Redinha Velha: O mercado da ginga (parte 8)

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Este texto integra uma ampla matéria jornalística sobre a história da praia e bairro da Redinha Velha, que será dividida em 10 partes. A reportagem foi premiada no edital Auxílio à Publicação de Livros, Revistas e Reportagens Culturais, na categoria Reportagens Culturais. Tem recursos da Lei Aldir Blanc, e patrocínio do Governo do Estado do Rio Grande do Norte através da Fundação José Augusto, e Governo Federal através da Secretaria Especial da Cultura e do Ministério do Turismo.

MERCADO DA GINGA

“Eu julgo que esse Mercado tem uns 200 anos, por aí”. A estimativa é da saudosa comerciante do Mercado Público da Redinha, Francisca Florêncio da Silva, a “dona” Francisca, ainda em 2005, então com 66 anos. A especulação retrata a desinformação geral, de veranistas, de nativos ou das próprias comerciantes do Mercado sobre datas dos principais pontos históricos da praia e, principalmente, do Mercado da Redinha.

Registros na internet, sem fonte conhecida, datam a inauguração do Mercado pelo presidente da Intendência Municipal, Teodósio Paiva, em 1921. Já o Diário de Natal informa a data de 1937, erguido “ainda de madeira”. O jornal A República, em 8 de fevereiro de 1944 noticiava que o prefeito de Natal, José Augusto Varela, havia inaugurado o Mercado dois dias antes, em 6 de fevereiro.

Com três datas diferentes levantadas e nenhuma comprovação outra, a inauguração oficial do Mercado Público da Redinha permanecerá para sempre uma incógnita. Mas a maior probabilidade é de que seja a data de 1921. Isso porque, além da falta de qualquer vestígio de informação precisa, a estimativa de chegada dos primeiros proprietários dos 15 boxes mantidos hoje no recinto – já pela quarta geração de permissionários – se aproxima mais desta data.

O que se conta é que os primeiros permissionários do Mercado receberam os boxes de autoridades da Província à época, muitas vezes por intermédio de veranistas que intercediam por eles. Depois, muitos foram comprados ou repassados de geração em geração. O cenário mais comum é a da avó, que passou para a mãe até a atual filha. Mas a filha não sabe de quem a avó comprou, que seria provavelmente o primeiro proprietário daquele box.

Dona Francisca Florêncio, já falecida. (Foto: Sergio Vilar)

É o caso de Ivani Florêncio, 30 anos, que herdou da mãe, dona Francisca Florêncio (1940-2011), que por sua vez herdou da mãe, Joana Florêncio (1911-1999), que assumiu o box em 1950, não se sabe no lugar de quem. Ou o caso de Nô (-1965) para a mulher Benedita e dela para o filho Márcio, que hoje mantém a tradição e já pensa em passar para o filho, mas ninguém da família sabe de quem o patriarca Nô comprou.

Sabido mesmo é que nas primeiras décadas do século passado o Mercado da Redinha justificava a alcunha de mercado, com comércio de frutas, verduras, cuscuz, mugunzá, carnes, cafezinho, cocada, sementes e variedade de quitutes, além de produtos vindos das Rocas pelo barco à vela do senhor Biéca. Bebida alcoolica sequer era vista.

Ginga com tapioca

Hoje, o Mercado virou bar. Atrai veranistas e turistas pela cerveja gelada, pelo peixe frito (guaiuba, em maioria) e, principalmente, por uma iguaria do lugar: a ginga-com-tapioca.

Esses peixes minúsculos conhecidos como ginga, envoltos pela tapioca surgiram de uma ideia tão simples quanto seu preparo. A versão mais difundida é de que o dono do bar Aquele Abraço, conhecido como Geraldo Preto se cansou de ver cestos cheios de ginga desperdiçados. Um dia, ele enfiou as gingas em palitos de palha de coqueiro e depois fritou no óleo. “Aí ele mandou que minha mãe (Dalila Januário) fizesse tapiocas e colocou as gingas dentro. Todo mundo gostou”, recorda Ivanize Barbosa, filha de Geraldo e Dalila. O bar era situado ao lado do Mercado.

Preparo da ginga com tapioca (Foto: Sergio Vilar)

A ginga-com-tapioca é o maior atrativo no Mercado da Redinha há décadas. E pouco ou nada mudou de seu preparo ao longo dos anos. Os peixes utilizados na ginga, comprados aos marchants, ainda são os mesmos: manjubinha; a meia tainha, que tem tamanho maior; o arenque, sempre com mais espinha; e a sardinha legítima, geralmente a mais saborosa para a ginga. O preço para qualquer tipo é o mesmo e tabelado entre todos os boxes.

