O mundo ficcional de François Silvestre

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Nascido e criado em pleno sertão, François Silvestre de Alencar (1947) teve a sua formação nas cidades de Martins, Caicó e Natal. Depois aventurou-se por São Paulo, onde atuou como jornalista em alguns órgãos de imprensa da capital.

Jovem cheio de ideias, empolgado com o marxismo, tornou-se militante do PCR, vindo a sofrer na própria pele a repressão da ditadura militar pós-1964.

De volta a Natal, ingressou na Faculdade de Direito, mas teve dificuldade em concluir o curso, porque, de vez em quando, passava uns tempos na cadeia, acusado de subversão. Finalmente, obteve o tão sonhado diploma de bacharel, mas não seguiu, desde logo, a carreira jurídica; preferiu enveredar, novamente, pelo jornalismo.

Após uma experiência mal sucedida na política partidária, logrou aprovação em concurso público para Procurador do Estado (RN), cargo que passou a exercer.

No Governo Wilma de Faria foi nomeado presidente da Fundação José Augusto, entidade responsável pela política cultural do Estado, à frente da qual realizou importantes programas de difusão cultural, como, por exemplo, casas de cultura em várias cidades do interior.

François Silvestre de Alencar estreou nas letras com um livro de poemas, acentuadamente neorromântico, “Luz da Noite ao Vento Norte” (1979). Em seguida publicou “Rio de Sangue” (1981), contos, e “Dormentes -a Serra da Festa Encantada” (1983), novela em que a narrativa sobre utópica terra é intercalada com histórias que exploram o humor e o pitoresco de tipos sertanejos.

“Rio de Sangue” tem altos e baixos, revelando, no entanto, potencialidades de autêntico ficcionista. Os melhores momentos, justamente, são relatos da militância política do autor, na clandestinidade, e suas memórias do cárcere.

A PÁTRIA NÃO É NINGUÉM

Em 2002, François Silvestre surge com nova obra de ficção, “A Pátria não é Ninguém” (Natal: A.S. Editores). Mais uma vez ele se vale da memória, recriando-a, e amplia aquelas suas experiências das histórias curtas. E nos dá – fruto maduro – uma das melhores crônicas sobre os anos de chumbo. Embora julgando-a simples narrativa, construiu um romance, um verdadeiro romance, com todos os atributos próprios do gênero.

Essa obra, no meu modesto entender, afigura-se relevante pelo caráter de documento – painel das trevas -, mas, principalmente pelos aspectos formais, reveladores de um artesão da palavra, no pleno domínio dos instrumentos do seu ofício.

A ação romanesca desenvolve-se em três planos distintos, sem preocupações quanto ao ordenamento cronológico: 1) Os horrores da era Médici; 2) a distensão “lenta, gradual e segura”. vale dizer, a ditadura agonizante; 3 ) a infância sertaneja do narrador no sertão pernambucano. Pedaços, aparentemente desconexos, formam um todo de perfeita unidade temática e formal.

Ao contrário do que se possa pensar, esse romance nada tem de panfletário. É testemunho e denúncia. Mas, antes de tudo, é uma obra de arte admirável. Das melhores surgidas, nas últimas décadas, nesta terra de Poti.

REMANSO DA PIRACEMA

O segundo romance do autor, “Remanso da Piracema”. (Natal: Casa. de Bakunin, 2009) veio confirmar a desenvoltura e a segurança com que ele explora esse campo mais largo da ficção.

Já tive oportunidade de dizer quanto me agradou a leitura desse livro, mas, não custa nada reafirmar que me encheu as medidas.

Para mim, a literatura, enquanto arte da palavra, seja ficção, seja poesia, tem de dar prazer. Notem bem: não digo “divertir”, mas “dar prazer”, e talvez estas palavras sejam insuficientes para expressar o que quero dizer. Seria “encantamento” o termo adequado?

Li “Remanso da Piracema” de um fôlego, encantado com as peripécias do seu grande personagem, e com tudo que lhe acontece: fatos, cenários, tipos humanos, costumes e tradições da nossa terra.

Frederico é o anti-herói por excelência. Irreverente, cáustico, não poupa ninguém, nem mesmo o lendário Frei Damião. Mas – ironia da vida – termina cooptado, feito pastor de uma seita protestante, que funda, juntamente com outros espertalhões, para ganhar dinheiro. Macunaimamente.

