Redinha Velha: E o progresso indesejado invade a praia (parte 6)

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Este texto integra uma ampla matéria jornalística sobre a história da praia e bairro da Redinha Velha, que será dividida em 10 partes. A reportagem foi premiada no edital Auxílio à Publicação de Livros, Revistas e Reportagens Culturais, na categoria Reportagens Culturais. Tem recursos da Lei Aldir Blanc, e patrocínio do Governo do Estado do Rio Grande do Norte através da Fundação José Augusto, e Governo Federal através da Secretaria Especial da Cultura e do Ministério do Turismo.

FIM DA GUERRA, FIM DO ENCANTO

A Redinha se confunde tanto com a história do Natal que, com o fim da Segunda Guerra, após os soldados americanos chacoalharem nossa província de cadeiras nas calçadas e deixarem uma áurea de eterna nostalgia na cidade, a praia da Redinha iniciou seu processo de decaída.

Se a Natal de 55 mil habitantes (Censo de 1940), ainda atordoada pelo abandono dos oficiais yankees, que trouxeram um pouco do mundo Hollywood para a cidade, vivia um clima de final de festa, a Redinha assistia seus veranistas rumarem para o sul, às praias de Ponta Negra e Pirangi. Até aquela data, a Redinha pareceu acompanhar, em ritmo similar, o avanço da cidade. Mas, a partir dali, começaria um gradativo processo de abandono.

Coincidência ou não, foi nessa época que, em 1952, a primeira estrada de barro, ligando Igapó a Redinha, era construída. O progresso – intruso indesejado da Redinha – chegava como penetra na casa dos veranistas daquela praia sempre esquecida pelo poder público, mas até então prestigiada pela elite natalense.

Segundo o cronista social Aderbal da França, em sua coluna no Diário de Natal de 5 de outubro de 1950, a Redinha possuía mais de 700 pessoas de residência fixa e umas 150 casas de veranistas. Mas, logo as praias do sul se mostraram mais convidativas.

A iniciativa da construção da estrada de barro foi do prefeito de Natal, Creso Bezerra. Mas, por falta de recursos, a prefeitura suspendeu os trabalhos. Surgiu, então, o veranista Humberto Teixeira, que, por vontade própria, recomeçou a obra, levando a estrada até a povoação da Redinha. É certo, todavia, que, como atesta reportagem publicada no Diário de Natal em 23 de novembro de 1958, ele foi ressarcido depois pela prefeitura. Em novembro de 1954, a referida estrada já era utilizada pelos veranistas.

E a nova estrada de barro estirava-se como tapete vermelho para receber os sintomas do urbanismo. Em 1960, a primeira linha de transporte coletivo do bairro, ligando Redinha a Rocas, foi inaugurada, e facilitou, 11 anos depois, em 1971, a construção da primeira escola: a Escola Municipal Nossa Senhora dos Navegantes, localizada, ainda neste novo século, na Rua do Cruzeiro. A implantação do primeiro posto de saúde só viria 12 anos mais tarde, em 1983.

Em 13 de janeiro de 1966, o Diário de Natal anuncia o fim daquela que representava muito do lirismo dos veraneios de antigamente: a travessia lenta, pelo Rio Potengi, dos botes, ou mesmo das lanchas: “Por iniciativa do prefeito de Natal, Almirante Tertius Rebelo, foi feita a ligação fluvial entre Natal e a praia da Redinha através de um sistema de balsas”, dizia a matéria.

Também em 1966 a nova Ponte de Igapó foi construída, para atender à demanda de automóveis para aquela região. A velha ponte de ferro, também chamada Ponte do Potengi, que teve sua construção iniciada em 1914 e inaugurada em 20 de abril de 1916 já estava superada. Sua função era a de permitir a passagem dos trens da Estrada de Ferro Central, facilitando o transporte entre a Capital e a região de Ceará-Mirim e Mato Grande, que até então só era possível transpondo-se o Rio Potengi por meio de embarcações.

Nessa época, estava no governo o monsenhor Walfredo Gurgel, entre os anos de 1966 e 1970. Parte da velha Ponte de Igapó ainda encontra-se firme ao lado da nova a ajudar a compor a memória histórica da cidade. Foi tombada pelo Estado em 30 de julho de 1992.

A pavimentação a paralelepípedo da estrada de Igapó-Redinha ficou a cargo do Departamento de Estradas e Rodagens (DER), numa extensão de 7,5 quilômetros. Foi inaugurada no dia 13 de março de 1975, ao custo de Cr$ 3 milhões.

Se por mais uma coincidência do destino ou por clareza de que a Redinha não aceita as pressas e nuanças de modernismos, a partir de meados de 1970 a praia ganha o atestado de esquecimento completo. Até mesmo a Festa do Caju, das mais tradicionais da praia, não aguentou a pressão dos costumes vindos da ‘cidade grande’ e, três anos mais tarde, em 1978, acabou.

Se antes de 1970, a Zona Norte de Natal era predominantemente rural, contando apenas com dois núcleos urbanos: Igapó e Redinha, com a estrada em paralelepípedo a região iniciou seu processo de crescimento desordenado. Afora esses dois bairros, o restante do espaço era formado por granjas, fazendas de gado e pequenos sítios. O processo de urbanização invadiu essa área da cidade e se tornou predominante.

