuda de um galado especialista em foder os outros por tabela, que viria a ser o Mercenário e durante boa parte da temporada, ele comanda geral.
A aflição do espectador perdura bastante com esse crescimento vertiginoso do poder de Fisk. O Demolidor apanha mais que sovaco de aleijado nessa temporada. Talvez pela confusão mental que lhe perturba, talvez pela falta do traje que alivia as pancadas. Por vezes me lembrou Logan, o derradeiro filme de Wolverine. E não só pelo tom um pouco mais decadente do herói, mas pela dramatização da série. Um drama com heróis e não o inverso.
E os dramas, muitas vezes provocados pela linha tênue que separa o bem e o mal, afligem também outros personagens, como a agora “jornalista” Karen Page, o agente Ray ou o “falso Demolidor” e grande vilão da nova temporada, Dex. Alguns capítulos, inclusive, pouco se vê ação; alguns até com participação bem reduzida do protagonista, o que, penso, ser um dos poucos defeitos.
Embora o personagem Dex, interpretado por Wilson Bethel tenha sido construído como o grande antagonista desta temporada, é impressionante o impacto do Wilson Fisk de Vicent D’Onofrio. Não só pelo trabalho majestoso de interpretação, com todos aqueles trejeitos de um ser frio e calculista, mas pela identificação com cenários políticos atuais mundo afora, de compra de subornos a instituições de poder e de manipulação da mídia. Muito disso visto em séries baseadas em fatos, como Narcos.
E diante deste cenário, a quem recorrer, se a Justiça está comprada, se a polícia foi subornada e a mídia distorce os fatos? A um super-herói cheio de conflitos internos? Aos heróis da realidade, como uns poucos advogados, jornalistas e agentes de polícia idôneos? O que sei é que a Marvel se salvou mais uma vez com esta terceira temporada de Demolidor.
Mestre Deífilo com a romanceira Militana Salustino, e eu, aprendendo tudo. FOTO: D’Luca
Não poderia deixar passar o aniversário de nascimento do mestre Deífilo sem a republicação desta grata entrevista que fiz com ele meses antes de sua morte, em 6 de fevereiro de 2012. Talvez a entrevista mais completa que fiz com ele. Mas o encontro que mais gosto se deu em abril de 2009, quando o pegamos em casa, no carro do Diário de Natal, para visitarmos dona Militana, romanceira descoberta por Deífilo e que ainda residia num oiteiro em São Gonçalo do Amarante. Mas a amizade com seu neto, Felipe, que morava vizinho à sua residência no Tirol, me levava sempre ao encontro dele. E foram momentos ímpares que guardo nos porões da alma com muito carinho, como foi também meu único encontro com Oswaldo Lamartine. Algum tempo depois dessa entrevista, ainda fiz outra, filmada, para um documentário sobre sua vida que nunca saiu. Talvez tenha sido a derradeira antes de seu descanso.
A brisa areiabranquense moldou a personalidade infantil de Deífilo Gurgel. Mas brotou dos serrotes verdejantes de Caraúbas o alumbramento poético adolescente. A sensação de vislumbre diante daquelas elevações e depressões distintas da paisagem plana de Areia Branca permanece mesmo aos 85 anos.
Um dos maiores folcloristas vivos do Brasil gosta da volta ao passado. Recita poesias longas de Ferreira Itajubá, todas elas carregadas de nostalgias. A memória de Deífilo talvez seja tão prodigiosa quanto o seu conhecimento do folclore; tão intensa quanto a sua humildade e frieza quando encara os auspícios da alegria ou as armadilhas da tristeza.
Na sobriedade característica, encara a velhice com alguma indiferença. Força a vitória contra as limitações da idade. O caminhar já se faz difícil. Quando se levanta, comenta: “É preciso equilíbrio. Estou igual aqueles prédios que balançam, mas não caem”. E estabelece metas, sonhos para um futuro nem tão próximo. No alongado dos dias presentes, mantém a companhia do seu maior instante de euforia vivido: a mulher Zoraide. Além da visita constante dos nove filhos.
Mas Deífilo é pai de muitas outras crias. Três delas talvez formem a “santíssima trindade” do folclore potiguar: a romanceira Militana Salustino, o coquista Chico Antônio, e o mamulengueiro Chico Daniel. E se é contra o natural dos acontecimentos o pai ver seus filhos morrerem, este filho legítimo do folclore assiste diariamente a decadência da arte popular, do folclore que o adotou já aos 44 anos. E desde então se tornou seu herdeiro mais legítimo.
Sim, dei muito mais entrevista do que mereço. Além desses três, redescobri Fabião das Queimadas e um romance cantado por ele desconhecido até então, chamado Cavalo do Moleque Fogoso. Mas o mais gratificante talvez tenha sido Chico Antônio porque foi uma completa surpresa. Maria José (dona Militana), eu já desconfiava porque tinha entrevistado o pai dela, que me cantou dois romances muito bons. Quando Mário de Andrade escreveu em seu diário a vida de Chico Antônio, cantando côco e bebendo sem parar, pensei que ele fosse se acabar logo, mas morreu com mais de 90 anos. Agora, a figura mais importante para a cultura é Militana.
Segundo João Faustino me informou (o senador solicitou verba federal para publicação de quatro livros em parceria como a Academia Norte-rio-grandense de Letras) deve ficar pronto entre setembro e outubro. E como disse Mário Andrade em resposta a Manoel Bandeira, que perguntou qual o folclore mais importante que ele viu, o RN, disse ele.
Um dos maiores. O professor Bráulio Nascimento, da Paraíba, que vive no Rio desde rapazote, e o paulista Américo Pellegrino Filho são muito bons. Bráulio tem pesquisa vastíssima sobre o romanceiro ibérico e nacional. Américo se debruça mais sobre esse folclore mais novo. E tem outros mais.
De raspão ele toca em quase todos eles, principalmente os romances ligados aos bois.
Penso na segunda edição do meu livro de poemas, acrescentando alguns inéditos. E também a segunda edição do Espaço e Tempo no Folclore Potiguar. De repente pela Fundação José Augusto.
Quando cheguei, tinha saído Franco Jasielo e entrou Sanderson Negreiros, sem muito interesse pela cultura popular. Depois veio Evaristo Leão, um professor de educação física que não fez p*… nenhuma pelo folclore. Depois, Valério Mesquita: fez alguma coisa, sem muito destaque. Seguido por Paulo Macedo, também sem interesse. Cláudio Emereciano também não. Iaperi talvez tenha sido o melhorzinho. Mas foi João Faustino quem realmente trabalhou pelo folclore.
De uns tempos pra cá, desde aquelas nossas primeiras conversas, pensei no seguinte: esses grupos têm um repertório incrível. Há dez anos, por exemplo, filmei três horas de brincadeiras e cantorias da Chegança. Quem hoje tem saco para ver isso? Não assistem nem mais TV durante esse período. Ninguém entende mais o significado daquilo. Folclore precise de leitura.
Seria uma boa um espaço assim e um corpo de auxiliares que me ajudassem na revisão disso tudo. Em vez de 27 cantorias da Chegança, por exemplo, cantariam cinco. Em vez da apresentação com 40 figurantes do Fandango, só 20. E um microônibus deslocaria essa gente pelo interior e casas de cultura. Seria uma maneira de manter vivos os grupos, as casas de cultura e o folclore.
Chico Daniel foi inegavelmente o maior mamulengueiro, mas o filho dele, Josivan, está aí. Mas é um cara que precisaria ser bem pago para continuar sua arte. Severino Guedes, do Bambelô Asa Branca, no Alecrim, morreu, seus filhos tentaram manter, mas desistiram; seguiram a religião evangélica: um sumidouro para o folclore. Se tivessem recebido incentivos talvez tivessem permanecido. Faz um tempo, vieram dois pernambucanos documentar o Fandango e Chegança de Canguaretama. Isaura (Rosado) me disse que assistiu uma apresentação de um grupo mirim de Fandango em Pernambuco. Só pode ter sido influência desse trabalho feito no Rio Grande do Norte. É questão de planejamento. Mas pra eu pensar tudo só, é de lascar (boceja, quando eram 21h).
Faço exercício no quarto mesmo, quando acordo: uns exercícios respiratórios, uma flexões nas pernas, nos braços. Inclusive tenho uma bursite no braço – ô nome feio da p*…, ne? (risos).
Nos tempos de jovem eu fazia compra naquele mercado da Cidade Alta que pegou fogo. Comprava carne de gado, umas costelas com dois dedos de gordura. Eu cortava a gordura, parecia um queijo, aí comia pura. Isso me rendeu uma ponte de safena e duas mamárias. Mas foi há dez anos. Desde então, nunca mais. Hoje como principalmente frutas. Tenho meus 50 e poucos quilos. Mas meu peso nunca passou de 70.
Fico admirado de estar vivíssimo com 85 anos. Meu pai morreu com 64 com câncer no pâncreas. Minha mãe morreu com 77 de velhice. E do jeito que estou vivo e estribuchando, vou durar mais um bocado (risos). São raros os da família com mais de 80. Só meu avô paterno, que durou mais de 90 anos, mas era aquela vida no Sertão, né?
(Olha para Carlos Gurgel, à frente, e ri) Foi desobediência. Esses danados (os filhos)… eu falava o que era o certo, mas insistiam em desobedecer. Mas cresci e evolui. Cansei de dizer o que é certo e errado. Não vim ao mundo para julgar, mas para tentar compreender meus semelhantes. Convencer o outro de que o melhor é o ABC ou o América é besteira.
(Risos) Quando fiz os cinco primeiros, não tinha TV. Todo ano era um. Depois foram de três em três anos. E aí foram mais quatro.
Sei nem lhe dizer. Sou muito frio, sem muitas expansões pra essas coisas: nem para alegria nem para tristeza. Quando meu pai faleceu, fui ao sepultamento em Mossoró. Os outros filhos choravam, mas eu não sentia vontade. Com minha mãe,também. Mas quando descobri Zoraide pela primeira vez, fiquei emocionado, admirando a beleza dela. As amigas diziam que era a mulher mais bonita da cidade. E eu, um provinciano que veio do oco do mundo, iria conquistar? Mas depois de muito assédio, conquistei a rainha.
Sou um cara que me acomodo muito com os percalços da vida. Mas o meu primeiro emprego veio quando passei em primeiro lugar entre 120 candidatos no concurso público para cargo de datilógrafo no Ipase. O gerente, Jurandir Cerri, viu meu interesse no serviço e fui promovido. Quando Getúlio Vargas foi deposto, o gerente eleito foi Eurico Dutra. Ele esculhambou o Ipase, quando eu já era delegado lá, e me substituiu por um contínuo do partido político dele. Eu nunca tive partido na vida. Aí fiz uma representação direta para o presidente Alcides Carneiro, da Paraíba. A resposta foi dez dias de suspensão. Não contei conversa e pedi demissão depois de oito anos no Ipase. Depois fui ser caixa no Banespa, onde passei 17 anos (nesse período, Deífilo se forma em Direito, em 67). Mas lá também pedi pra sair. Eu era meio doido nessa época. E me vi cinco meses desempregado, casado e com cinco filhos.
Eu morava em uma casinha humilde em Areia Preta. Estava sentado em um banquinho próximo à Praia da Jangada, conversando com Zoraide sobre a vida, e João Faustino me aparece dizendo que tinha sido nomeado pra secretário de cultura na administração de Ubiratan Galvão e me convidou para ser diretor de promoções culturais, ganhando até mais. Não pensei duas vezes.
Edson Maranhão, pai de João Faustino, foi assessor jurídico no Ipase. Era amigo meu. E conheci João ainda menino de calça curta. Ele acompanhou a publicação de meus poemas nos jornais e resolveu me convidar. Minha função na secretaria era promover a cultura erudita e popular, mas me virei totalmente à arte popular, que não tinha praticamente nada a respeito. Cascudo só publicou o primeiro livre sobre folclore em 1949! (Sobre Vaqueiros e Cantadores).
Já era 1970. Djalma Maranhão havia sido deportado há oito anos. No governo dele aconteciam grandes festivais de folclore. Nunca me interessei. Quando fui trabalhar com João, a mulher do governador Cortez Pereira, Aída Cortez, resolveu promover uma festa natalina com várias apresentações dos grupos tradicionais dos antigos festejos promovidos por Djalma. E eu fui o encarregado disso. Chamei o senhor Joaquim Caldas Moreira, braço direito de Djalma naquela época, para arregimentar esses grupos. Quando vi a primeira apresentação, do boi de reis de São Gonçalo, veio meu interesse. Me cerquei de uma biografia razoável e me aprofundei no estudo do folclore.
Trazemos do berço. Em Areia Branca eram aquelas águas desaguando no oceano: uma paisagem muito plana. Eu já sentia alguns pluridos poéticos, mas pela pouca idade e falta de orientação, não me arrisquei. Quando eu ia de férias à casa do meu avô em Caraúbas, já com10 ou 12 anos, ficava encantado com aquela natureza, aquelas serras. Eu ficava na calçada do meu avô olhando aquilo tudo. E lá não passava automóvel, só carros de boi, jumenteiras. E escrevia meus primeiros poemas: “Da esquina da rua do meu avô/ eu via o trem de carga do Patu/ que passava por trás do sítio de seu Joaquim Amâncio/ lançando na calma tarde sertaneja/ o seu apito longo e dolorido/ e lançava no meu coração doente de menino/ as primeiras sementes de poesia”. Muita coisa da minha poesia, até hoje, são evocações de minha época de menino.
Tem uma frase de poema meu que sintetiza bem isso: “Onde termina o real; onde começa a poesia”. (E cita um poema) Era ali que começava a poesia em mim.
Moacyr Scliar é um dos escritores mais conhecidos da atualidade. E desenvolve a atividade de forma paralela. De ofício, ele é médico; e renomado na área. Embora seja difícil, em prima, pensar em um escritor de ofício. Fato é que já publicou mais de 70 livros e foi convidado a debater jornalismo e literatura durante o Encontro Natalense de Escritores. Sentou à mesa junto com o jornalista e poeta José Nêumanne Pinto e o diretor de Redação do Diário de Natal, Osair Vasconcelos.
A entrevista se deu após seus apontamentos no palco. Entre eles, uma observação do escritor Ernest Hemingway: “Todo bom jornalista tem de passar por uma redação”. O escritor e médico foi colaborador de diversos jornais de mídia impressa, como o Zero Hora e Folha de São Paulo. Na redação mesmo, nunca trabalhou. Como escritor, só não publicou livro de receita. Entre suas obras estão livros de crônicas, contos, poesia, ensaios, romances e literatura infanto-juvenil.
Após a palestra que antecedeu o concorrido show de Zeca Baleiro, o também disputado escritor conversou rapidamente comigo e comentou alguns aspectos dos quais foram temas de livros seus:
O socialismo passou por muitas crises quase mortais. A principal delas foi a queda do comunismo. Para minha geração foi uma desilusão tremenda porque foi uma geração que cresceu acreditando na União Soviética e na possibilidade de ascender o socialismo no mundo. Isso acabou e o socialismo vai ter que mudar seus objetivos. Terá que ser mais modesto. Mas continua uma causa justa. Enquanto houver desigualdade, miséria, opressão, a idéia tende a ficar.