As alusões que ele faz, com muito senso de humor, a personagens reais – umas disfarçadas, outras, não – temperam a narrativa com pimenta malagueta, e certamente irão servir de motivação extra para muitos leitores… Tais ingredientes acentuam o sabor picaresco, que já se delineara na estrutura narrativa desde o início. Neste sentido, aliás, revelam-se pontos de afinidade com “As Pelejas de Ojuara”, de Nei Leandro de Castro, e outros romances brasileiros contemporâneos de cunho picaresco, como, por exemplo, alguns da segunda fase de Jorge Amado.

A linguagem que o autor utiliza, valorizando o linguajar nordestino, sem afetações, por vezes incursionando pela poesia em prosa, flui com espontaneidade e clareza.

Aspecto digno de nota: a inserção de pequenos contos ao longo da narrativa, sem que esta perca o fio condutor. Graciliano Ramos fez algo semelhante, porém de modo mais definido, em “Vidas Secas”. Alguns críticos literários falaram em “romance desmontável”.

FRANÇOIS SILVESTRE: UM CONTADOR DE HISTÓRIAS

François Silvestre de Alencar é um contador de histórias. Como Érico Verísssirno, por exemplo. Este seu dom está bem presente em obras anteriores – “Rio de Sangue”,”Dormentes – a Serra da Festa Encantada”, “O Mel de Benquerê” e, principalmente, “A Pátria não é Ninguém”.

Por falar neste romance, que lhe deu posição de destaque entre os nossos ficcionistas: muitos leitores hão de querer compará-lo com o “Remanso da Piracema” . Comparação inútil, ao meu ver, pois um não é melhor ou pior que o outro. Vale a pena citar aqui um velho provérbio espanhol, que Luís da Câmara Cascudo adotou como epígrafe num dos seus livros: “Não é melhor nem pior, é outra coisa.”

“A Pátria não é Ninguém” constitui-se numa das melhores obras de ficção já escritas sobre os anos de chumbo. Testemunho e denúncia, como já tive oportunidade de dizer. “Remanso da Piracema”, com o seu viés anarquista, aparentando ser mais leve e divertido, vale, na verdade, por uma futucada (o termo é bem este) na sociedade burguesa. De resto, a destacar o seu lado memorial, ou seja, o aproveitamento da memória-experiências do autor – como parte da matéria-prima ficcional.

ESMERALDA – CRIME NO SANTUÁRIO DO LIMA

Vivenciando uma fase de grande operosidade, François Silvestre retornou à ficção com a novela. “Esmeralda – Crime no Santuário do Lima” (Natal: Casa de Bakunín ,2010), que narra uma história de crime e paixão, com o foco numa bela cigana, cujo nome remete à personagem principal do romance “O Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo.

Objeto do desejo de três admiradores, Esmeralda termina sendo assassinada por ocasião de um evento festivo no Santuário da Serra do Lima, onde ela vivia como uma espécie de agregada ao pessoal de serviço.

Na primeira parte da obra, o autor, após historiar as origens da cigana, num clima rocambolesco, detém-se a descrever os três cortejadores, lançando suspeitas sobre eles e outros personagens, inclusive um padre pedófilo.

Mas, a parte mais interessante, mesmo, é a segunda, com a narrativa das investigações sobre o crime: o inquérito policial que não acerta coisa alguma e as diligências de um desastrado detetive particular, figura cômica, impagável, que, afinal, consegue descobrir o matador de Esmeralda.

Como se vê, trata-se de uma novela policial, modalidade em que a literatura do nosso Estado é muito pobre. Leitura deliciosa, capaz de prender o leitor em sua malha, que nem os folhetins de antigamente. Aliás, muito de folhetinesco há nesta novela, da primeira à última página.

Os personagens, quase sempre pessoas do povo do Médio Oeste Potiguar – Patu e arredores – estão bem construídos, vivem na prosa sugestiva de François Silvestre. Só tenho um reparo: ao caracterizar a personagem central, Esmeralda, o autor poderia ter realçado os encantos da mulher bonita e esquiva. Tudo mais nos conformes.

Eu me pergunto por que um livro, como este, não se tornou best-seller a nível nacional; ficou, como tantos outros, emparedado na província. Uma província que não sabe prestigiar os seus valores culturais.

Manoel Onofre Jr.

Manoel Onofre Jr.

Desembargador aposentado, pesquisador e escritor. Autor de “Chão dos Simples”, “Ficcionistas Potiguares”, “Contistas Potiguares” e outros livros. Ocupa a cadeira nº 5 da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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