Yolanda Onandía: Sentido ao caos

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Ao longo dos anos de intensa dedicação, a obra da espanhola Yolanda Onandía é resultado de estudos de praticamente todas as disciplinas artísticas. Começou pela Escola de Restauração e Conservação de Bens Culturais de Madri, onde experimentou todas as técnicas pictóricas desde a antiguidade até os dias atuais. Nesse processo, praticou com antigas telas e retábulos em diversas igrejas e conventos de seu país, quase adivinhando as zonas desaparecidas de afrescos para repintá-los posteriormente, fabricando óleos, temperados ao ovo, dominando o rigatino e o pontilhismo. Realizou diversas esculturas (categoria de arte da qual é também muito admirada) e, na atualidade, tem também se dedicado aos trabalhos de caracterização e cenografia no teatro.

Em todo esse processo, tendo em vista a necessidade de registrar informações completas sobre as obras a serem restauradas, desde o início ao fim e até depois dos numerosos processos, tudo era documentado em imagens que ela mesma revelava para as aulas de fotografia. Desde então, se apaixonou por essa disciplina, fazendo da fotografia a base de sua força criativa. Na sequência, foi contratada como gravadora, quando também aprendeu tudo a calcografia, ou seja, a arte de gravar em metal através de várias técnicas, desde a gravura a buril ou talho-doce, até a água-forte, ponta-seca, água-tinta, maneira negra e o verniz mole.

Depois conheceu Francisco Bernal que, além de magnífico pintor, é licenciado em Belas Artes, com especialização em gravura, com ênfase na serigrafia artística e, ainda, havia trabalhado em Cuba, seu país de origem e formação, com artistas como Robert Rauschemberg que, diga-se de passagem, Yolanda Onandía tanto admirava.

ALÉM DA FOTOGRAFIA

A partir de toda essa aprendizagem, pode-se afirmar que, mesmo fundamentada na imagem fotográfica, a obra dessa artista não tem um único ingrediente, mas são muitos e, obviamente a mescla de todos eles que, de certa forma, também contribuíram para que criasse a sua própria estética ou maneira de ver e dizer do mundo.

Com toda essa bagagem, somado às novas ferramentas da tecnologia, onde se pode reproduzir com altíssima qualidade (Glicée) sobre uma obra que trata individualmente, Yolanda Onandía, ao manusear uma fotografia sobrepondo a um desenho e vice-versa, executa uma fusão com a máxima sutileza para que as parte se deem com um todo. Ela crê no sentimento que provoca uma obra, bom ou mau, mas que esteja distante da indiferença, ou seja, um fenômeno do qual se estabelece um afeto que, obviamente, produz um significado.

Conforme ela mesmo declara, a relação que tem com a arte é como alguém que chega num restaurante às cegas, ou seja, prova um prato que lhe oferecem e o degusta sem um julgamento a priori, sem informação, sem conhecimento dos ingredientes finais. O espectador experimenta as sensações inesperadas que podem transportá-lo a lugares e trazer-lhe lembranças.

Na verdade, o interessante em sua obra é o cruzamento de sentido, a sinestesia (do grego, syn, que quer dizer união e, esthesia, que significa sensação = synaisthesis), ou seja, a capacidade de “sentir junto” ou “sentir ao mesmo tempo”, uma maneira de ver a vida como um todo.

Assim como em Antonin Artaud podemos dizer de uma linguagem na desintegração da palavra ou a ruptura com a divisão da literatura em gêneros que engessam a criação, em Yolanda Onandía, podemos afirmar que sua obra é resultado de sua experiência de mundo, rompendo fronteiras onde as cores das letras e dos números escritos numa lousa se compõem de distintas texturas e temperaturas, assim como de sabores e odores. É uma maneira de experimentar o mundo como se fora a primeira vez, sem medo da “con-fusão”, sem temor de provocar um fenômeno onde, por mais distintas que sejam, as coisas se fundem.

Independentemente de conhecer todos esses processos que compõem a história de aprendizagem e da trajetória de Yolanda Onandía, bem como as motivações de seu processo criativo, o que conta é a mirada, o exercício do olho diante da sua obra, um flerte com o sublime, ou seja, a fala do lugar de um espectador que se socorre apenas da emoção diante desse acontecimento.