Talvez a ideia de estado socialista já não se impunha. Mas a ideia filosófica socialista pode ser incorporada aos governos.
A vaidade, o narcisismo, essa coisa de girar em torno do próprio umbigo. É o crime de não se preocupar com o resto da população.
A área que eles coexistem é a crônica.
No jornal nunca sou romancista nem ficcionista. Mesmo que esteja fazendo texto que não corresponda à realidade, ele está dirigido aos leitores do jornal, portanto, é jornalismo.
Basicamente do noticiário ou do que as pessoas comentam na rua, no ônibus, nos cafés.
Claro. Muitas pessoas encontram na tristeza, no inconformismo, no mau humor material para criar na literatura, na música, na pintura. Isso não só diminui como humaniza o seu sofrimento e os seus sentimentos. Quando lemos um livro de um melancólico como o escritor Franz Kafka, que teve uma vida de intenso sofrimento psicológico, nós partilhamos de sua angústia – o que nos torna melhores.
Gostaria de ver alguma coisa desse gênero relacionado à medicina.
Zezo Silva, transformista, artista e professor de Balé, foi vítima de latrocínio ontem (5). Segundo a suspeita levantada pela mídia, um namorado o golpeou com uma chave de fenda para roubar o dinheiro herdado há pouco tempo decorrente da morte da mãe. Ele tinha 62 anos.
Só conheci Zezo de vista. Portanto, não tenho comoção por ligação pessoal, afetiva. E já de alma petrificada pelo tanto que já vi e ouvi, a única sensação que me causa é tristeza.
Zezo em uma de suas interpretações de Ney Matogrosso
Mas hoje acordei cedo e um pouco mais triste. E me perguntei o porquê, se desconhecia Zezo e se o fato é tão corriqueiro. Talvez ainda reste alguma fagulha de sentimento nessa minha carcaça. Ou talvez seja a junção de tantas intolerâncias e notícias dos últimos dias.
E recordei do brutal assassinato de Brasil, outro homossexual conhecido, também sexagenário. E isso foi há uns 12 anos. Eu ainda repórter de Cidades do Diário de Natal fui chamado às pressas para cobrir o fato. E mesmo com algum tempo como repórter de Polícia, essa foi uma das cenas mais chocantes que presenciei.
Brasil morava na rua Felipe Camarão, Cidade Alta, próximo ao Sindicato dos Jornalistas. Uma casa humilde, de porta estreita, antiga, com abertura em cima e embaixo. Brasil conheceu um rapaz em um ônibus e o convidou para, mais tarde, ir à sua casa, naquele mesmo dia. Chegou a comentar todo satisfeito essa expectativa com um amigo.
Brasil foi morto a pedradas. Vizinhos relatam ter ouvido pedido de socorro desesperado de Brasil à porta. Mas não houve tempo. Ele foi puxado de volta à casa e sucumbido aos golpes.
Quando cheguei, Brasil já tinha sido levado pelo carro do Itep. O rapaz “bonito” estava lá, amarrado na calçada. A pedra ensanguentada usada no crime, também. O sangue de Brasil era poça dentro de casa, no chão e com respingos nas paredes. Uma cena dantesca.
A imparcialidade jornalística foi pro brejo. Fiquei revoltado com a situação. Ainda ouvi uma das vizinhas dizer, junto ao criminoso, que “um homem desses eu também levaria pra casa”.
Nesses 12 anos vi e ouvi muitas histórias parecidas, mas essa me marcou. E ontem foi Zezo. Mais um. Hoje será outro, que não conhecemos e passará batido pela mídia. Amanhã será um terceiro e continuaremos rindo de piadinhas homofóbicas no zap. Depois serão mais Zezos e nada parece mudar.
Como profetizou Belchior, ainda somos como nossos pais. Mas talvez um pouco mais insensíveis, indiferentes, enfraquecidos após tantas mortes diárias. E me pergunto: por mais quantos Zezos isso vai mudar?
A Prefeitura do Natal, por intermédio da Funcarte, publicou o edital Concursos Literários Othoniel Menezes (poesia), Câmara Cascudo (folclore) e Moacy Cirne (ficção). Serão selecionados seis textos literários, sendo dois para cada categoria. Ao todo serão distribuídos R$ 51 mil reais em prêmios.
Cada proponente poderá concorrer a uma única categoria. É vedada a participação de órgãos públicos e fundações privadas. Ficam impedidos de concorrer os proponentes vencedores da última edição dos concursos Othoniel Menezes e Câmara Cascudo.
A obra inscrita precisa ser inédita e em língua portuguesa, e deverá conter entre 50 e 100 páginas, caso seja livro de poesia; entre 100 e 200 páginas, caso seja livro de ensaio folclórico; e entre 100 e 200 páginas caso seja livro de ensaio de ficção.
As obras participantes em qualquer uma das três categorias deverão ser literárias. Serão eliminados trabalhos de natureza estritamente acadêmica ou de cunho científico como monografias, dissertação, teses, comunicações e assemelhados.
Para todas as três categorias, o 1º colocado será beneficiado com o prêmio no valor de R$ 12 mil. Ao segundo colocado será atribuído o prêmio no valor de R$ 5 mil.
Os valores referentes à premiação, incidirão em menos vinte por cento de impostos, conforme prevê a SOLUÇÃO DE DIVERGÊNCIA N° 9, DE 16 DE JULHO DE 2012 – DOU de 29/8/201.
Podem se inscrever pessoas físicas maiores de 18 anos, residentes e domiciliados em Natal e região metropolitana e que se dediquem às atividades literárias nesta cidade. Não serão aceitas inscrições de obras de autores falecidos.
As inscrições são gratuitas e o prazo final é até 23 de novembro de 2018. O envelope de Inscrição deverá ser entregue na Biblioteca Municipal Esmerado Siqueira da Funcarte, no horário de 9h às 13h, e serão realizadas pessoalmente através de formulários e anexos disponíveis na página eletrônica da Prefeitura do Natal (AQUI) e no Blog da Funcarte (AQUI).
A Comissão Gestora será composta por três técnicos designados pelo Presidente da Funcarte, para avaliar os critérios jurídicos dos projetos. E a Comissão de Habilitação e Seleção Técnica será composta de nove membros técnicos, sendo todos especialistas de renomada atuação na área literária, de reputação ilibada, também designados pelo presidente da Funcarte.
Os critérios de avaliação seguirão os seguintes parâmetros:
a) Estilo – de 0 a 15 pontos;
b) Clareza – de 0 a 10 pontos;
c) Correção – de 0 a 10 pontos;
d) Precisão – de 0 a 10 pontos;
e) Harmonia – de 0 a 15 pontos;
f) Originalidade – de 0 a 15 pontos;
Adendo do editor: Este livraço o qual espero há tempos, desde que Eduardo Alexandre me confidenciou o projeto, há bons anos, será lançado na outra sexta-feira, 28 de setembro, na Praça do Memorial Câmara Cascudo, Cidade Alta, a partir das 17h30 até 22h.
“O Universal é o que está diante de nós”.
O ‘Das lagoas azuis ao Ponto Negro, Minha Cidade Natal: Lugares – Gente – História’ não é um livro acadêmico. Para construí-lo, porém, vali-me, especialmente, de dois grandes referenciais de nossa bibliografia histórica: Luís da Câmara Cascudo e Itamar de Souza.
Montei em ombros de gigantes.
Pesquisei em muitos livros físicos; abri livros virtuais; visitei dezenas de blogues, páginas e sítios diversos, disponíveis em Internet. Analisei fotos. Busquei fontes. Conversei. Fui a campo.
O objetivo era o de contar a história da cidade do Natal através da história de seus bairros, em crônicas.
Crônica é gênero literário, aberto, liberto, e; História é ciência definida em moldes acadêmicos, fechados, limitados aos seus conformes.
Foi trabalho que me encomendou o amigo Zeca Melo.
Ele sugeria a História fundada em acontecidos, mas escrita com a liberdade do devaneio literário da crônica leve, breve, que pudesse trazer arte à identidade de cada item pautado e refletido da cidade.
À história em crônica de alguns bairros, somei deles a vivência de artistas ou personagens que neles fizeram suas trajetórias, ampliando à dimensão do apanhado, algo de mais íntimo que pudesse trazer poesia aos escritos.
À essa soma, adveio uma história dispersa e sub-reptícia da arte natalense.
Espero que a leitura agrade e mais e mais pessoas se interessem e se debrucem sobre essa história da cidade DO NATAL, cidade berço: de fato, poética, lendária, mágica, resultante de suas mais que quatro centenárias auroras.
Eu sei que existiu, mas não sei lhe dizer onde estava localizada a Rua da Aurora natalense.
321 páginas
R$ 80,00
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O precioso da História contemporânea é a documentação para o futuro e não o juízo decisivo e peremptório. Todos os contemporâneos, para o bem e para o mal, são testemunhas de vistas, indispensáveis e ricas de notícias. Testemunhas e não juízes ou advogados. Todos testemunhas. O futuro estudará, confrontará e dará sentença. Muita gente pensa que a História é uma velhinha amável e covarde que aceita, por preguiça e senectude, as decisões dos contemporâneos. Todos nós julgamos escrever a História quando apenas escrevemos para a História.
Luís da Câmara Cascudo
O ano de 2018 tem uma importância ímpar no calendário cascudiano. Há 120 anos, nascia, nesta que sempre foi cidade, Luís da Câmara Cascudo. Sempre apaixonado por Natal, Cascudo escreveu a sua história, a História da cidade do Natal, publicada em 1947, atendendo à solicitação do então prefeito Sylvio Piza Pedroza, a quem oferece, dedica e consagra a obra. Em 1948, 70 anos passados, recebe pelas mãos do mesmo prefeito, o título de Historiador oficial da cidade do Natal. O seu encantamento, em 1986, também se deu nesta cidade da qual nunca quis sair, e aí já se vão mais de 30 anos.
Talvez por coincidência, sina ou destino, neste mesmo ano de 2018, Eduardo Alexandre Garcia retoma o tema e a paixão pela cidade, publicando o seu Das lagoas azuis ao Ponto Negro: Minha Cidade Natal – Lugares – Gente – História, panorama de uma Natal ampliada, modificada e repleta de transformações. Nesta retomada, Eduardo passeia pelos novos bairros da cidade que cresceu e se espraiou, mostrando seus lugares, sua gente e sua história, onde personagens do nosso cotidiano contam episódios e curiosidades sobre esta nova Natal.
O autor realiza, nesta obra, o que prediz Cascudo em 1947: “o futuro estudará, confrontará e dará sentença”. Sempre atento à realidade habitual e regular de Natal, registra imagens, conversa com pessoas, pesquisa bibliografias e coteja dados, trazendo para o leitor um novo retrato da cidade, que acompanha a modernidade urbana dos nossos tempos. Percorrendo caminhos antigos, aventurando-se em novas trajetórias e cumprindo, com perfeição e dedicação, sua missão de Alvissareiro da Torre da Matriz, Eduardo Alexandre reafirma que continuamos a ser testemunhas de vistas da História de uma cidade que muito amamos e da qual nos orgulhamos de pertencer.
Ah! que saudades tenho da Natal de minha juventude! Corriam os anos 60 do século passado. Não desfrutávamos das comodidades que hoje temos: internet, celular, shopping center, supermercado, tv de alta definição, etc. , etc. , mas, toda a cidade era, absolutamente, tranquila, podíamos andar na rua com total segurança a qualquer hora do dia ou da noite, no centro, nos subúrbios, em qualquer lugar.
As casas não tinham grades nas portas e janelas; os ladrões, que se contavam nos dedos, tornavam-se, a bem dizer, figuras folclóricas. Havia um cujo nome não recordo, que cometia pequenos furtos, sempre semi-despido e lambuzado de óleo para não ser agarrado… Bons tempos aqueles.
Eu me pergunto por que uma cidade pacata, como era a nossa, tornou-se tão violenta. Campeã nacional em se tratando de homicídios. 24 carros roubados por dia. Assaltos mil. Drogas. Uma estatística aterradora. No centro, onde não se vê um único PM em patrulhamento, campeiam assaltantes.
Um bom criminalista, que também seja versado em sociologia e outras ciências humanas e sociais, talvez possa explicar as causas disso tudo.
Creio que vivemos uma crise moral e ética sem precedentes não só nesta cidade, é claro, mas em todo o país. Elementos situados nas camadas menos favorecidas da sociedade não têm mais vergonha de transgredir, já que as elites dão mau exemplo. Políticos inescrupulosos apropriam-se do dinheiro público, com a maior desfaçatez, e nem sempre recebem a punição devida. “Se eles roubam, por que não nós?” – é o raciocínio, errado mas previsível, de muitos ladrões pés-de-chinelo.
Por outro lado, o crime organizado age a todo vapor, tornando-se, muitas vezes, um poder paralelo ao poder instituído. Não me surpreenderia se me dissessem que chefões de facções criminosas e seus asseclas julgam-se no “direito” de delinquir, porque alguns “chefões” do lado da lei e da ordem também são malfeitores.
Pobre Brasil! Até quando persistirá esse deplorável estado de coisas? Quousque tandem…?
Polícia desaparelhada e carente de recursos humanos; sistema penitenciário falido e uma legislação penal e processual-penal demasiado branda – são problemas sem solução a curto prazo. Mas, ainda que tais problemas venham a ser resolvidos, restarão imensas implicações de natureza econômica e social, causas determinantes da criminalidade. E estas, como todos nós sabemos, têm raízes muito profundas, dificílimas de arrancar.
Das capitais nordestinas, Natal foi a que mais demorou a crescer na vertical. Até meados dos anos 60 do século passado, tinha somente uma meia dúzia de prédios com mais de cinco andares. Depois, foram surgindo, ao longo das décadas, edifícios de escritórios – o “21 de Março”, na Praça Pe. João Maria, o Sisal, etc. e já alguns residenciais, na Av. Deodoro.
Construção do Ducal
O Hotel Ducal, em pleno Grande Ponto, lado a lado com o pioneiro “Amaro Mesquita”, marcou época. Enorme cilindro envidraçado, tornou-se como que o ex libris do Grande Ponto. No seu andar mais alto havia um restaurante panorâmico de onde se contemplava a cidade – telhados, quintais, fruteiras e um ou outro edifício em harmonia com a paisagem quase bucólica.
Na década de 1990 foi que começou a selva de pedra. Empresários da construção civil, em face do novo Plano Diretor, lançaram-se a levantar espigões. Havia quem os comprasse. Natal desenvolvia-se, tornando-se uma cidade turística. Perdia a inocência. Já não era nem um pouco daquele “vale branco entre coqueiros”, dos versos de Ferreira Itajubá. Assaltos, arrombamentos de casas começavam a virar rotina. A classe média papa-jerimum, assustada, refugiava-se nas torres de concreto e vidro que iam poluindo a paisagem.
A sorte da cidade dos Reis Magos estava lançada: seria mais uma imitação de São Paulo, a megalópole-selva-de-pedra, que, por sua vez, imita Manhattan. Entre parênteses: digo Manhattan e não Nova York, pois esta, com exceção da famosa ilha e do bairro do Brooklyn, é mais horizontal que vertical.
