Este texto integra uma ampla matéria jornalística sobre a história da praia e bairro da Redinha Velha, que será dividida em 10 partes. A reportagem foi premiada no edital Auxílio à Publicação de Livros, Revistas e Reportagens Culturais, na categoria Reportagens Culturais. Tem recursos da Lei Aldir Blanc, e patrocínio do Governo do Estado do Rio Grande do Norte através da Fundação José Augusto, e Governo Federal através da Secretaria Especial da Cultura e do Ministério do Turismo.
Muitos dos personagens do jornalista e escritor Ernest Hemingway se defrontam com o problema da evidência trágica do fim. O mais famoso deles é Santiago, pescador de “O Velho e o Mar”. O enredo do livro, como o perfil psicológico de Santiago, retrata nuances pouco romanceadas da vida. Seu drama é demasiado realista e assemelha-se à história de outros personagens, de um enredo ainda inacabado chamado Redinha. Nesse livro enfadonho, sem muitas glórias a contar, mas rico em sua história, os protagonistas são muitos: atores da vida real, da lida dura da profissão-pescador. São heróis do cotidiano que encontramos facilmente na praia, a manejar canoas, jangadas ou paquetes, tecendo suas redes ou caminhando pelas ruas e vielas do bairro; aventureiros muitas vezes, que permeiam caminhos onde a presença da morte é constante. E esta permanece em seus encalços, a querer vencê-los enquanto o campo de batalha for o mar.
Esses protagonistas da Redinha do ontem e do tempo-hoje têm histórias de vida parecidas. Filhos de um mesmo destino embriagam-se pelo trabalho no mar logo cedo, nas idades imaturas da infância ou adolescência. Cerceiam suas oportunidades de estudo e se lançam já nas pequenas embarcações, na pesca com tarrafas ou tainheiras, no máximo a 200 metros da linha de maré. E, se somos mesmo produtos do meio, foram no mar onde estas crianças e adolescentes aprenderam sobre a vida, ora com os pais pescadores, ora com tios ou terceiros.
Essa fase de descobrimentos, que guarda ainda alguma inocência, assemelha-se à vida de uma canoa: solta, leve, de essência frágil a mirar o horizonte infinito e os mistérios do além-mar, na espera de um dia se lançar nas águas da vida, no mar aberto de novas descobertas. E, nesse misto de ânsia e necessidade, os pescadores mirins da Redinha fincam seu destino. Raros são os pescadores dali que largam a profissão sem completar, pelo menos, 15 anos de atividade pesqueira. Assim era a Redinha de outrora, onde a realidade, embora difícil, trazia alguma paz provinciana.
O SILÊNCIO DA SEREIA
Nascer filho de pescador na Redinha é receber o batismo da brisa, um chamado ao mar. É enfrentar sol e sal logo cedo. É aprender o tempo de maré e perder o tempo da infância. Se criar na Redinha é acordar na madrugada vendo o pai chegando ou partindo com apetrechos de pesca. É ser homem-menino. É ser homem-peixe. É ouvir o canto da sereia ainda em tenra idade e já sentir o peso do trabalho e a necessidade do sustento junto ao mar.
É ou foi assim durante séculos. Essa é a construção antropológica mais tradicional da Redinha, antigo porto de pescaria ou morada indígena cuja cultura de subsistência estava ancorada na pesca artesanal pelo menos 500 anos atrás. No entanto, o novo mundo arrastou à praia bonita novos ditames da modernidade e a ameaça à sua principal atividade econômica já se faz visível. O canto da sereia já não se ouve e os filhos de pescadores têm embarcado em outros cenários bem menos líricos e ainda mais perigosos que o mar.
Dois fatores antagônicos contribuem, sobremaneira, para essa nova realidade: a violência e os Direitos Humanos. Os dois agem incisivamente na raiz do processo de descontinuidade histórica da pesca artesanal na praia. E os jovens, que teoricamente sucumbiriam à influência familiar e logo jogariam sua primeira rede ao mar, e ficariam deslumbrados com as primeiras conquistas para prosseguir a tradição da Redinha, recebem outro assédio e viram as costas à tradição. E esse perigo mora em terra firme.