Não me interessa dizer aqui do lugar de um crítico da arte contemporânea. Obviamente, não posso escapar de meu paideuma, termo utilizado pelo poeta norte americano Ezra Pound, ou seja, o universo que compõe o meu olhar sobre o mundo. Mas, ainda me socorrendo de Pound, concordo quando ele afirma que nenhuma obra de arte prescinde de uma técnica, embora – ao mesmo tempo – como ele nos dá o exemplo sobre o poema que para ser escrito necessita de uma técnica, mas que essa técnica, na medida em que nasce o poema, ela morre, ou seja, para cada poema uma nova técnica que se insurge no momento mesmo da criação. E, por mais que os princípios materiais possam ser considerados os mesmos, o processo de criação de cada uma obra é única, como um acontecimento que não se repete.

YOLANDA ONANDÍA – OBRA E DIALÉTICA

Nesse sentido, a obra de Yolanda Onandía deve ser vista num processo dialético, ou seja, num sentido dialogal, onde as imagens não se resumem a um discurso do criador, mas de uma possibilidade de experimentar um permanente vir-a-ser. Suas telas trazem sempre um mote que é um motivo essencial de reflexão. Cada uma de suas telas se sustenta num convite ao interlocutor para estabelecer um sentido.

De alguma maneira, muitas de suas telas me lembram Mário Peixoto, em seu filme “Limite”, quando apresenta barco, algemas, cercas, janelas, portas e tantas outras imagens que nos levam a situações em que se inter-relacionam o universal com as circunstâncias singulares. Noutros momentos, Yolanda Onandía, apesar de valorizar e enfatizar os limites da condição humana, a artista parece propor uma saída ou, quem sabe, uma tentativa de dizer da possibilidade de fazer a existência suportável.

Em suas telas, transita entre o sórdido de uma realidade concreta de uma arquitetura imponente que dá as ordens para o sentido do mundo organizado, mas – ao mesmo tempo – o desorganiza na medida em que lhe coloca as contradições. São pequenos detalhes, embora imprescindíveis, que instauram uma inquietude, como uma maneira de se mostrar como se insere nesse mundo.

Não é por acaso a presença, em muitas de suas telas, de objetos como bloquetes de concreto, pneus, grades, estilhaços de vidro, varais, roupas dependuradas, pregadores, becos, alpendres, etc. Um intenso diálogo entre o estático da forma e o dinâmico do movimento entre os temas que nos remete a uma espécie de musicalidade por intermédio da valorização dos fundos definindo os espaços e dos horizontes rompendo as fronteiras em cada uma de suas obras, como uma fotossíntese, o processo de transformação da energia luminosa em energia química, onde a síntese é a luz. Embora, quase sempre, essa luz seja disseminada pelas nuvens que anunciam o caráter de volatilidade pela qual desliza a vida entre o real e o sonho.

Por outro lado, como uma espécie de proposta para um ritual de passagem, fazem-se presentes alguns degraus, tanto no sentido de uma escada quanto numa tentativa de sugerir o movimento em escala, uma necessidade de romper o imobilismo e caminhar para algum lugar. Assim, podemos nos reportar ao Starway to heaven (Uma escada para o céu), da banda inglesa Led Zeppelin, uma música, de certa forma atípica, mas carregada de acordes previsíveis de uma quase mística.

Num outro momento, pensando a escada como uma sucessão de degraus em direção a um determinado horizonte, também a presença desses degraus/escadas/escalas, nos levam ao movimento do vídeo de Jean Mitry sobre a música dodecafônica Pacific 231, de Arthur Honneger. Traduzindo, seria uma espécie de impressão visual e um gozo físico numa construção de um espaço sonoro.

Assim é a obra de Yolanda Onandía revelando a poesia por intermédio de suas telas/fotografias/pinturas/gravuras que, em seus motivos flutuantes e, ao mesmo tempo objetivos, atravessa com as cores o território de mosaicos que se unem através das nuvens, tanto no sentido etéreo da água em ebulição quanto na possibilidade de ver a verdade fluida que escorre por entre os pensamentos.

Em suas fotos-sínteses, apontando sempre um caminho onde o plural e o singular são verdades em perspectiva e, a partir da consciência das essências eternas, Yolanda Onandía, cria um universo em que une os versos e os inversos, dando um sentido ao caos, onde os princípios e os fins são os meios para dar forma a uma matéria desorganizada do mundo em que vivemos.

Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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