Natal fadada a ser uma São Paulo em ponto menor e dotada de balneários. Merecia melhor sorte.
Ficcionista criativo, Márcio Benjamim é uma das boas revelações da nossa literatura neste início de novo milênio. Natalense, advogado, em meio aos papeis e a burocracia diária, o que mais ama é contar histórias. Escrever, sobretudo ficção. Vale dizer que Benjamim também é dramaturgo e escreveu algumas peças: “Hippie-Drive”, “Flores de Plástico” e “Ultraje”.
Estreou oficialmente na literatura em 2012, com o livro Maldito Sertão, publicado pela Editora Jovens Escribas. Sobre Maldito Sertão tivemos oportunidade de escrever, na época do seu lançamento, uma resenha, da qual extraímos os seguintes trechos:
O livro do escritor Márcio Benjamim, “Maldito Sertão” é um mundo, um universo onde se misturam mito, ficção, poesia e linguagem regionalista. É uma viagem, uma incursão pelas estórias da nossa região. Poucos os contistas potiguares que tratam deste tema com propriedade. Afonso Bezerra, Manoel Onofre Júnior, Bartolomeu Correia de Melo e Clauder Arcanjo são alguns dos nomes da lista de escritores que o abordam.
Nos contos notamos espaços existenciais, vivos, personificados, verdadeiramente regionais, além de um vasto universo folclórico, repleto de vida e imaginação, brotando assim os mais diversos sentimentos como o riso, o medo, a dúvida, angústias, esperanças, desilusões, o bem e o mal, e as tensões entre o homem, o sertão e o mundo, numa síntese onde tudo se transforma em linguagem.
O sertão é uma vasta (e indefinida) área do nosso país, que abrange boa parte dos Estados do Nordeste. Esta caracterização corrente de sertão é tida como a de uma área despovoada ou escassamente habitada, quase deserta. Qualquer tentativa de definição ou delimitação do sertão ou dos sertões implica não só uma explicação geográfica, mas, sobretudo, uma compreensão histórica e social.
Os causos do livro Maldito Sertão expressam um complexo de elementos fundamentais que valem nas relações humanas e sociais do país e as perpassam historicamente. Embora seu objeto de representação seja um ambiente determinado – o sertão – o autor recria, reinventa e localiza o sertão em uma realidade mais ampla, mais rica de significados folclóricos e culturais em narrativas fantásticas.
Neste livro, o sertão é um universo registrado como mítico, ativo e interativo, num ambiente natural e cultural, onde a figura do sertanejo salta aos nossos olhos em cada narrativa, em cada estória. Existe, nesse sentido, uma ponte de ligação, de transcendência entre o regional sertanejo e o universal humano na obra de Márcio Benjamim, que se dá no campo da linguagem, destacando-se nos relatos fabulosos. A linguagem constitui assim um aspecto rico, amplo, que nos traz de volta a vida no interior, as falas sertanejas, as angústias, os medos, as felicidades, as descobertas, os encontros e os desencontros humanos em temáticas universais.
E é no trato desta realidade sertaneja que destacamos uma grande síntese, uma capacidade de contar estórias em poucas palavras, mas com riqueza de léxico. Além disto, o fato de que as dimensões sociopolíticas e culturais do sertão extrapolam seus limites, tornando-se universais, apontando para uma tendência histórica posterior a esse momento.
No Maldito Sertão o homem se vê reduzido a um mero coadjuvante, onde o sertão é o principal personagem, um belo e imenso palco de estórias; ai se destacam o lado ficcional, o mítico e a exploração dos recursos da linguagem que adquirem contornos poéticos a cada nova estória.
Maldito Sertão também foi adaptado para os quadrinhos em 2016 e foi lançado na FLIQ – Feira de Livros e Quadrinhos de Natal, em nova roupagem e com linguagem adaptada para os quadrinhos, recontando histórias de personagens míticos como o lobisomem, a mula-sem-cabeça, o papa-figo, a caipora, além das lendas aterrorizantes da região.
Márcio Benjamim participou das antologias de contos ”Noctâmbulos” e “Caminho do Medo”.
Em 2016, lançou “Fome”, romance que concorreu ao Prêmio da Biblioteca Nacional como melhor Romance Juvenil de 2016. Benjamim foi convidado pela Universidade de Sorbonne, e expôs seu trabalho em Paris, na referida universidade, e participou também do Salão do Livro na capital francesa.
Em 2017, teve um dos contos do Maldito Sertão, intitulado “Casa de Fazenda”, traduzido para o espanhol, integrando a coletânea “Literatura Brasilis”, lançada na XXVI Feira do Livro em Havana, Cuba.
Em 2015, o entrevistamos para o livro “Impressões-Digitais- Escritores Potiguares Contemporâneos”, vol. III, e destacamos a seguir alguns trechos:
MÁRCIO BENJAMIM – Meu pai é militar da Aeronáutica e muitas vezes fui com ele à Base, no caso ao CATRE, em Parnamirim, e passei inúmeras tardes na biblioteca por falta de colegas da mesma idade para brincar, e lá tive contato com grandes livros e autores: Meu pé de laranja lima, O menino do dedo verde, Erêndira e sua avó desalmada, quando me apaixonei por Garcia Márquez, os quadrinhos do Recruta Zero e do Asterix! Eu adorava também uma coleção sobre as civilizações antigas, toda ilustrada. Do cheiro daqueles livros e a tranquilidade da biblioteca eu me lembro com muita força.
Em casa eu também lia muito por influência dos meus pais. É como me disse uma amiga minha, que é mãe: para a criança não adianta orientar, você tem que ser o exemplo. Inicialmente lia muito quadrinhos da Turma da Mônica, mas depois fui me encantando pelos livros mesmo, todos os de Pedro Bandeira e a Coleção Vagalume foram sempre presentes.
Também me lembro com muito prazer das Vinte Mil Léguas Submarinas de Júlio Verne, fiquei encantado com a fluidez da leitura, considerando o tamanho daquele livro! Dava pra encostar uma porta tranquilamente! (risos).
No começo da adolescência descobri esse meu amor antigo de hoje, que é Stephen King, talvez a minha maior influência. Lembro perfeitamente bem que aos treze anos pedi de presente de Natal três livros dele: O Cemitério, Sombras da Noite e A Metade Negra. Não sei como minha mãe não me internou (risos).
Desses, principalmente “Sombras da noite”, é um livro fabuloso, de contos, que me influencia muito até hoje. O seu prefácio é uma verdadeira lição de escrita de terror e vez por outra me pego lendo-o novamente. Quem sabe um dia aprendo?
Gostei tanto do estilo dele que acabei comprando vários outros livros e descobri que era um gênio também em outros estilos que não o terror.
Depois fui me encantando por Érico Veríssimo e Luis Fernando Veríssimo, até porque na época comecei a fazer teatro na escola e montamos uma adaptação das “Comédias da Vida Privada”. Foi por meio do teatro que passei a descobrir os nossos autores teatrais (Nelson Rodrigues, Plínio Marcos…) e também fui me interessando também pela dramaturgia mundial, aí veio Tchecov, Ionesco, Tennessee Williams, e toda uma profusão de outros gênios.
Depois mantive um blog (www.umanjopornografico.blogspot.com), que hoje anda meio parado, mas serviu para conhecer um mói de gente do Brasil todo, grandes escritores, e firmar amizades que tenho até hoje. Serviu também para apurar meu estilo e ouvir críticas construtivas sobre o meu trabalho, as quais ainda me servem muito. Fizemos até um blog interativo (Revista Engrenagem) no qual postávamos com regularidade textos criados a partir de temas sugeridos.
E foi também na época do blog que através de um elogio de uma grande amiga, e grande poetisa e grande escritora, Rosângela Azeredo, que eu conheci o trabalho do Cortazar, e até hoje a cada dia morro um pouco de pura inveja.
Já no final da adolescência tive outro vício chamado Caio Fernando Abreu, bem antes dele virar celebridade literária do facebook (risos) e aprendi que você pode escrever divinamente sem ser prolixo. Ainda não escrevo divinamente, mas pelo menos deixei de ser prolixo! (risos)
MÁRCIO BENJAMIM – É um apaixonado por terror e, consequentemente, pelo seu trabalho. Irremediavelmente viciado em leitura, ele quer acreditar que vai escrever até o fim dos seus dias. Pelo menos é o que diz aquele senhor de preto que lhe aparece em sonho.
Casado com Maria das Dores Alcântara de Araújo, três filhos, morador da Avenida Itapetinga, Conjunto Santarém, bairro Potengi, Zona Norte de Natal, Raimundo João de Araújo, o Mundoca, sente saudades do tempo em que, menino, morava no final da Ponta do Morcego, à Avenida Sylvio Pedroza, defronte à Rua Odilon Garcia, Areia Preta.
Quando não estava nas peladas ou na escola, “ficava caminhando pelas praias, de Areia Preta até a Praia do Forte”. Gostava de ficar ouvindo as conversas na bodega da esquina, a Mercearia de seu Mário, que também fazia às vezes de bar. Sem muita intimidade, ali conheceu muitos dos que faziam a Natal boêmia da época. Ele, menino “a peruar conversas”, os adultos a assuntar de tudo naquele ponto de encontro bem frequentado da cidade.
– Comprei cigarros para Newton Navarro. Ele pediu uma carteira de cigarros a seu Mário, mas seu Mário não vendia cigarros. Eu estava encostado na porta da mercearia e fiz um gesto para ele. Eu disse que ia, peguei o dinheiro e fiz carreira até O Jangadeiro, na esquina com o Hotel dos Reis Magos. Eu gostava de ouvir as conversas nas mesas daquele senhor, que chegava com rolos de desenhos e aquarelas e mostrava a todos. Eu gostava do risco dele.
Em uma de suas idas à Praia do Meio, já rapazote, Mundoca deparou-se com uma escultura de areia, deixada ao vento e à sorte das ondas do mar, que iriam consumi-la. Voltou a frequentar o lugar; a ver novas esculturas de areia, e; também, a tentar imitar o que via, “era isso o que eu queria fazer”, até conhecer o responsável pelas obras artísticas que admirava: Jordão de Arimatéia, morador ali perto, da Rua do Motor. Jordão trabalhava com Ziltamar Soares, conhecido por Manxa, ajudando-o no ateliê que este possuía na Rua Dionísio Filgueira, “esquerda da subida de quem vem de Petrópolis para a praia”.
– Nunca trabalhei com Manxa. Com Jordão, tomei coragem e fiz para ele ver as esculturas de areia que eu fazia e travamos uma amizade e uma parceria de trabalho que duram até hoje. O instrumento de trabalho que eu utilizava era só uma quenga de coco. Ele gostou. Um dia, precisou de ajuda para fazer uma escultura em cimento numa casa perto da Faculdade de Odontologia e daí fizemos outros trabalhos juntos. As esculturas do Hotel São Francisco, na rua Coronel Estevam, Alecrim, entre eles. Por essa época, ele vivia falando na possibilidade de realizar um grande trabalho nas colunas de um edifício alto que estava sendo construído na Deodoro, descida da ladeira da Rádio Poti, o Rio-Mar, já nos tijolos. Ele dizia que não fazia sozinho, mas que se tivesse um ajudante, sim. Até que um dia me perguntou se eu toparia fazer com ele aquele trabalho arriscado, nas alturas. Aceitei.
– Fiz altos-relevos em paredes, usando cimento. Trabalhei em casa de gente bacana. O doutor Francimá, dentista, tem uma escultura minha na parede de sua casa de granja, na Lagoa do Bom Fim. A porta do escritório da casa dele, aqui em Natal, eu esculpi. Era pra ser do consultório dele, na Hermes da Fonseca. Depois, ele preferiu usar a peça em sua casa no Tirol, perto do Morro Branco.
No Rio, Mundoca diz que ganhou muito dinheiro, trabalhando com Jordão. “Comprei uma Kombi”.
– Trabalhamos em escola de samba: na Unidos da Ilha do Governador, onde eu morava na casa de uma tia. Fizemos alegorias. Primeiro esculpia em isopor, depois passava para fibra. Jordão é muito doido. Uma vez, fomos na casa de um delegado de polícia muito rico, que não sabíamos quem era. O jardineiro quem indicara o trabalho. Chegamos um pouco depois das oito horas. O homem não estava; esperamos. Passou a hora do almoço, o homem não chegava e fomos a um bar por perto. Comemos, tomamos umas cervejas e voltamos. E nada do homem. É quando Jordão mira as quatro colunas em cedro da varanda da casa, belíssima, pega um papel e risca uns desenhos. É assim que a gente vai fazer, Mundoca, ele me disse. As ferramentas, a gente tinha levado. Ele pegou o lápis, riscou o planejamento do desenho de uma das colunas num papel, e me chamou: Vamos! O homem quando chegou pelo portão de trás e foi entrando na casa e ouvindo a pancada forte dos batedores, chegou brabo à varanda. Estão demolindo minha casa? Quem mandou? Quem está pagando pelo serviço? Foi reclamando e observando melhor o trabalho começado, que o encantou, nos chamou para comer e exigiu que morássemos lá por uns tempos, num quartinho que dava para a praia, enquanto fazíamos as obras que ele começou a pedir. Agora, imagine, delegado rico, com uma mansão daquela?
– Quando estávamos fazendo os painéis gigantes do Edifício Rio-Mar, os jaús, presos a quatro cabos de aço que vinham do teto, enquanto não estivessem presos por corda ao gancho do andar, o vento jogava e ficávamos à mercê da sorte. Nenhum equipamento de segurança, a gente usava. Às vezes, subíamos no ferro do guarda-corpo do jaú, Jordão para traçar, eu para cortar. Era uma coisa de doido, qualquer vacilo, seria fatal. Éramos uma equipe de seis pessoas a realizar aquele trabalho. Pedreiros jogavam a massa, Jordão riscava, eu cortava, dava a forma. Depois, parte do trabalho foi demolida, por justificativa de infiltração de água de chuva nas colunas. Colocaram pastilhas.
O mestre Mário Quintana, disse, certa vez: “Esquece todos os poemas que fizeste/Que cada poema seja o número um”. Compreendemos através dos versos do genial poeta gaúcho a sugestão de criar, de se surpreender, de se espantar com novos versos. Rememoramos Quintana após termos lido os poemas de R. Leontino Filho em “Anatomia do Ócio” (ARC Edições, 2018) percebendo bem o imenso potencial de criação, o poder intrigante e transformador da poesia. Seja pela mobilização da fantasia, seja para aliviar uma dor, pelo prazer da leitura ou até mesmo para desvendar os homens a poesia, nos deixar nus diante da existência; é uma arte essencial ao ser humano e, como tal, revela muito do que somos e como somos hoje e sempre.
Essas virtudes encontram-se nos poemas do livro de Leontino. A multiplicidade de temas, o acentuado detalhe de construção dos versos demonstram, algumas vezes, as inúmeras possibilidades a que um poema pode nos levar. Como, por exemplo, uma viagem pelo tempo e pela memória, no poema FEITO PRECE.