Nos freezers de cada ponto do Mercado, esses peixes ficam todos em ponto de preparo, já enfiados no palito. Ao pedido do cliente, o palito com a ginga é mergulhado no óleo de dendê na assadeira. A dica é não ferver demais. Com pouco tempo coloca a farinha de mandioca no peixe para não pregar na panela e pronto. Depois é colocar dentro da tapioca e degustar a única iguaria tipicamente natalense.

E no Mercado se degusta a ginga, se bebe a cerveja gelada quase debaixo da ponte Newton Navarro, se acompanha o movimento de pescadores, de gatos e de passantes, se enxerga a carcaça do trapiche para lembrar tempos idos da Redinha e relembrar um Mercado ainda com chão de areia, parede construída com tábuas de compensado e cobertura de palha de coqueiro, que abrigava os comércios de Nô, de Geraldo Preto e Dalila Januário, de Joana Florêncio, de Maria Catimbeba, dona Djanira, dona Birô, Nezinho, Maria Boinha, Francina, Seu Mário, Maria Pequena e tantos outros.

Reformas e descaso

Foram tempos de uma Redinha e um Mercado ainda mais provincianos, mas igualmente vítimas do descaso durante toda a sua trajetória. Em pelo menos 80 anos de história foram registradas seis reformas, em 1949, 1961, 1998 (quando o local fez parte do programa da então prefeita Wilma de Faria, de revitalização das feiras e mercados públicos de Natal), 2005 e 2008. Mas boa parte delas foram apenas paliativos para amenizar a falta de estrutura.

Em 20 de março de 2005, o Diário de Natal comprovava o desleixo com aquela gente: “Interditado há quase um mês por risco de desabamento do telhado, o prédio abrigava 13 pontos comerciais […] De acordo com comerciantes da área, o fechamento do mercado aconteceu porque as madeiras do telhado estão fazendo ruídos que demonstram a fraqueza da estrutura, a qual eles temem que desabe a qualquer momento”.

A última reforma aconteceu em 2015. A Prefeitura do Natal trocou o piso por azulejo, ergueu cerca de um metro também com azulejo a parede dos boxes, melhorou a situação caótica dos banheiros e pintou a parede externa. Nenhuma placa de inauguração dessa nova reforma foi colocada porque os três boxes com fachada para fora do Mercado sequer foram lembrados. A porta de acesso à área externa permaneceu quebrada e diariamente o Mercado é fechado com móveis de plástico escorando a porta. A cobertura de palhoça na área externa, inaugurada em 1982 nunca recebeu reparos.

Talvez o melhor período do Mercado tenha transcorrido a partir de 1963, quando assumiu o primeiro administrador do Mercado da Redinha, João Caetano – depois declarado Juiz de Paz do próprio bairro (uma espécie de presidente de Conselho Comunitário de atualmente). Ele cuidava da limpeza, dos reparos necessários e concedia mais autonomia às locatárias para gerir seus negócios.

Hoje tudo passa pela Prefeitura do Natal, via Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (Semsur). É quem gere e possui a posse de cada ponto comercial; é quem dita padrões, regras e também quem fiscaliza. Apesar de algumas terem comprado o ponto décadas atrás, hoje ninguém pode vender. E todo o processo de aquisição ou repasse para herdeiro passa pelo crivo da Secretaria.

Ao lado do Mercado também há vários pontos comerciais. São peixarias também geridas pela Semsur, mas diferentemente dos boxes do Mercado, são propriedade dos próprios pescadores, obrigados apenas a manter o mesmo padrão estético.

O Mercado da Redinha é potencial ponto turístico de Natal. Mas como toda a Redinha e sua história, permanece sem atenção merecida. Nunca foi sequer incluído em roteiros turísticos.

Durante os primeiros dias da semana, gatos passeiam calmos entre mesas e cadeiras de plástico. O silêncio é quebrado apenas pelas conversas dos pescadores no corredor ao lado e pelo manuseio dos utensílios no trato com o peixe. Nos fins de semana ainda se vê algum movimento que justifica a permanência das permissionárias no local, mas já desgostosas do ofício e menos ainda de repassar o ponto aos filhos, quebrando uma tradição de pelo menos três gerações.


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Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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