As condições cada vez mais difíceis na atividade da pesca desestimulam os filhos a seguirem a profissão. E mesmo se essa fosse a última alternativa seria proibida pelos Direitos Humanos – fiscais ativos contra o trabalho infantojuvenil, principalmente quando o ofício envolve perigos e longo período longe da escola. E longe do mar, de um ofício ou de boas ofertas de estudos, os jovens são iscas fáceis à marginalidade tentadora ou ao alcoolismo que assolam os chãos da Redinha.
Se a fiscalização dos Direitos Humanos e a incidência criminal na Redinha são fenômenos que datam aproximadamente duas décadas, acentuados nos últimos dez anos, o processo de degradação das condições de trabalho se acumula gradativamente há muito mais tempo.
O aumento da pesca industrial e a consequente diminuição na quantidade de peixes à maioria dos pescadores artesanais da praia; a exigência de escolaridade mínima para cursos (geralmente até a 4ª série), aliado à dificuldade crescente na aquisição de material de pesca e, principalmente, ao envelhecimento da população pesqueira na praia, tem levado cada vez menos barcos àqueles mares seculares.
A estatística da Colônia de Pescadores do Canto do Mangue, que abrange toda a atividade pesqueira de Natal, traz um comparativo alarmante. Em 2005, 40% ou 800 dos 2.000 mil associados da Colônia eram da Redinha – a praia com maior número de pescadores associados. Uma década depois, em 2015, Ponta Negra já desponta como praia de maior número de associados, e o percentual de pescadores da Redinha caiu vertiginosamente de 40% para 7%, sendo apenas 56 de um universo também reduzido de 800 pescadores ativos.
Somente em 2004 foram aposentados mais de 180 pescadores artesãos da Redinha. Em 2013, já com menos da metade do total de associados, foram 150. No ano seguinte, mais de 10%, com 80 aposentados entre quase 800 pescadores. E na Redinha há outra característica preocupante: lá, os pescadores recém-aposentados desistem da atividade, enquanto em outras praias muitos se aposentam e se mantêm no ofício.
E a previsão é de que a atividade pesqueira regular na Redinha dure apenas até o fim da atual geração de 56 pescadores associados: “A transmissão de ofício do pai pescador ao filho não está acabando; simplesmente acabou. Nem mesmo o pai quer mais o filho nessa profissão. Aí vem o jovem mergulhado no álcool e nas drogas – isso em praticamente todas as praias; vem a Lei que obriga a criança na escola, e mesmo na escola está o traficante”, atesta a presidente por 12 anos da Colônia de Pescadores, Rosa do Nascimento.
O VELHO E O MAR
Além das dificuldades inerentes à atividade, essa antiga geração de pescadores sofre da maldição do Santiago de Hemingway. Já com a virilidade de outrora levada pelas águas do tempo, ganham ainda a exclusão dos mais jovens. E da insistência do velho Santiago também vivem os velhos pescadores da Redinha: da insistência em buscar um passado já perdido; de continuar a sentir a fisgada do peixe, mesmo que em pequenos botes, a jogar tainheiras nas beiradas de mar. Mas o destino dos velhos pescadores é mesmo carregado de alguma melancolia, como atesta Vicente Serejo, em Cartas da Redinha:
“É interessante olhar a chegada do peixe os pescadores muito velhos, mãos deformadas pelas fisgadas de anzóis e as lutas no mar. Eles não pedem, mas olham o cesto cheio de peixe, escolhem alguns poucos necessários para o escaldado e com as mãos estendidas perguntam ao dono do peixe o preço daquela porção”. No entanto, continua Serejo, esse estendido de mãos é apenas um “código de desespero, uma linguagem cifrada de pobreza, um dialeto de sobrevivência”.