Toda infância é grandeza
muito laço apertado
p´ra mover um pouco
os perigos do mundo.
Cada infância é um pouco
dessa epopeia cansada
no muito habitar os rigores
graúdos da poesia.
(…)
Em seus versos Leontino resgata um pouco da infância, que fica dentro de cada um de nós; e por vezes, parece nos levar a uma reflexão sobre essa infinita busca intima.
Embora seja clichê, citamos a propósito, outro gênio, Fernando Pessoa, que registrou em um dos seus mais famosos versos: “… O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente…”
Eu, e você, caro leitor, temos certeza de que o grande poeta português não poderia estar mais certo. Vejamos um trecho de um dos poemas de Leontino:
NÁUGRAFO
a dor resiste
em rúinas
imutável
a dor encobre
em cartas
indiferente
a dor recua
em fronteira
sequiosa
a dor desconhece
em farsas
soturna
a dor aprisiona
em derrotas
frágil
.(…)
Lendo trechos desse poema sentimos a dor do eu lírico, ao mesmo tempo que questionamos a nossa própria dor e nos identificamos com ela.
Também é importante dizer que ler R. Leontino Filho nos fez relembrar uma frase dita por Umberto Eco, que definiu o efeito poético como a capacidade que um texto oferece de continuar a gerar diferentes leituras, sem nunca se consumir de todo. Esta é a sensação causada pela leitura de “Anatomia do Ócio”, onde o signo verbal se transforma a cada nova leitura.
Bachelard, filósofo e poeta francês disse em uma das suas obras que a poesia sob sua forma simples, natural, primitiva, longe de qualquer ambição estética, de qualquer metafísica, seria uma espécie de alegria do sopro, uma evidente felicidade de respirar. Eis que o leitor encontra este sopro poético nos versos do livro em foco.
A poesia de Leontino navega entre diferentes temáticas: memória, erotismo, outras imagéticas, dentro de seu campo de visão e interpretação interior. Algumas vezes, metafísica, em certos momentos com versos mais longos; outras vezes, sucinta, muitas vezes clara, outras mais enigmática e ainda, outras vezes, de difícil interpretação. Com frequência, o poeta é direto. mas, não raro, precisamos de uma chave para desvendar o seu poema.
A escritora portuguesa Rita Ferro disse, certa vez. “A filosofia é fascinante, mas a poesia, com menos papel, faz as mesmas perguntas”. “Anatomia do Ócio”, navega por esse mesmo caminho; sentimos isso sobretudo quando lemos poemas como PARTIDA INTEIRA, FIO, DE (NÃO) PODER SER PALAVRA, dentre outros.
Saudamos a volta do poeta em grande estilo, e deixamos para os leitores um trecho de A TOADA DO NAVEGANTE, (página 63 do livro), concordando com o que disse Rita Ferro:
Pequeno é o mar
para uma vida tão curta.
O mestre Manoel de Barros disse, certa vez, em um dos seus poemas, que “tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma, serve para poesia”. Pois o jornalista e escritor Osair Vasconcelos absorveu as palavras do poeta mato-grossense e criativamente fez nascer um livro de crônicas de alto valor literário, “Retratos Fora da Parede” (Z Editora, 2018).
Depois de haver lançado “Encontros Passageiros com Pessoas Permanentes”, “A Cidade que Ninguém Inventou” e “As Pequenas Histórias” (este último, boa revelação do conto potiguar contemporâneo), com “Retratos Fora da Parede”, Osair, experiente jornalista, revela outra faceta: a arte de fazer poesia com as coisas inúteis, através de uma prosa leve, poética e despojada.
A preocupação com a linguagem também é bastante acentuada no seu novo livro, que deixa visível a influência da poesia de Manoel de Barros. As crônicas de Osair, por vezes nos levam para um universo onírico descrito através de imagens e sinestesias e nelas podemos encontrar temas como o cotidiano, as pequenas coisas da vida, chuva, bichos, insetos, a infância projetada no adulto e a busca da felicidade. Talvez esses sejam os retratos fora da parede, como bem sugere o titulo, uma ótima metáfora das coisas que deixamos passar no cotidiano.
O livro tem uma marca literária muito forte, envolvendo lirismo e alegorias. Percebemos uma autorreflexão poética constante; nas entrelinhas transparece, não raro, quase que um discurso do próprio fazer artístico. A prosa é literal, outras vezes, simbólica, metafórica. Assim sendo, traz ao leitor, possibilidades de realidade e de fantasia; temos a palavra pela palavra inserida num espaço hegemônico.
A proposta da sua crônica também é, de certa forma, instaurar uma nova realidade, pelo menos para as nossas letras, através do olhar, provocando a inspiração poética, valorizando detalhes, transformando o lugar-comum em linguagem poética adornada pelo imaginário. De modo bastante criativo altera-se a fronteira entre o mundo exterior e o interior; aproximam-se as coisas “inúteis” da nossa realidade.
É lugar comum dizer que a crônica possui a marca de registro circunstancial feito por uma linguagem jornalística, que desempenha função poética no momento em que recria a notícia, captando o seu misterioso encantamento. Se existe um gênero literário que pode ser classificado como de origem brasileira é a crônica. Sem o aspecto de erudição próprio do ensaio ou a objetividade do artigo, a crônica nos relata assuntos cotidianos, principalmente de fatos mais pessoais, relacionando-os a contextos característicos do nosso país, como política, futebol, carnaval e música.
De alcance extenso, a crônica nunca sai de cena e tem como característica a informalidade, estabelecendo um diálogo direto com os leitores. Ressaltamos que uma de suas qualidades é a forma como ela estimula o exercício de um olhar mais apurado sobre o presente, uma ligação com os acontecimentos do dia-a-dia, tornando-se muito pertinente e dinâmica em sua mensagem, como é o caso das crônicas do livro em foco. Observamos que, há ocasiões em que a crônica é mais pessoal, às vezes, poética, às vezes, didática, às vezes, memorialística, bem-humorada, satírica ou irônica e, claro, sempre relacionada a fatos cotidianos.
Osair Vasconcelos não apenas registra um fato, uma notícia, um acontecimento. Ele explora muito bem o poder das palavras para que o leitor possa vivenciar, com sentimento, aquilo que está sendo narrado. Algumas das crônicas do seu livro, parecem contos, e algumas são verdadeiros poemas em prosa. É importante destacar a nossa cidade, como principal lugar das flanagens de Osair, “observador das coisas inúteis”; tudo que não interessa a muitos é notado pelo flaneur e transmitido ao leitor através das palavras.
Para entender, ou melhor para desfrutar da literatura de Osair, primeiro é preciso despir-se da racionalidade do mundo, para depois vestir o manto da simplicidade. Talvez a grandeza de sua prosa esteja justamente nessa simplicidade, tanto da linguagem, como da forma. Um pingo de chuva, um inseto, um pedaço de folha seca jogado no chão, por mais ignorados que possam ser pelas pessoas que passam, guardam em sua simplicidade todos os mistérios da natureza.
O autor consegue facilmente motivar seus leitores, atraindo-os com o seu estilo ágil, leve e simples, como tudo o mais em seu livro. Em determinados casos, a leitura torna-se uma espécie de remédio, que satisfaz em momentos aprazíveis. Todavia, para não dizer que falamos apenas das flores, um ponto do livro que talvez pudesse ter sido reavaliado, ou seja, excluído, é o ultimo texto, “Peixe-Pedra”, o qual, no nosso entender, ficou um pouco deslocado do conjunto harmonioso do restante da obra.
Em suma, a prosa de Osair Vasconcelos está mais poética do que nunca, ou seria ao contrário? Peças como “Dia de Chuva”, “A Pedra do Reino”, “Cena”, “As Voantes”, “Canto de Muro”, “As Lagartixas” e “Iludir Relógios e Chegar ao Espelho” são peças surpreendentes, além, claro, de serem evidentes homenagens aos mestres Câmara Cascudo, Manuel de Barros, e Ariano Suassuna. Essas por si só justificariam a publicação do livro.
O Monte do Sol é um lugar diferenciado de Neópolis.
É seu ponto mais alto: onde se apreciam as mais multicoloridas auroras, os mais deslumbrantes entardeceres do bairro.
Para se ter acesso ao seu topo, existe uma longa escadaria à base de cimento, em módulos intercalados por pisos horizontais, que nasce na Rua Materlância.
Casinholas bem cuidadas sobem o monte, humildes, de bom gosto, pintadas com cores diferentes, vivas, ladeiam a escadaria que cobriu areias amareladas, dos tempos em que ninguém morava ali.
Só um dos lados do morro não é habitado, o que dá para oeste, um barranco alto, onde a declividade acentuada não permite a construção de casas.
É um dos poucos lugares não planejados do bairro: foi paulatinamente ocupado por gente que precisava de moradia e que invadiu suas áreas habitáveis.
Hoje, ali, na Rua do Monte do Sol, vivem artistas jovens, vindos de outros pontos do bairro, onde moravam emergentes que fazem o movimento cultural da cidade: Neemias Damasceno, artista plástico; Júlio Lima, músico; John Fidja Gomes, músico; Rodrigo Bico, ator, e; o músico Ricardo Baya, que ali não mora mais, mas que sempre o visita, para matar as saudades e comandar cantorias.
Muitas vezes, quando suas agendas permitem, eles se reúnem na casa de um deles em sábados, domingos ou feriado qualquer para conversas que se estendem noite a dentro, ao som de violões e instrumentos percussivos: cantam, recitam poemas, esquecem ou debatem notícias chegadas do mundo lá debaixo.
É um oásis cultural tranquilo, de um bairro tranquilo, de uma gente que se conhece e se cumprimenta, e que, lá do baixo, acostumou-se a ouvir a música doce de violões que encantam os seus silêncios, quebrados por acordes vindos do Monte do Sol.
Rua Monte do Sol é o que está escrito em tabuleta artesanal feita por morador e afixada a arame em seu poste de entrada, à Rua Materlândia, onde nasce a escadaria. Topônimo confirmado por placa de identificação de lugar da Semurb.
A Rua Materlânia não está no sopé do morro; cruza-o horizontalmente um pouco mais acima. Ela é a rua mãe da Rua Monte do Sol; Sol que é uma das maiores referências da cidade do Natal, uma cidade dunar, construída subindo e descendo morros, montes de areias sopradas do mar.
A Guerra Fria ensejava novo conflito mundial ameaçado pelo poderio devastador da bomba nuclear nos anos 50. Era época de aproveitar o presente sem prever o amanhã. E após o twist, Elvis e a guitarra de Chuck Berry, a década de 60 se mostrava prenúncio de mudanças de paradigmas e de uma juventude descolada. E quatro cabeludos de Liverpool se encaixaram com luva nessa atmosfera.
Naquele início de 1960, a Natal Trampolim da Vitória também vivia o clima do pós-guerra. Mas a cidade era demasiada provinciana. Notícias do estrangeiro chegavam com atraso via rádio ou pelas telas do cinema. Tanto que, em Natal, a Jovem Guarda tomou a frente da proclamada beatlemania. Era mais fácil ouvir Roberto e Erasmo do que Paul e John, seja nas poucas estações de rádio ou nos filmes de Roberto.
Enquanto Love Me Do apresentava timidamente os Beatles ao mundo, em 1962, Elvis ainda encantava os natalenses com o filme Balada Sangrenta, no cinema Rio Grande. Ou Pat Boone, com Viagem ao Centro da Terra. Era o que vinha do “além-mar” à terra de Cascudo.
Vândalos na sorveteria Ky Show, point na rua João Pessoa, logo após os filmes de Elvis no Rio Grande
Em 1964, os Beatles já haviam tomado o mundo de assalto com A Hard Days Night e o natalense ouvia, no máximo, as versões em português por Renato e Seus Blue Caps quando três adolescentes começaram a difundir as canções do yeah yeah yeah em versões originais em Natal.
Os irmãos Eustachio e Afonso Lima e o amigo Bruno Pereira pertenciam à restrita elite natalense matriculada na pioneira escola de inglês Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos (SCBEU), localizada na Rua Joaquim Manoel, em Petrópolis. E apresentados logo cedo a Elvis e aos Beatles, detinham a fórmula até então inédita na cidade para fazer sucesso: dominar a língua inglesa e gostar e ter contato com discos de rock.
Os três viveram o sonho adolescente ao montar o “conjunto” Os Alucinantes. Seria apenas o ensaio para o que viria a ser um dos maiores grupos de rock daquela década: Os Vândalos.
Professores da SCBEU eram intelectuais de Natal
Já com Marcelo Barreto na bateria, os Vândalos organizaram tours por escolas da cidade para tocar Beatles. Colégio Imaculada Conceição, Marista, Sete de Setembro, Escola Doméstica… Várias receberam os quatro cabeludos natalenses, que ganhavam popularidade e apresentavam a novidade daquelas canções em Natal.
Até então o Rei do Rock por aqui ainda era Sérgio Murilo. Celly e Tony Campello tocavam seus rocks comportadinhos com versões de Neil Sedaka e Paul Anka. E apesar da explosão da beatlemania em 63 com Please, Please Me, não só em Natal, mas no Brasil os Beatles só tomaram conta das rádios mesmo em 1965, quando a Jovem Guarda já estourara.
Os Vândalos posam defronte ao painel do suntuoso Hotel Reis Magos, coqueluche da época
Mas tínhamos Os Vândalos para antecipar toda essa magia. Natal era vanguarda no rock!
O grupo passou por algumas formações. Na bateria revezaram Marcelo Barreto, Nelson Freire e Roberto Alves. Quando Bruno viajou aos EUA e voltou com o inédito álbum Magical Mystery Tour, dos Beatles, lançado só um ano depois em Natal, entrou Jorginho. Fon também foi aos EUA e Luiz Lima, o Lola, substituiu o irmão. Prentice Bulhões também participou do grupo…
Nessa foto acima, os três irmãos: Eustachio, Fon e Lola tocam em 1973 no emblemático Festival do Sol, no estádio Juvenal Lamartine. Já não eram Os Vândalos, mas um trio de folk ao estilo Crosby Stills & Nash. Como os Beatles, o sonho também acabara em 1970 para o conjunto que marcara época em Natal na segunda metade da década de 60.
O fim dos mágicos anos 60 foi em clima de despedida. A utopia de um novo mundo parecia ter diluído no alvoroço do yeah, yeah, yeah ou no mergulho do LSD. Os Beatles e Yoko Ono sinalizavam o fim, enquanto os EUA fincavam bandeira na lua. A estrada virara viagem!
A experimentação ditava o ritmo. O triunfo do corpo, o terror político, a chance para a paz. Lá fora, Nixon e o Vietnã. No Brasil, Médici e o Doi-Codi. E em Natal, Cortez Pereira e uma primeira dama que possibilitou Natal ingressar na vanguarda cultural naqueles primeiros anos da década lisérgica.
Festival do Sol. Da esquerda para direita: Lola, Fon e Eustachio
Toda essa profusão de novas sensações alternativas da contracultura desembocou no experimental Woodstock, em 1969, sob lama, drogas e rock. E quatro anos depois a provinciana Natal entrava na onda com o primeiro festival de música a céu aberto do Brasil.
“Quem liberou o estádio para o Festival do Sol foi Aída Cortez (primeira dama). A ditadura ainda era opressora. Mas por causa da mulher do governador, os policiais, se muito, ficaram do lado de fora do estádio”, lembra Graco Medeiros, que arregimentou o festival histórico. E lá dentro, “apenas” a liberdade.
No pequeno palco estiveram a lendária banda Ave Sangria, hospedados no Hotel Bom Jesus, na Ribeira, além da banda Os Fetos, Marconi Notário, Os Berbes, Zimbazoa, uma inédita performance aliada à música do poeta Carlos Gurgel, chamada A Proposta, Walter Vonberbe, que tocou uma canção tristíssima de George Harrison, entre tantas canjas da plateia que subia ao palco nos intervalos, até o fim apoteótico com o Novos Baianos.
O Festival do Sol registrara também o último encontro musical dos três irmãos vândalos, como despedida folkiana para um tempo de canções de amor já guardadas nos porões da memória.
Dessa época restaram lembranças, discos e um personagem emblemático. Único integrante onipresente na história d’Os Vândalos, Eustachio Lima certamente é o mais rocker dos integrantes e quem mantém a chama das costeletas de Elvis, a magia beatlemaníaca e a utopia beatnik até os dias de hoje.
Aos 67 anos, Eustachio é hoje apenas um garoto aposentado da Cosern que, como eu, ainda ama os Beatles e os Rolling Stones.
A diferença dele para a maioria dos terráqueos é o jeito desse amar. Durante mais de meio século Eustachio construiu uma das mais variadas e completas coleções de discos de Elvis e dos Beatles do Brasil.
Mas anos atrás uma população de cupins pra lá da sexta geração foi descoberta. Mais de dois mil vinis ficaram inutilizados. E uma fortuna afetiva mantida desde os 14 anos foi ao lixo.
“O cupim levou a história da minha vida, mas sobraram alguns pedaços”, lamenta.
Esses pedaços são exemplares raríssimos de compactos de Elvis guardados em outra estante. Justo as primeiras aquisições do ex-vândalo.
Elvis foi a primeira paixão de Eustachio. Antes mesmo dos Beatles ou das primeiras e muitas namoradinhas conquistadas como garoto do rock natalense de inglês afiado.
O enceto de tudo foi no SCBEU onde o amigo Gileno Azevedo emprestara um compacto de Elvis, ainda em 1964, e recomendou comprar uns na MM Costa, a única loja de discos de Natal à época, situada à avenida Rio Branco.
Eustachio aos 15 anos dublando Elvis no SCBEU
“Em um ano eu tinha absolutamente tudo que o Elvis tinha lançado até então. As menininhas teenagers ficavam malucas para ver as capas dos discos”, recorda.
Eustachio logo passou a dublar o Rei do Rock em shows no VIP Show do ABC Futebol Clube, em Petrópolis, e no evento anual Quermesse da Lagoa, promovido na Lagoa Manoel Felipe, na hoje Cidade da Criança.
Por lá também cantava o amigo Gileno, que o apresentara a Elvis anos antes e mais tarde se tornaria ícone da Jovem Guarda com a dupla Leno e Lilian.
Isso até que o amigo Paulo Rezende trouxe de São Paulo um compacto de I Wanna Hold Your Hand, dos Beatles. “Quem gostava de Elvis, de Pat Boone, era meio intrigado dos Beatles. Mas fui tragado pela música dos caras”.
E nascera aí o embrião para Os Vândalos e pela coleção quase inimaginável de material beatle.
Após o “incêndio” de cupins, sobrou, além dos compactos de Elvis e uns poucos e excelentes vinis, todo o acervo bibliográfico não só de Beatles e Elvis, mas do rock, do blues, dos grandes e médios artistas dos anos 60 e 70.
Souvenires dos Beatles e de bandas de rock também pululam em cada cantinho da casa. Broches, posters, miniaturas, esculturas, quadros, ingressos dos tantos shows que o próprio Eustachio compareceu, porta uísque, fotos de idas a Liverpool, ao Dakota onde Lennon morreu…
As raridades começam já na garagem muitas vezes usada para ensaios de rock em outrora. Um cartaz original do show dos Beatles no Chrysler Arena, em 1965 é a peça mais rara – presente de um amigo que compareceu ao show.
Mas é mesmo a bibliografia onde mora a riqueza. Livros raros, livros caros, livros curiosos, livros definitivos não só dos Beatles, mas de cada um dos quatro Beatles. E não só de cada um, mas também dos principais artistas da época. E não só da década de 60, mas da década de 70. E não só de rock, mas de jazz, soul, blues, tropicália…
Talvez 70% dos livros sejam em inglês. Muitos sequer foram traduzidos no Brasil. E quando são, Eustachio compra de novo. É a compulsão do colecionador.
Dos que mais gosta está o ‘Hotel California’, de Barnety Hoskyns, um volumoso livro que traz um apanhado biográfico de artistas setentistas, como Johny Mitchell, Eagles, Neil Young e muitos outros.
Ou ainda o documentário ‘Blues Odyssey. A jorney to Music’s Heart & Soul’, um tributo pessoal de Bill Wyman aos músicos que o inspiraram a pegar um baixo e tornar-se um dos membros fundadores da melhor banda de rock do mundo: os Rolling Stones.
Das últimas aquisições está uma edição especial de ‘Here Comes The Sun: The Spititual And Musical Journey of George Harrison’, escrito por Joshua M. Greene, ao módico preço de R$ 800, com quatro CDs, fotos e um sorriso estampado no rosto de Eustachio quando mostra a peça guardada entre outros prediletos em cantinho especial do seu quarto.
E na estante da sala, dezenas sobre Elvis, 13 dos melhores livros sobre Bob Dylan e as mais completas biografias de Crosby, Stills & Nash, do Led Zeppelin, dos Rolling Stones, de livros de música e poesia da geração beatnik, de toda a biografia musical do blueseiro Robert Johnson…
Entre as centenas de livros o mais valioso, raro e caro ainda será editado. Será a biografia sobre Os Vândalos, escrita pelo próprio Eustachio.
O livro está semipronto e imenso. Histórias, relatos, rico acervo de fotos e o recheio do saudosismo presente em cada página.
A ideia é angariar contribuições com os ex-integrantes da banda, a maioria residente em outros estados ou mesmo no exterior, e publicar o livro de forma independente.
“Acho importante para todos resgatar essa história. Não só pra gente, mas para quem vivenciou aquilo tudo ou quer conhecer aqueles anos. É a história de uma época, é a história de Fon, que nos deixou, e não só de uma banda que por cinco anos participou daquele sonho ilusório das canções de amor”.
Hoje, um velho garoto outsider, Eustachio mantém o astral do yeah, yeah, yeah daqueles anos mais alegres, da rebeldia inocente de James Dean. O sorriso bonachão coloca muitas cenas de época para fora. Mas nas entrelinhas, entre uma conversa e outra, o vândalo também cede espaço ao folk mais compenetrado de quem ainda guarda na lembrança um Bob Dylan de respostas aos ventos.
A chamada pública para o Edital Economia Criativa do Sebrae 2018 apresentou hoje o resultado para projetos nas áreas de música, audiovisual, artes visuais, editoração, artes cênicas, dança e artesanato.
A essência do edital é a economia de mercado pelo viés da cultura, que contribuam para estimular o potencial produtivo, inovador e empregador das atividades culturais e criativas. E este ano teve o adendo do incentivo à temática e à discussão sobre a participação do RN na Segunda Guerra Mundial.
Ao todo são R$ 300 mil distribuídos em sete categorias diferentes da cultura. E se os valores não são os ideais, são os possíveis e são praticamente os únicos vindos de editais lançados este ano, afora as leis de incentivo.
Os proponentes dos projetos aprovados deverão comparecer ao Sebrae/RN (sede à Av. Lima e Silva, 76) para a etapa de orientação e assinatura do Termo de Responsabilidade, a partir desta quinta-feira (9), das 9h às 12h, conforme ordem de chegada.
Lembrando que deve comparecer ao Sebrae RN o proponente do projeto ou alguém munido de procuração assinada pelo proponente.
Ano passado foram 33 projetos aprovados e um total de R$ 250 mil distribuídos. Veja os projetos aprovados clicando AQUI.
Do barreiro da Lagoa do Feijão das paneleiras; dos embrulhos das barras de sabão, quando começou a fazer arte, a ouro da Sociedade Acadêmica de Artes, Ciências e Letras de Paris: Guaraci Gabriel.
A arte de Guaraci Gabriel é como a ypajussara, a palmeira que dá nome ao bairro Pajuçara em que mora: alta, vistosa. De longe pode ser observada. O resultado de seu trabalho é misterioso como a copa da pajuçara, instigante, místico, mágico: requer contemplação demorada e análises mais acuradas para a tentativa de discerni-la, decifrá-la.
Ele gosta de grandiosidades. Tem suas excentricidades. Busca recordes. Ele é Guiness.
Tudo começou para ele na Lagoa do Feijão, município de São Pedro do Potengi, Rio Grande do Norte, onde nasceu. Seu pai, Júlio Gabriel Campos, tinha ali um pedaço de fazenda herdada, com vacaria, plantações e criações de subsistência. Era casado com dona Iraci de Souza Campos e tinham nove filhos. Um deles, nascido a 16 de julho de 1961, recebeu o nome Guaraci Gabriel Campos.
Na Lagoa do Feijão havia um barreiro. Dona Iraci, nas horas em que não estava dando conta da casa e cuidando dos meninos, moldava taças em argila.
– Era mamãe acocorada, moldando suas taças, e papai lendo cordel em voz alta; os meninos, em volta, pegando no sono, até a candeeira se apagar. Ele gostava do Pavão Misterioso.
Guaraci se interessou pela modelagem da mãe. Tinha mais afinidade com ela. Gostava do seu lado brincalhão, “vivia rindo, fazendo piada, brincando com tudo. Muito novo, eu fazia esculturas de corpos humanos, sem braços, sem pernas, sem cabeça. Eu me frustrava: ainda não sabia modelar.”
Não sabia, mas continuou tentando. Todos os dias, “eu tomava meu leite ferrado com pedra quente no curral e depois ia para a beira da lagoa ver as paneleiras moldando suas panelas de barro e bois, jumentos, carros-de-bois, vaqueiros. Eu adorava ver as coleções de peças que elas faziam.”
Guaraci e seus irmãos eram felizes, mas seu Júlio não gostava da vida dali. Vivera muitos dissabores quando da partilha da herança e dizia que um dia ia vender tudo e se largar no mundo, vivendo do jeito que quisesse, gastando o dinheiro.
– Dinheiro, pra deixar pra quem? Pra mulher, eu não deixo, que é pra ela não gastar com outro homem. Para os meninos, também não deixo, que é pra eles não brigar por herança.
Em Lagoa do Feijão, Guaraci recebeu suas primeiras instruções escolares. A professora da comunidade ia a sua casa e dava as aulas de primeiros números, primeiras letras.
O menino gostava de traquinagens. Ficava escondido “no mato” e quando as mulheres chegavam e se curvavam para tirar água do cacimbão, passava e levantava “aquelas saias compridas daquele tempo. Eu gostava de ver o pano em movimento”. Castigo, e; barro a fazer bonecos, para preencher o tempo, a ociosidade, “esquecer a raiva”.
Um dia, seu Júlio vendeu a fazenda e comprou o caminhão sonhado. Ia ganhar o mundo fazendo frete e se divertindo. Ele instala a família em Massaranduba, Ceará Mirim, monta uma bodega que deixa aos cuidados da mulher e filhos, e “dana-se mundo a fora em seu caminhão. Viagem que todo caminhoneiro fazia em uma semana, papai fazia em um mês, curtindo a vida, gastando o dinheiro obtido da venda da fazenda com raparigas e boemia. Mas voltava para casa.”
Na bodega, eram vendidas lascas de barras de sabão. Seu Júlio comprava quilos de revistas usadas na feira do Alecrim e trazia para o ritual coletivo dos meninos a rasgar páginas e embalar barras de sabão, produto muito procurado na bodega.
“As barras que eu embrulhava eram as mais vendidas. Eu gostava de ler o que trazia a página; de ver as gravuras impressas; não fazia os embrulhos de qualquer jeito, como meus irmãos: escolhia as páginas que continham as gravuras que achava mais interessantes e dava destaque a elas, deixando-as à mostra, na face exposta do produto. Eu era o mais lento. O que menos sabão enrolava, mas as barras que eu embrulhava eram as que vendiam primeiro. Sempre buscava a que melhor vestisse o pedaço de sabão. Arte mesmo, acho que iniciei a fazer aí.”
Quando nas horas atrás do balcão, continuou na modelagem do barro, confeccionava bois e bonecos já completos. “Eu botava no balcão e o povo comprava”.
Guaraci dividia seu tempo entre a bodega e a Escola Isolada de Massaranduba, onde estudou até o 5º Ano. O ginasial fez na Escola Agrícola de Ceará Mirim, interno.
– Já meio cansado das farras mundo afora, papai resolveu comprar uma casa em Igapó, para que os meninos pudessem estudar na capital, como insistia minha mãe.
Concluiu o curso de Edificações, da ETFRN, a Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, mas sua paixão era o desenho. Matriculou-se no curso de Desenho, da mesma escola, “mas não era o que eu queria. Era o desenho de régua e compasso, desenho técnico; eu queria o desenho artístico. Fiquei frustrado, mas conclui o curso.”
Na Escola Técnica Federal, ele despertou para a existência de um ateliê, dirigido pelo professor Thomé Filgueira.
“Eu chegava colado à parede e botava a cabeça na porta. Gostava de ver os quadros, mas tinha vergonha de entrar. Passava todos os dias, e já entrava, circulava entre as peças, conversava, até que Thomé percebeu e me perguntou se eu queria pintar. Eu disse que queria; ele me deu uma tela, tintas e pincéis e disse: pinte. Thomé tinha um estilo muito próprio, dele, não impunha aos seus alunos qualquer fórmula mágica de ensinamento da arte. Ele instruía e apostava na criatividade de seus alunos, deixava-os à vontade para pintar o que quisessem, como quisessem.”
– No fim de ano, ele promovia uma exposição coletiva, com os trabalhos de todos os alunos. Na época do ateliê, eu só trabalhava com tela e tinta. Pintava quadros expressionistas. Vendia todos. Quando vendi o meu primeiro quadro, me lembrei da negra Joana Sabina, minha professora lá da comunidade da Lagoa do Feijão. Ela passava de casa em casa, ensinando aos meninos. Corria as quatorze casas do lugarejo. Um dia, ela disse para minha mãe: Iraci, bote esse menino numa escola de arte… Aquilo me encheu de sonhos grandes. Eu queria ser grande. Ser o maior. Ser um artista. Passei dois anos no ateliê de Thomé. Lá, conheci Marcelus Bob, João Natal, muitos artistas que estavam despontando para a vida artística da cidade. Foi um tempo muito proveitoso.”