Segundo ele, os velhos, aqueles realmente incapazes de uma pesca a mais leve que seja, sabem que o preço não será dado nem cobrado, mas comportam-se como se assim acontecesse, como se dinheiro tivessem. É quando Serejo traz a triste constatação: “Já sabem que o dono do peixe vai dispensá-los de pagamento e sabem tanto, que escolhem os peixes de valor menor, peixe miúdo, de vários tipos, pois nem peixe de um tipo só se sentem com direito de pedir. Depois fazem a palha e levam no passo lento na direção de casa”.
Euclides da Cunha, ao escrever em Os Sertões que os nascidos no litoral são “neurastênicos”, em contraste com o homem forte do sertão, na certa desconhecia Manoel dos Santos da Silva, o Santino. O sol e o sal de 40 anos no mar fizeram de Santino um homem vigoroso, apesar dos 65 anos de idade. Ainda assim, os efeitos do sol são infalíveis: a voz altiva, que não cansa de contar histórias, sempre com um “digamos” a interpelar as frases, não esconde a pele enrugada por demais. É a couraça que se formou durante as décadas de pescaria, como adaptação à vida, ao sol de todas as horas; ao destino.
Apesar de ainda robusto, Santino aparenta mais idade, como outros pescadores. A gargalhada é larga e sonora, sempre presente em seu rosto. As semelhanças com o personagem de Hemingway, Santiago, não param apenas nos nomes. Santino parou de pescar há 10 anos. Durante 40 anos, “tomou de conta” de jangadas. Seu instrumento de trabalho foi sempre o tresmalho. Com décadas de viagens marítimas, o velho pescador precisou “afundar sua âncora”, decorrente de um inchaço na perna direita que o impossibilitou de continuar na profissão. “A perícia me aposentou”, disse. Mas, como outros pescadores que alcançaram a terceira idade ainda na profissão de pescador, Santino já estava “encostado”, desacreditado pelos mais jovens, e ainda assim, como Santiago, não aceita a condição que a vida lhe impôs.
“Minha idade tá mais avançada, mas eu ainda faço, digamos, o mesmo que eu fazia. Num é mais com a força que o (pescador) novo faz, mas com minha experiência faço melhor que o novo. Mas num dá mais por causa da minha perna. Se eu der um mergulho de baixo d’água e der uma câimbra, eu morro lá em baixo. O último que morreu aqui na Redinha foi disso. Ele tava comendo pirão de peixe no barco e quando ‘deu fé’, caiu na água. Quando fomos pegar, ele tava morto. Acho que foi cachaça, que ele bebia muito”.
O destino do pescador foi puxado pela tradição de séculos da praia. E imita a de outros filhos daquelas terras, onde os acasos parecem não alcançar. “Meu pai pescou um bocado de tempo, depois tomou conta de um sítio perto da boca do rio, mas eu continuei na pescaria. E achei tão boa na época que quando já tava com idade mais avançada, um rapaz me ofereceu trabalho na Urbana. E eu disse: ‘Homem e eu quero nada’. Porque esse trabalho, digamos, você recebe o dinheiro de mês em mês, e eu aqui pescando recebo todo dia”, explica o veterano das coisas do mar.
Ao recordar os anos de pescador ativo, Santino se deixa levar pelas lembranças de épocas alegres e passa a mirar o horizonte que tanto conhece. Embora o trabalho no mar fosse sempre pesado, era mais generoso. E faz o velho pescador se perder em olhares ausentes que por vezes o silenciam. Mas, logo volta a contar histórias antigas da Redinha, de quando fazia a função de arrais nas jangadas, a varejar com pesadas varas a rota da embarcação: “A gente pegava muito peixe. E os peixes eram na maioria tainha, serra, espada, charéu, camurupim. Hoje em dia é quase que somente tainha. Mas é porque esses pescador novo num procura. Na nossa época a gente ia até a maré da Redinha Nova e achava muito peixe”.