Fora da ETFRN, agora Guaraci Gabriel está no mundo. Edificações? Desenho Técnico? Começa a fazer esculturas de médio porte em diversos materiais: bronze; ferro; chapas metálicas. E a inserir sucata ao seu trabalho, que cresce cada vez mais em dimensões. Sua arte já não se satisfazia com os limites de uma galeria de arte; queria as ruas; lugares que muitas pessoas transitassem e pudessem vê-la de longe. Parte a frequentar sucatarias e a sonhar cada vez mais alto.
Neste mês, as celebrações do Dia Mundial do Rock reacenderam uma discussão travada nas últimas décadas: o rock morreu? Aproveitando a data de hoje, dos 75 aninhos do ainda jovem Mick Jagger, vamos discutir o assunto?
Entusiastas do gênero responsável pela moldura cultural do Ocidente entre as décadas de 1960 e 1990 (aqui no Brasil, até fins da década de 80, penso) acreditam que sim, que o rock bateu as botas.
O argumento contrário provém, sobretudo, dos atuais rockers. Mergulhados na cena musical atual de streamings, festivais independentes e divulgação virtual, eles assistem de perto a cena e defendem a qualidade do som atual.
Mas a discussão vai além. Não é qualidade. Ou não só isso. É comportamento. É influência. É representatividade. E isso o rock perdeu faz décadas.
Minha opinião é que o rock sobrevivia em coma já no início dos anos 90. Fumou um último trago com o Guns e sucumbiu junto com a morte de Kurt Cobain. Ou deu lá seu último suspiro com Amy.
E a morte de figuras icônicas já influenciou notoriamente a queda de outros gêneros musicais menos sortidos de ídolos e referências, como Frank Sinatra no jazz.
Mas, claro, não seria o fim do Nirvana que sacramentaria um comportamento cultural. Sim, porque o rock, desde sempre foi muito mais do que música. Unido ao jornalismo contracultural ou publicações como a Rolling Stone, moldou gerações e influenciou o desenrolar da história.
Muitas pedras precisaram rolar para enterrar o poder e a história construídos ao longo de décadas de suor, guitarras, sexo e drogas.
As novas tecnologias diluíram a possibilidade de ascensão do rock. Adolescentes da Geração Y ouvem música pelo celular no ônibus, no intervalo da aula. Música baixada de graça. O consumo de música, em geral, é massificado e homogêneo, solúvel.
Ninguém junta mesada para comprar discos, CDs; produtos físicos. Ninguém valoriza ou cultua informações do catálogo, das composições, da produção dos álbuns. Ninguém coleciona mais nada.
Ou seja: a idolatria se perdeu. E com ela, os grandes astros, os ícones, a rebeldia, os hits. O rap sugou a rebeldia do rock adolescente de outrora. Ultrapassou fronteiras da periferia e tem sido a voz da transgressão juvenil.
Sem sustentação de “público fiel”, de fãs, de espaço nas rádios, o rock tem se valido de nichos independentes, para nichos de público.
Nas paradas ou mesmo no streaming é tarefa árdua encontrar bandas ou artistas do rock legítimo. No Brasil, então, dominam os MCs da ostentação ou os sertanejos sem chapéu; é uma “sofrência” só.
E não vale procurar pelo rótulo de classificação. Vale escutar e definir se é rock ou não. Muitos estão camuflados em arranjos do pop mais puro e moderno, com baterias eletrônicas e outros recursos, digamos, sem parentesco próximo com o rock.
De tanta escassez, músicas de carinhas como Bruno Mars e Di Ferrero têm sido taxadas de rock. Um dos novos hits brazucas, a canção Pesadão, tem a MC Iza e o rótulo de rock, talvez pela parceria com Falcão, ex-integrante d’O Rappa.
Mesmo o Pop, primo-irmão caçula do gênero, tem sido atropelado por outras “etnias” musicais. E quando se busca o rock raiz se busca a nostalgia. E lá estão no topo bandas icônicas dos últimos tempos da indústria fonográfica, como Red Hot Chili Peppers e Oasis.
Opinei mais acima do último suspiro pela Amy antes da guitarra parar de bombear o sangue do rock. Mas os deuses nunca morrem. Talvez vagueiem por aí como zumbis em busca de súditos. A chama nunca apaga. Está aí. Está em cada adolescente rebelde. Em cada vontade de transgredir.
E isso não é velho nem é novo. É nato! Portanto, o rock não precisa ser o antes. Precisa apenas ser verdadeiro; precisa ser. Não precisa, necessariamente, ser raivoso, mas transmitir alguma rebeldia, alguma autoridade própria, independente. Alex Turner ou o The National estão aí como bons representantes de um rock soturno, lento e de bom gosto. Mas guitarras preponderantes ajudam.
Geração Beyoncé. Geração Anitta. E agora Pablo Vittar. Nada contra, mas sinto falta do som que ouvia onde quer que tivesse. Se ligasse o rádio, na parada de ônibus, na TV, das discussões com os amigos. Sinto falta das lojas de discos repletas de ídolos do rock. Do Rock in Rio com rock e contestação. Das bancas de revistas com posters e revistas com o tema.
Sinto falta. E talvez isso se chame saudade. E saudade talvez se sinta do que está distante. E o que está distante, quem sabe, um dia volte.
Dominguinhos fez show no Rio Grande do Norte em 2010. Talvez tenha sido o último. Foi uma bonita apresentação no tradicional Forró da Lua, espaço abrigado no complexo do Museu do Vaqueiro, que inclui ainda a pousada Coice da Burra.
Eu era um jovem repórter do caderno de Cultura do jornal Diário de Natal quando fui convidado pela assessoria de imprensa do Museu do Vaqueiro para cobrir esse show de Dominguinhos. Eu, o também jornalista Jackson Damasceno e Dominguinhos ficamos hospedados na mesma pousada Coice da Burra.
O compositor, instrumentista, já vencedor de um Grammy Latino em 2002, concorrente ao prêmio em 2007 e que venceria novamente em 2012, autor de 45 discos, chegou pela manhã após longa viagem de carro, já que temia viagens de avião. Contava quase 70 anos naquele ano de 2010.
A InterTV, ali de passagem, logo se posicionou para entrevista, uma longa entrevista para o quadro da então apresentadora Margot Ferreira. Esperei. Esperei um bocado. Dominguinhos parecia desconhecer o tempo, a pressa. Na verdade parecia renegar qualquer advérbio de tempo.
Viagem longa, idade avançada e entrevista demorada. Ao fim do papo com a InterTV me senti inibido em tomar mais o tempo do cara. Aliás, abusar de sua paciência sem fim, de sua simplicidade. Ele parecia realmente cansado, debilitado. Nem eu e talvez nenhum jornalista do país desconfiava que ele já lutava contra o câncer de pulmão que o mataria três anos depois. Merecia o descanso para o showzaço de logo mais à noite.
Me apresentei rapidamente. Mal pronunciei meu nome, me identifiquei como repórter do jornal e já lancei a primeira das três ou quatro perguntas. Dominguinhos respondia tudo com uma paz rara de espírito. Demoraria mais uma hora se fosse preciso.
Quando terminou ainda brinquei. Sabendo do medo dele de avião, perguntei se voltaria dali com o amigo sanfoneiro Waldonys – notório piloto de avião cangueiro. Por duas vezes fui cobrir uma queda de um monomotor no interior do Estado, e chegando lá, adivinha quem era? Dominguinhos respondeu: “Hooome, deuzulivre”, e riu, já entrando ao quarto.
Surpresa minha foi na manhã seguinte. Quando cheguei para tomar café, Dominguinhos vinha saindo. Baixei a cabeça e continuei. Não queria perturbar o artista ou parecer inoportuno. E ouvi logo em seguida: “Bom dia, Sérgio!”. Deu dois tapinhas nas minhas costas e desejou bom café. Eu nem lembrava de ter dito meu nome a ele.
Esse foi o Dominguinhos que conheci.
Dominguinhos nasceu em 12 de fevereiro de 1941, em Garanhuns, agreste pernambucano. No próximo 23 de julho completará 5 anos de sua morte, em 2013. Ele já lutava contra um câncer de pulmão por seis anos.
Eles podiam estar em suas casas, diante de um computador, divertindo-se com jogos virtuais, como a maioria dos meninos das cidades dos nossos dias.
Não estão.
Estão na quadra gasta do Tecesol, celebrando a liberdade que usufruem em um bairro tranquilo, onde nasceram, estudam, vivem os dias de brincadeiras naturais à idade em que se encontram.
A verticalização das cidades, com seus edifícios residenciais, e a violência urbana têm imposto às novas gerações uma distância a cada dia mais acentuada das brincadeiras infanto-juvenis nas ruas dos bairros onde moram.
Brincadeiras simples, baratas, coletivas, que passam de geração para geração e existem há décadas, séculos, milênios. Brincadeiras que sofrem modificações de acordo com regiões e épocas, mas que mantêm essências de origens.
Os homens, os animais, desde que o mundo é mundo, brincam, medem forças em disputas lúdicas que os preparam para a vida.
Desde as mais remotas origens, a luta pela sobrevivência é real à condição animal.
Essa luta, suas técnicas, suas estratégias, seu preparo, sua cultura própria, sua essência, são ensinados pelos mais velhos aos rebentos que chegam às suas comunidades.
É necessário passar o saber da luta pela sobrevivência adquirido, sob pena de extinção de qualquer espécie animal.
Filhotes de pássaros brincam; bebês elefantes medem forças.
Desde os mais primitivos ajuntamentos humanos, desde os primevos tempos, as disputas por afirmação social entre os homens estão presentes no dia-a-dia de qualquer comunidade.
Viver é lutar permanentemente.
Às vezes, por razões diversas, os homens entram em guerra.
Ela é uma das mais antigas práticas da civilização, gera dor, mortes, muitas lágrimas, é motivo de orgulho a vencedores; atitudes, gestos, fazeres heroicos são enaltecidos por vencidos quando sucumbem diante de forças superiores.
A guerra é uma prática essencialmente humana: só o homem, entre todos os animais, a pratica.
Os irracionais só lutam ou matam em nome da sobrevivência. Os homens, muitas vezes, fazem a guerra por outros motivos. Muitas vezes, motivos irracionais.
As brincadeiras infantojuvenis, muitas delas, buscam imitar a vida adulta, a vida para valer, do trabalho, da busca cotidiana pelo pão.
Meninas imitam suas mães: suas bonecas são suas filhas, merecem seus cuidados e carinhos; meninos brincam de guerra, como se soldados em campos de batalha fossem.
Na luta pela sobrevivência, os homens foram se apropriando de saberes utilizados no fabrico de instrumentos que lhe auxiliavam na caça: consumir carne fazia parte de sua condição animal.
Foram muitos os instrumentos que o homem criou em sua atividade de caça e criação, pecuária; coleta e plantações, agricultura.
Muitos desses instrumentos criados para sua sobrevivência, foram, depois, utilizados na guerra, adaptados para novas funções, assassinas, destruidoras.
O arco e flecha dos nossos potiguares, usados na caça para alimentação, faziam a guerra quando seus territórios eram invadidos.
Desde cedo, os curumins potiguaras brincavam com eles: imitavam seus pais em caçadas nos derredores de sua tribo.
Como o arco e flecha, o estilingue é um instrumento longevo enquanto uso da humanidade.
Construído primitivamente com forquilha de madeira em forma de Y, na qual, nas extremidades superiores, se amarram tiras elásticas para que, depois de elastecidas e soltas, propiciem arremesso de pequenas pedras ou projéteis similares.
Em grande parte do Nordeste brasileiro, o estilingue é conhecido como baladeira.
Munidos de baladeiras, meninos do bairro de Neópolis mantém uma tradição lúdica bem natalense: a guerra de carrapateira.
Eles colhem o fruto da planta, que cresce fácil e espontaneamente em qualquer terreno baldio da cidade; montam suas trincheiras e, munidos de baladeiras e usando o fruto da carrapateira como projétil, fazem suas guerras de brinquedo, atirando-as uns nos outros, numa disputa sem número certo de participantes.
A guerra de carrapateira dos meninos de Neópolis foi muito praticada nos bairros que deram origem a Natal.
Não há um menino natalense, hoje, com oitenta anos de idade, que não a tenha brincado.
É uma prática lúdica que resiste aos tempos, a cada ano mais difícil de se ver; mas que ainda existe.
É um jogo simples, barato, sem regras definidas, divertido, e que ensina para a vida, mas que requer proteção: ao atingir o olho de um dos contendores, uma carrapateirada pode levá-lo ao vazamento ou à cegueira.
Se for brincar de guerra de carrapateira, tenha os seus olhos protegidos, adverte o imaginário Ministério do Folclore.
Ao longo dos anos de intensa dedicação, a obra da espanhola Yolanda Onandía é resultado de estudos de praticamente todas as disciplinas artísticas. Começou pela Escola de Restauração e Conservação de Bens Culturais de Madri, onde experimentou todas as técnicas pictóricas desde a antiguidade até os dias atuais. Nesse processo, praticou com antigas telas e retábulos em diversas igrejas e conventos de seu país, quase adivinhando as zonas desaparecidas de afrescos para repintá-los posteriormente, fabricando óleos, temperados ao ovo, dominando o rigatino e o pontilhismo. Realizou diversas esculturas (categoria de arte da qual é também muito admirada) e, na atualidade, tem também se dedicado aos trabalhos de caracterização e cenografia no teatro.
Em todo esse processo, tendo em vista a necessidade de registrar informações completas sobre as obras a serem restauradas, desde o início ao fim e até depois dos numerosos processos, tudo era documentado em imagens que ela mesma revelava para as aulas de fotografia. Desde então, se apaixonou por essa disciplina, fazendo da fotografia a base de sua força criativa. Na sequência, foi contratada como gravadora, quando também aprendeu tudo a calcografia, ou seja, a arte de gravar em metal através de várias técnicas, desde a gravura a buril ou talho-doce, até a água-forte, ponta-seca, água-tinta, maneira negra e o verniz mole.
Depois conheceu Francisco Bernal que, além de magnífico pintor, é licenciado em Belas Artes, com especialização em gravura, com ênfase na serigrafia artística e, ainda, havia trabalhado em Cuba, seu país de origem e formação, com artistas como Robert Rauschemberg que, diga-se de passagem, Yolanda Onandía tanto admirava.
A partir de toda essa aprendizagem, pode-se afirmar que, mesmo fundamentada na imagem fotográfica, a obra dessa artista não tem um único ingrediente, mas são muitos e, obviamente a mescla de todos eles que, de certa forma, também contribuíram para que criasse a sua própria estética ou maneira de ver e dizer do mundo.
Com toda essa bagagem, somado às novas ferramentas da tecnologia, onde se pode reproduzir com altíssima qualidade (Glicée) sobre uma obra que trata individualmente, Yolanda Onandía, ao manusear uma fotografia sobrepondo a um desenho e vice-versa, executa uma fusão com a máxima sutileza para que as parte se deem com um todo. Ela crê no sentimento que provoca uma obra, bom ou mau, mas que esteja distante da indiferença, ou seja, um fenômeno do qual se estabelece um afeto que, obviamente, produz um significado.
Conforme ela mesmo declara, a relação que tem com a arte é como alguém que chega num restaurante às cegas, ou seja, prova um prato que lhe oferecem e o degusta sem um julgamento a priori, sem informação, sem conhecimento dos ingredientes finais. O espectador experimenta as sensações inesperadas que podem transportá-lo a lugares e trazer-lhe lembranças.
Na verdade, o interessante em sua obra é o cruzamento de sentido, a sinestesia (do grego, syn, que quer dizer união e, esthesia, que significa sensação = synaisthesis), ou seja, a capacidade de “sentir junto” ou “sentir ao mesmo tempo”, uma maneira de ver a vida como um todo.
Assim como em Antonin Artaud podemos dizer de uma linguagem na desintegração da palavra ou a ruptura com a divisão da literatura em gêneros que engessam a criação, em Yolanda Onandía, podemos afirmar que sua obra é resultado de sua experiência de mundo, rompendo fronteiras onde as cores das letras e dos números escritos numa lousa se compõem de distintas texturas e temperaturas, assim como de sabores e odores. É uma maneira de experimentar o mundo como se fora a primeira vez, sem medo da “con-fusão”, sem temor de provocar um fenômeno onde, por mais distintas que sejam, as coisas se fundem.
Independentemente de conhecer todos esses processos que compõem a história de aprendizagem e da trajetória de Yolanda Onandía, bem como as motivações de seu processo criativo, o que conta é a mirada, o exercício do olho diante da sua obra, um flerte com o sublime, ou seja, a fala do lugar de um espectador que se socorre apenas da emoção diante desse acontecimento.
Não me interessa dizer aqui do lugar de um crítico da arte contemporânea. Obviamente, não posso escapar de meu paideuma, termo utilizado pelo poeta norte americano Ezra Pound, ou seja, o universo que compõe o meu olhar sobre o mundo. Mas, ainda me socorrendo de Pound, concordo quando ele afirma que nenhuma obra de arte prescinde de uma técnica, embora – ao mesmo tempo – como ele nos dá o exemplo sobre o poema que para ser escrito necessita de uma técnica, mas que essa técnica, na medida em que nasce o poema, ela morre, ou seja, para cada poema uma nova técnica que se insurge no momento mesmo da criação. E, por mais que os princípios materiais possam ser considerados os mesmos, o processo de criação de cada uma obra é única, como um acontecimento que não se repete.
Nesse sentido, a obra de Yolanda Onandía deve ser vista num processo dialético, ou seja, num sentido dialogal, onde as imagens não se resumem a um discurso do criador, mas de uma possibilidade de experimentar um permanente vir-a-ser. Suas telas trazem sempre um mote que é um motivo essencial de reflexão. Cada uma de suas telas se sustenta num convite ao interlocutor para estabelecer um sentido.
De alguma maneira, muitas de suas telas me lembram Mário Peixoto, em seu filme “Limite”, quando apresenta barco, algemas, cercas, janelas, portas e tantas outras imagens que nos levam a situações em que se inter-relacionam o universal com as circunstâncias singulares. Noutros momentos, Yolanda Onandía, apesar de valorizar e enfatizar os limites da condição humana, a artista parece propor uma saída ou, quem sabe, uma tentativa de dizer da possibilidade de fazer a existência suportável.
Em suas telas, transita entre o sórdido de uma realidade concreta de uma arquitetura imponente que dá as ordens para o sentido do mundo organizado, mas – ao mesmo tempo – o desorganiza na medida em que lhe coloca as contradições. São pequenos detalhes, embora imprescindíveis, que instauram uma inquietude, como uma maneira de se mostrar como se insere nesse mundo.
Não é por acaso a presença, em muitas de suas telas, de objetos como bloquetes de concreto, pneus, grades, estilhaços de vidro, varais, roupas dependuradas, pregadores, becos, alpendres, etc. Um intenso diálogo entre o estático da forma e o dinâmico do movimento entre os temas que nos remete a uma espécie de musicalidade por intermédio da valorização dos fundos definindo os espaços e dos horizontes rompendo as fronteiras em cada uma de suas obras, como uma fotossíntese, o processo de transformação da energia luminosa em energia química, onde a síntese é a luz. Embora, quase sempre, essa luz seja disseminada pelas nuvens que anunciam o caráter de volatilidade pela qual desliza a vida entre o real e o sonho.
Por outro lado, como uma espécie de proposta para um ritual de passagem, fazem-se presentes alguns degraus, tanto no sentido de uma escada quanto numa tentativa de sugerir o movimento em escala, uma necessidade de romper o imobilismo e caminhar para algum lugar. Assim, podemos nos reportar ao Starway to heaven (Uma escada para o céu), da banda inglesa Led Zeppelin, uma música, de certa forma atípica, mas carregada de acordes previsíveis de uma quase mística.
Num outro momento, pensando a escada como uma sucessão de degraus em direção a um determinado horizonte, também a presença desses degraus/escadas/escalas, nos levam ao movimento do vídeo de Jean Mitry sobre a música dodecafônica Pacific 231, de Arthur Honneger. Traduzindo, seria uma espécie de impressão visual e um gozo físico numa construção de um espaço sonoro.
Assim é a obra de Yolanda Onandía revelando a poesia por intermédio de suas telas/fotografias/pinturas/gravuras que, em seus motivos flutuantes e, ao mesmo tempo objetivos, atravessa com as cores o território de mosaicos que se unem através das nuvens, tanto no sentido etéreo da água em ebulição quanto na possibilidade de ver a verdade fluida que escorre por entre os pensamentos.
Em suas fotos-sínteses, apontando sempre um caminho onde o plural e o singular são verdades em perspectiva e, a partir da consciência das essências eternas, Yolanda Onandía, cria um universo em que une os versos e os inversos, dando um sentido ao caos, onde os princípios e os fins são os meios para dar forma a uma matéria desorganizada do mundo em que vivemos.
Nunca existiu um tempo bom para os músicos potiguares sobreviverem com dignidade nesta província. Alias, para quase nenhum artista potiguar que faz das tripas coração para pagar as contas e colocar o prato na mesa.
Coisas do mercado de uma terra que sempre pagou muito bem aqueles consagrados que vêm de fora e deixa uns trocados chorados a quem batalha por aqui.
O cachê continua indigno para um trabalhador diferenciado, que faz do talento o principal diferencial. Na realidade as ofertas dos produtores e donos de bares estão é piorando com o passar dos anos. Antes se pagava mal, mas eram valores compatíveis com o mercado da época. O tempo passou e hoje se remunera ao músico e local percentualmente pior do que há 20 anos.
“Crise”, “insegurança”, dizem os patrões ao mostrarem o baixo faturamento de uma noite após a apresentação. Muitas vezes mandam o músico para casa sem dinheiro, pois “só entrou cartão”, choram eles. Aí se passam três, quatro dias, uma semana ou nunca para se receber pelo trabalho feito.
É preciso se pagar valores dignos não somente para garantir a sobrevivência, como também para manutenção de instrumentos e acessórios que permitam uma melhor performances nos palcos. Mas isso não ocorre.
Essa é parte da sina que este artista vive no Rio Grande do Norte. Sem direitos respeitados, sem sindicatos fortes e com uma Ordem dos Músicos esfacelada pela incapacidade de lutar pelas conquistas. Um cenário devastador.
É cada um por si para enfrentar a noite. Não se sabe se vai receber. E com isso, boa parte dos artistas são obrigados a terem outras profissões para sobreviver: são funcionários públicos, jornalistas, profissionais liberais, ou exercer qualquer outra área que possa garantir o suficiente para subsistência.
E claro, para quem não se dedica somente a um ofício, a qualidade do trabalho não vai ser aquela desejada.
Respeitem o músico potiguar!
Nos versos de “Especulações em torno da palavra homem”, Carlos Drummond de Andrade nos traz um poema de reflexão filosófica em torno do sentido da vida. E a partir desse pensamento, sobretudo quando o bardo mineiro pondera – “Quanto vale o homem?/ Menos, mais que o peso?/ Hoje mais que ontem?” – lamentamos consternados a notícia de que a professora Dra. Conceição Flores foi demitida da instituição em que lecionava há vários anos.
Para nós, não cabe aqui julgar o estabelecimento, que todos já conhecem e sabem como tem lidado nos últimos anos com os profissionais de ensino, todavia, reconhecemos a grande profissional que Conceição Flores foi para o Curso de Letras, sendo um dos seu pilares.
Conceição Flores, não é apenas uma professora com titulo de doutora, ela é ser humano de muito valor. Uma profissional que ama o que faz, uma intelectual sensível, inteligente, que nos faz invocar o mestre Antônio Candido no seu conhecido ensaio “Direito à Literatura” para reforçar uma das grandes virtudes da mestra Flores, ela que tem uma das características mais nobres do ser humano: o senso de humanidade. Candido defende a humanização como “o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”
E essa grande virtude que Conceição Flores possui, inclusive por haver colaborado fortemente para formação do seu alunado. Com efeito, ela contribuiu para educar e formar centenas de profissionais que estão hoje no mercado e não apenas como professores, pesquisadores, mas também como verdadeiros entusiastas da nossa cultura literária.
Divulgadora da nossa literatura organizou inúmeros eventos em prol dos nossos autores, bate-papos, palestras, além de incentivar a leitura de autores potiguares, orientar ensaios, artigos, pesquisas e monografias. Para reforçar o que afirmamos basta mencionar uma de suas parcerias de longa data, com a poeta e escritora Diva Cunha, com quem massificou a divulgação da literatura potiguar entre estudantes do curso de Letras na instituição em que ambas ensinaram.
Tendo em vista os méritos e qualidades que a professora possui, fizemos a relação com o poema de Drummond, e se tivéssemos oportunidade de falar ao mestre, diríamos que o ser humano sempre valerá muito, independente de sua raça, cor, posição politica/ideológica, ou religião; tem o seu valor, uma importância única, um significado que transcende a sua existência e que tem relevância para os demais homens e mulheres.
Façamos uma reflexão no sentido de compreender onde e como estamos agindo em benefício do próximo. E que saibamos o nosso verdadeiro valor no mundo.
Sejamos como os discípulos do professor Keating no filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, que se revoltam contra a exclusão do professor do quadro docente da escola e, em um ato de protesto, sobem nas carteiras da sala de aula e recitam o primeiro verso do poema “Oh Captain! My Captain”, de Walt Whitman.
Que este texto tão singelo, expresse toda a gratidão que Conceição Flores fez em prol das nossas letras.
São poucos os que ainda chamam o lugar de Lagoa de Manoel Felipe.
Manoel Felipe, nem Cascudo soube dar origem. Foi um morador dos arredores da lagoa. “Não sendo sesmeiro, teria comprado a terra e nela residido para que seu nome recordasse, contemporaneamente, uma existência sem vestígios na micro-história da cidade do Natal (Diário de Natal, 14 de março de 1962, p.3)”, cita Itamar de Souza em sua Nova História de Natal.
Aparece em mapa holandês dos tempos da ocupação (1633/1654), junto a outras duas lagoas, supostamente as que até bem pouco tempo eram chamadas Lagoa Seca (Tirol) e Lagoa do Enforcado (Alecrim), ambas aterradas pelo crescimento da cidade rumo Sul.
No mapa, que não lhe dá nome, é mostrada como nascente do Rio Tiuru.
Desse rio, é que Natal, desde a sua fundação em 25 de dezembro de 1599, abasteceu-se de água por décadas, mais de três séculos.
Rio de tanta importância para a existência da cidade, que era chamado rio de Beber Água.
Foi em busca da água do rio de Beber Água, que surgiu o Caminho do Rio de Beber Água, que foi juntando casinholas em suas margens, até se tornar a Rua do Caminho do Rio de Beber Água, que viria a ser chamada, muito depois, Rua de Santo Antônio, depois que nela foi construída a Igreja de Santo Antônio dos Militares, inaugurada em agosto de 1766, segunda rua da cidade.
Na verdade, o Rio Tiuru ou Tissuru, como também era chamado, nasce na Lagoa Seca, mais a Sul, que corre para o norte e toma o oeste quando se encontra com as águas sobradas da Lagoa de Manoel Felipe a caminho do Potengi.
Rio permanente, que mesmo aterrada a Lagoa Seca e conduzidas suas sobras de água através de manilhas enterradas, ainda vive com seus tintins, carás, piabas, muçus, mas sem seus jacarés.
A lagoa é lugar citado em texto de 1743.
Segundo Cascudo, o “licenciado Francisco Alves Bastos era proprietário da região. O registro da ‘data’ é de 15 de junho de 1743, e o peticionário recebeu quatrocentas braças de comprido e outras tantas de comprimento pelo Rio de Beber Água acima, compreendendo uma lagoa.” Essa Lagoa é a futuramente chamada Lagoa de Manoel Felipe, assim já conhecida nos primeiros anos do surgimento do bairro do Tirol, onde hoje está inserida, entre as avenidas Prudente de Morais e Rodrigues Alves.
Uma nota não assinada em A República da época diz que os moradores dali “resolveram denominar a Lagoa de Manoel Felippe por Lago de Genezareth”. Isso indica que a Lagoa de Manoel Felipe já era assim chamada e que a tentativa de mudar seu nome não vingou, já que, embora quase no esquecimento, permanece até hoje.
Até hoje ainda perdura o clichê de que Elvis jamais gravou um trabalho à altura de seus revolucionários primeiros álbuns dos anos 50. E que sua produção pós-exército seria de pura reciclagem auto-indulgente. Nada mais enganoso. Lançado em 1960, Elvis Is Back é um retorno triunfal de um artista disposto a recuperar dois anos perdidos.
Combinando lindas baladas, country, pop e blues, este álbum é desafiador, sensual e comovente. Sua fantástica banda, que incluía o divino quarteto vocal The Jordanaires, conduz Presley às mais fantásticas vocalizações de sua carreira até então.
Das libidinosas “Fever” e “Such A Night”, passando pelos lancinantes blues de “Reconsider Baby” e “Like A Baby”, Elvis tangencia o abismo e alça voos em interpretações espetaculares. Como se não bastasse, a brilhante produção de Chet Atkins e Steve Sholes garantiram a melhor sonoridade em um álbum de Presley desde sua meteórica ascensão. Das fantásticas e produtivas sessões do disco ainda se destacariam joias pop de dimensões planetárias lançadas somente em singles: “It’s Now Or Never” e “Are You Lonesome Tonight”.
Sucesso espetacular em sua época, este álbum foi injustamente relegado a um segundo plano em décadas posteriores. Uma feliz reavaliação de sua importância começou a partir dos anos 2000. Nada mais justo.
Este é seguramente o primeiro disco do “King” quando penso na teoria da ilha deserta. Eu o protegeria com unhas e dentes das tempestades e furacões.
Let The Good Times Roll: Remember The King.
A Ribeira não era só bairro, era vida e tipos que moviam a cidade, faziam-na humana e inteligente, conhecedora do mundo via boca da bbarra do Potengi.
A Ribeira que eu conheci na infância não é a Ribeira de hoje, esquecida da população e dos governantes.
Era uma Ribeira ativa onde o cais da Tavares de Lyra tinha vida e albergava misteriosas caravelas vindas de não sei onde e que faziam povoar de piratas e aventuras minha imaginação de menino.