O BEM DA TERRA
Não bastasse a dureza comum dos nativos da Redinha, a mulher do pescador ainda carrega o fardo dos dias de incertezas em que o marido se lança nas rotas imprevisíveis do mar e fica à mercê das forças da natureza. Muitas delas, também filhas ou irmãs de pescador, carregam uma dor que não se acostuma nem as deixam imunes contra a ansiedade e a angústia da espera. E choram nas beiras de praia, mesmo após anos a assistir esposos, pais e irmãos em busca do sustento, navegando embarcações tantas vezes tragadas pelo instinto de destino que há no mar.
Aos 14 anos, Almira Lauda Costa, a dona Dina, à época da reportagem com 64 anos, viu seu namorado, conhecido como Lalu, de 22 anos, embarcar para nunca mais voltar. “Era um loiro bonito, de olhos claros. Não tinha roupa boa, mas gostava muito dele”, lembrou. Segundo ela, nem mesmo a embarcação foi encontrada. A mãe de Lalu (dona Dina não lembra seu nome) “ficou louca” e até hoje é desconhecido o “paradeiro” dos pescadores ou do barco que investiram pelo mar naquele dia.
Embora aposentada pela Colônia de Pescadores, dona Dina trabalha ainda a costurar velas de botes, nas proximidades do Canto do Mangue, bairro das Rocas, onde mora. O trabalho junto aos pescadores demonstra a persistência de ir contra o destino, desejoso de lhe impor traumas de mar. Durante “muitos anos” dona Dina conviveu com o pescador Damião Pereira da Silva, então com 66 anos e doente de “uma fraqueza nas pernas”, que impossibilitava um caminhar normal. Dona Dina lembrou dos dias aflitos em que seu companheiro saía para pescar de “sereno”, a passar dias no mar. “Ele começou aos 18 anos pescando com caçoeira, pegando tainha, carapeba pelos rios. Ia de tarde e voltada pela noite. Mas quando pegou um barco a motor passava três dias no mar”.
Mas, os “três dias no mar”, mais rotineiros para aquela embarcação, segundo dona Dina, às vezes transformavam-se em quatro, cinco… horas e dias congelados para os que ficam na terra da espera. “Quando passava dos três dias eu olhava pro céu e qualquer nuvem escura já assustava. Quase sempre o vento estava forte e eu já pensava o pior, porque, como diz o ditado, ‘mar não tem cabelo’, que é pra se segurar”, lembra a costureira, que lamenta hoje a diminuição da atividade de costurar velas de embarcações, cada vez mais substituídas pelos barcos a motor.
A marisqueira aposentada, Marli Barbosa Ferreira, 60 anos quando da reportagem, perdeu um tio naufragado nos mares de Recife. Seu pai faleceu aos 70 anos, decorrente de trombose, mas pescou desde os 18 anos, em vários mares do Rio Grande do Norte, da Redinha a Porto do Mangue. Segundo conta, quando dos 32 anos, seu pai teve a embarcação naufragada em alto-mar por uma onda gigante. Mas, os quatro tripulantes foram todos salvos por outro barco: “Tinha vez de eles passarem 15 dias no mar. Só voltavam quando encontrava peixe. Num podia voltar sem nada porque antigamente a gente vivia do peixe do meu pai. Hoje tem o seguro-desemprego”.
Marli lembra os dias de espera nas beiradas de praia e recorda com alguma tristeza as recomendações do pai ao sair pro alto-mar: “Meu pai sempre que saía dizia: ‘Gente, vocês rezem pra eu trazer a janta’. Aí ficava eu e minha mãe na areia da praia. Víamos as outras embarcações chegando e ele num chegava. A gente chorava, mas num adiantava, né?”, pergunta, sem esperar resposta. E afirma, em seguida, mais enfática: “Quem pensa que vida de pescador é moleza; num é não. Minha mãe sempre lembrava que pescador que começava cedo tinha o destino de ter problema sério de vista por causa do sol”.
CRÉDITO DAS FOTOS: Sergio Vilar
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