Era a Ribeira do porto movimentado, quando as estradas ainda não tinham rasgado os interiores e todo o transporte era feito por mar, necessitando dos trabalhos do despachante aduaneiro, com seus escritórios movimentados e gente a conversar sobre tipos e acontecências quase que só da cidade, já que o resto do mundo era distante e, portanto, de pouco interesse.
Era a Ribeira do casarão do maestro Alcides Cicco a abrigar araras de coloridos especiais e um sem número de passarinhos, que o atraiam a uma conversa com o meu avô despachante, José Alexandre, também ele um amante de canários belgas, pintassilgos, galos-de-campina e curiós, com seus cantos dobrados e de sonoridade sem igual.
Teatro Carlos Gomes, hoje Alberto Maranhão
Ribeira do Teatro Alberto Maranhão onde reinava, vitaliciamente, o circunspecto senhor teatrólogo Meira Pires, a contar vantagens sobre suas peças que nunca vi encenadas, mas que enchiam de curiosidade a minha imaginação.
Do casarão de Cascudo, que nunca ousei adentrar, devido ao respeito à figura que costumava ver às tardinhas em conversas amenas na velha Confeitaria Delícia do português Olívio Domingues da Silva, com sua perna dura e a sua alma imensa a distribuir sonhos de valsa e torrones que, claro, iam para a conta do meu pai, Zé Alexandre Garcia, a tomar umas no reservado com Newton Navarro, Dozinho, Mozart Silva e tantos outros boêmios que povoavam com humor e sabedoria o centenário bairro.
Como esquecer um Zé Areia, aquela figura que chegava e que atraía a atenção de todos com os seus repentes geniais a responder provocações propositais? Impossível.
A Ribeira não era só bairro, era vida e tipos que moviam a cidade, faziam-na humana e inteligente, conhecedora do mundo, via boca da barra do Potengi, cenário de memoráveis regatas bravamente disputadas entre remadores dos clubes náuticos da rua Chile.
Ribeira das companhias de pesca e da Estação Ferroviária, lenta, barulhenta e misteriosa.
Ribeira de jornalistas e de jornais, de prostitutas e prostíbulos famosos, que nunca adentrei mas que atraiam a minha curiosidade em suas janelas nem sempre escancaradas.
Ribeira do nojo do Beco da Quarentena. Do mundo fantástico das publicações da Agência Pernambucana. Dos bares invadindo calçadas. Das peixadas. Dos salões de barbearia onde de tudo se conversava. Dos salões de jogos. Dos engraxates e sapateiros a céu aberto, em suas cadeiras imensas para mim, garoto.
Ribeira nostálgica do quiosque e da pontezinha do jardim chinês que quase a memória esqueceu, destruído que foi pela construção da nova rodoviária que parece, levou-o para nunca mais voltar.
Ribeira do Grande Hotel e do major Theodorico, homem lendário a pastorar diariamente a praça da igreja do Bom Jesus das Dores, a abrigar ossos dos Amorim Garcia, lacrados em urnas em suas paredes já centenárias.
Ribeira inesquecível de “A República”, da Capitania dos Portos e da vacina contra a febre amarela, terror dos viajantes. Ribeira de Luís Tavares e de suas estórias de brigas com gringos e policiais dos idos da guerra.
Ribeira sem dúvida inesquecível. Poeticamente mágica e deliciosa, professora de gerações.
Ribeira bancária, alfandegária, comerciária, gráfica.
Ribeira cartorial.
No início havia a banda… e a fábula do verão infinito da Califórnia. E as doces harmonias dos irmãos Wilson: Brian, Carl e Dennis apoiados pelo primo Mike Love e pelo agregado Al Jardine.
O Surf Rock era pura alegria e arrebatamento juvenil nos anos de ouro do “século sanduíche” de Eric Hobsbawn. Praias, festas, carrões, a garota perfeita… Little Surfer Girl…
Mas havia Brian. O menino com voz de menina. O arquiteto das harmonias. O inquieto. O tristonho. O sonhador. O ambicioso. O louco.
O sucesso comercial arrebatador do grupo não foi o suficiente para ele. Depois de um colapso nervoso no meio de uma turnê e inspirado no brilhante Rubber Soul dos Beatles, Brian arquiteta o espetacular single Good Vibrations. Não foi o bastante. Determinado em elaborar uma obra que superasse a revolução da invasão britânica nos EUA, ele dispensa os membros da banda e se cerca de músicos de formação erudita e trabalha letras e músicas com Tony Asher, um amigo especialista em jingles. “Pet Sounds” começa a surgir. Experimentações variadas, estranhos sons de animais, instrumentos inusitados. Tudo aqui se funde numa alquimia desenfreada de beleza e loucura emoldurada em letras instigantes e melodias. E que melodias… lindas, tristonhas, impactantes, brilhantes.
Da alegre abertura de “Wouldn’t It Be Nice” ao fechamento com a reflexiva “Caroline No” tudo se transforma em expressão do sublime em “Pet Sounds”. Paul McCartney, amigo e rival de Brian, declararia mais tarde que “God Only Knows” é sua canção predileta de todos os tempos.
O álbum foi lançado em 1966, assustando críticos e decepcionando os fãs tradicionais da banda. Um ano depois, os Beatles lançariam Sgt Peppers e Brian cairia num terrível estado de desintegração mental e física. Ficaram sonhos e sons. O álbum é hoje aclamado como um dos mais perfeitos já lançados.
E Brian Wilson?
Um menestrel renascentista perdido no século XX? Um Van Gogh encharcado de Rock’nRoll? Nada disso parece ter importância.
Ao contrário de todas as previsões, ele continua entre nós. Compondo, cantando, sonhando.
Bem adiante da Quinze, à direita da pista que levava a Parnamirim, fora do perímetro urbano, surgiu uma presença marcante no lugar que deu nome ao bairro: uma torre transmissora das ondas sonoras da Rádio Cabugi, fundada, “em Natal”, pelo senador Georgino Avelino, em 19 de janeiro de 1954, margeava área seca da Lagoa Nova.
Naquelas imediações, lado esquerdo da pista, em terras pertencentes ao América Futebol Clube, existia a Granja Potilândia.
Havia anos, o América não disputava o campeonato promovido pela FND, a Federação Norte-riograndense de Desportos. Estava construindo nova sede à Avenida Rodrigues Alves, Tirol, e precisava de muito dinheiro para isso.
Para arrecadar fundos para essa construção, a diretoria do clube resolveu vender o terreno da granja, loteando-o. Em fevereiro de 1961, foram iniciadas as vendas de 283 lotes, aos poucos transformados em belas residências, o lugar absorvendo o nome da granja.
Considerada área fora do perímetro urbano, o grande empecilho para a expansão da cidade rumo sul era a água.
Apesar disso, utilizando água de poços tubulares, em 1967, três grandes frentes de trabalho estavam abertas nas proximidades dessas primeiras casas de Potilândia.
Do lado direito da estrada de Parnamirim, iniciavam-se obras de construção do que viria a ser o estádio Castelão, depois chamado Machadão, já demolido, onde hoje está a Arena das Dunas; do lado esquerdo e à frente, conjuntos residenciais eram construídos pelo IPASE e pelo SESC, respectivamente.
Inaugurado o Estádio Humberto de Alencar Castelo Branco, o Castelão, em 14 de junho de 1972, Potilândia já contava com duas mil residências e o bairro de Lagoa Nova começava a se expandir para oeste, buscando terras à direita da Avenida Prudente de Morais, em direção do que era chamado Carrasco, hoje bairro do Bom Pastor. Nesse lado do bairro, seriam construídos os conjuntos residenciais Lagoa Nova I e Lagoa Nova II.
Entre Lagoa Nova e Bom Pastor, com a chegada de equipamentos urbanos e outros conjuntos residenciais, dois outros bairros surgiam: Nossa Senhora de Nazaré e Dix-Sept Rosado.
Para adiante do bairro de Lagoa Nova nascente, logo surgiriam Capim Macio e Neópolis, ao longo da BR, e; Candelária, no prolongamento sul da Prudente de Morais.
Com a chegada à Lagoa Nova do Agnelão e do Campus Universitário, que começou a ser construído em 1972, à frente do conjunto do SESC, Natal, antes pequenina, começa a se tornar cidade grande, tomando um impulso nunca antes visto ou vivido em sua história.
Foi Lagoa Nova, com a sua Quinze, que ainda se mantém quase a mesma de 80 anos atrás, a fonte que, a partir dos anos 70, forneceu planos e direções ao crescimento incontido da cidade, quando, ali, exatamente onde secara a velha lagoa dita Nova, foi instalado o Centro Administrativo do Governo do Estado do Rio Grande do Norte, em dezembro de 1974.
Uma Lagoa Nova, seca, fértil, alvissareira como as notícias de crescimento que chegavam à cidade via sua torre transmissora de ondas da velha Rádio Cabugi, onde hoje está instalada a TV de maior audiência do Estado, a Inter TV Cabugi.
Cantor de voz eletrizante, Tim Buckley poderia ser facilmente considerado um dos mais subestimados artistas da história da música. O trovador folk americano gravou intrigantes discos entre 1966 e 1974.
Goodbye And Hello, lançado em agosto de 1967, é seu segundo e mais inspirado trabalho. São dez espetaculares canções autorais. Algumas delas feitas em parcerias com o poeta e amigo Larry Beckett. A influência do disco vem do pop barroco e psicodélico de bandas como The Byrds ou The Beatles. Mas Tim consegue imprimir uma atmosfera divinamente revolucionária ao seu trabalho.
“No Man Can Find The War” traz os ecos do napalm do Vietnã. Já “Hallucinations” traz muito da atmosfera da banda de seu conterrâneo Jim Morrison. Seu talento em construir lindas melodias é amplificado por sua destreza na viola de doze cordas. A triste balada “Once I Was” mistura uma linda gaita de western spaghetti com uma delicada poesia.
A beleza estonteante de “Phantasmagoria In Two” vem cheia de lindos versos: “Se você me contar mentiras, eu chorarei por você. Fale-me de pecados e eu sorrirei”.
“I’ll Never Asked To Be Your Mountain” poderia ser um pedido de desculpas ao filho que ele deixou para trás: Jeff Buckley. “Pleasant Street” traz vocais espetaculares e melodias doloridas. Já “Morning Glory” inspiraria os astros da banda inglesa Oasis décadas mais tarde.
Goodbye And Hello poderia ter transformado Buckley em um astro. Mas apesar do relativo sucesso da crítica, o álbum teve vendas pequenas e não passou do 171¤ lugar nos charts americanos.
A plateia inglesa seria mais receptiva no ano seguinte, quando ele fez espetaculares e concorridos shows em Londres.
Tido como influência de peso para artistas como George Harrison, Robert Plant, Neil Young ou Van Morrison, a obra de Tim ainda não recebeu seu merecido resgate pleno.
Enveredando pelos caminhos do jazz experimental em seus trabalhos posteriores, Tim Buckley se afastou cada vez mais do gosto musical das massas na virada para os anos 70.
Sua morte aos 28 anos em 1975, de overdose de heroína, foi como uma fábula triste.
Mas Goodbye And Hello segue antológico e será sempre lembrado como seu álbum mais acessível e exuberante.
grave greve
grana grossa
grita gruda
grudenta greluda
grinfa greve
grunf! grunf!..
ordem desordem
progresso regresso
ou vai ou racha
ajoelha reza…
quiporra-é, mané?
boiôiô! boiôiô!.. brother!
tocou boiôiô geral!
zumba!
quizumba!
zumba!
ou dá ou desce
o petróleo é nosso ou num-é?
eita nó da porra!
etanol da porra!
gasolina diesel querozene
imposto ICMS
fim do fins confis…
oxê! que diabo é, mano?
dominus Temer vobiscum…
et cum Lula espiritum tuo…
oremus et biritemus…
chama Moro!
chama os ôme!
aaah… men!
aaah… men!
… égua!… teu anel rodoviário fechou mesmo, cumpadi?
… diga aí…se temcupáeu?
O Carneirinho de Ouro era um festivo clube de lazer, fundado em 1936, à Avenida Tavares de Lira, Nº 54, esquina com a Rua Doutor Barata, 1º andar.
Esse ponto da Ribeira era conhecido como a Esquina do Mundo, pois era ali que se reuniam comerciantes, industriais, exportadores e importadores, comerciários, políticos, profissionais liberais de toda ordem, para o bate-papo de fins de tarde, conversas amistosas ou acaloradas discussões.
Segundo Mussolini Fernandes, o clube nasceu de uma brincadeira na porta da Charutaria de José Augusto, instalada na escadaria que dá acesso ao andar superior do prédio, onde funcionou de 1936, ano de sua fundação, até 1940, quando se estabeleceu no lugar em que ainda permanece, e onde se jogava dama, dominó, bilhar, xadrez, gamão, víspora, baralho e outros.
O nome teria sido sugestão de João de Almeida Barbalho, sócio-fundador.
Essa versão não é a mesma contada por Luís G. M. Bezerra. Segundo este, nove idealistas, comerciários, bancários, desportistas, tinham para o intervalo do almoço do comércio, encontros diários na praça fronteiriça ao cais da Tavares de Lyra e resolveram fundar um clube sócio/esportivo/cultural com a finalidade de conseguirem um ponto de encontro para confraternização.
Logo que fundado, a 08 de agosto de 1936, eles teriam alugado o primeiro andar do prédio da Tavares de Lyra, Nº 37, esquina com a Rua Chile, e aí teria sido a primeira sede da agremiação, que só em 1940 se transferiu para o primeiro andar onde hoje ainda funciona, e para onde fez a mudança de seus bilhares e sinucas. Sede própria, adquirida (só o primeiro andar do prédio) em 1975, na gestão de Júlio César de Andrade.
O clube reuniu importantes pessoas da cidade e chegou a formar equipe de futebol com seus sócios, entre os quais Djalma Maranhão, e disputava partidas amistosas em Natal e interiores, onde eram calorosamente recebidos, muita bebida e comida depois das partidas disputadas, em farras que se prolongavam até de manhã. Afora o futebol, o clube tinha equipes que disputavam torneios de pesca, futebol de salão, provas de pedestrianismo, sinuca, bilhar.
Mussolini conta que no começo não havia mensalidades, mas o sócio que faltasse a qualquer sessão da tarde pagaria rodada dupla de café para os presentes. O presidente do clube tinha mandato de uma semana e sua primeira diretoria foi aclamada em solenidade no Theatro Carlos Gomes, hoje Alberto Maranhão, tendo como primeiro presidente o juiz de Direito da Comarca de Baixa Verde, hoje Município de João Câmara, João de Brito Dantas.
Tornou-se reduto da boemia da velha guarda natalense, chegando a ter uma média de cento e vinte sócios. Hoje, mesmo com uma taxa de contribuição mensal de apenas R$ 5,00 e Ivandir Araújo de Lima, o Caixão, na presidência, o clube vive um de seus piores momentos: resiste com apenas dez sócios, que ainda disputam ali partidas em duas desbotadas sinucas gastas, servidos por um bar administrado pelo arrendatário Pedro Alcântara Machado.
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