Um emblema completo da Redinha daqueles meados de 1970 foi escrito pelo médico João Medeiros Filho – mais tarde, nome da principal avenida do lugar. A carta, endereçada ao vice-governador, almirante Tercius Rebelo, foi escrita em 28 de outubro de 1974, sob o título “Problemas da Redinha”:

“Gostaríamos que a autoridade responsável pela solução do problema se dispusesse a descer do automóvel e a tomar uma das lanchas que fazem o tráfego fluvial. De começo, levaria um banho forçado nas sobras da piscina improvisada pelos menores vadios que ali se banham nas águas poluídas, aos palavrões […]. No desembarque, na Praia, arrisca-se o passageiro a cair no Rio, tais as acrobacias que faz para atingir o trapiche nas marés baixas. Alguns moradores viajam até de sapatos à mão… Imagine-se esse quadro tendo como figurante um turista incauto, uma senhora de idade avançada…“.

O médico ameniza as reclamações e até elogia alguns benefícios concedidos à praia. Mas, segue a cobrar iniciativas do Governo e uma identidade maior à praia da Redinha. No final, o retrato do que ocorre até hoje: os próprios moradores e veranistas, saudosos do lugar, tentam suprir eles próprios as necessidades da praia.

“Relativamente à povoação, que tem aproximadamente 3 mil habitantes, inclusive a população flutuante, tem recebido muita ajuda do Governo: Posto de Saúde, luz elétrica, escolas, etc. sobre o abastecimento d’água, estamos informado de que foi elaborado e aprovado na CAERN o projeto respectivo, estando sua execução dependendo da liberação de verba pelo BNH”.

E completa:

“Falta ainda o saneamento básico, como se fez nas praias de Touros, Pititinga e Maracajaú; galerias nas zonas mais baixas próximas ao mar; farmácia e correio. Será muito que se pede? E, se não se pedir, implorar, suplicar, que é que se consegue, numa terra em que a iniciativa particular precede a iniciativa pública?”.

Outra reivindicação de João Medeiros Filho é a escassez de nomes nas ruas da Redinha: praia sem memória. Os nomes das ruas da praia são consagrados pelo povo: ruas do Cemitério, do Cruzeiro, do Cacete, dos Navegantes, do Maruim. Ou mesmo aproveitam os nomes de veranistas falecidos: José Aguinaldo, Sandoval Capistrano, Enéas Reis, Barôncio Guerra, Des. Antonio Soares e tantos outros. Bem como de antigos moradores: Manoel de “Rosinha”, seu Soares, Cutruco, Cícero Bucha…

A despeito de tudo, o médico entusiasta da Redinha deixa escapar, em carta reivindicatória, os encantos da praia. De mente positiva e esperança renovada com a passagem de paralelepípedos na estrada que levaria seu nome, João Medeiros Filho acreditava que o progresso viria dar boas novas à Redinha.

“A praia da Redinha, em nossa opinião, é um dos mais belos e aprazíveis recantos da orla marítima do Rio Grande do Norte. E agora, com a pavimentação da estrada em demanda de Igapó que se anuncia para breve, e, bem assim, com a terminação do trecho rodoviário Pajuçara-Águas Santos Reis, Redinha terá um surto de progresso extraordinário”.

No entanto, Medeiros Filho antecipou, também, os perigos que poderiam acompanhar esse processo:

“Claro é que nem sempre o progresso corresponde a uma melhoria das condições de vida do povo, contribuindo muitas vezes para agravar a situação pelo encarecimento do preço dos gêneros de primeira necessidade que se escoam com facilidade para os centros mais populosos. Esse fato, entretanto, que pode deter o progresso, exigirá, sem dúvida, outras providências acauteladoras do Governo”.

REDINHA: MANCHETE NEGATIVA

Os novos equipamentos urbanos que entraram em Natal, entre a década de 1970 e o ano 2000, também atingiram o desenvolvimento da Redinha. O descaso do Estado, tendo por consequência o fechamento de estabelecimentos que outrora atraíam turistas, foi causa principal. Até mesmo a Redinha Nova despontou como solução para a velha e abandonada praia, que tanto serviu de inspiração para escritores e poetas.

Em decorrência da expansão urbana ocorrida, sobretudo, nas décadas de 1980 e 1990, ergueram-se, na área da Redinha, os conjuntos habitacionais Redinha Nova, Niterói e Jardim das Flores. Além disso, muitas casas foram construídas por conta própria, sem alvará. Em 1991, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou a existência de 1.315 domicílios e uma população residente em torno de 6.581 pessoas.

As notícias trazidas pelos veranistas da Redinha, ao chegarem a Natal, não eram mais as mesmas de outrora, e as manchetes do Diário de Natal, durante o período, atestam o fato.

Em 19 de novembro de 1980, o Diário de Natal estampava em seu caderno: “Buracos e animais tornam perigoso acesso à Redinha”. Um dos maiores problemas enfrentados pela praia durante as décadas de 1980 e 1990: alagamento de ruas e casas e, principalmente, a insegurança foram mostrados no mesmo periódico de 27 de maio de 1984, com a seguinte manchete: “Redinha só vive bem no verão. No inverno, é o caos”. Em 12 de junho de 1987, o resultado do descaso do poder público, em outra manchete do Diário de Natal: “Redinha ainda aguarda providências do governo: a cada temporal, as ruas enchem de lama e ficam intransitáveis”.

Os títulos das matérias que se seguiram nos anos 1990 seguem a mesma linha: “Praia da Redinha é riscada do mapa: isso acontece todos os anos, após encerramento da temporada dos três meses de veraneio” (Diário de Natal – 6 de outubro de 1992). “Água invade casas de veraneio na Redinha” (Diário de Natal – 8 de junho de 1994). “Redinha: reduto de lama, água e lixo” (Diário de Natal – 7 de julho de 1995). “Praia da Redinha está ilhada” (Diário de Natal – 5 de agosto de 1998). “Redinha sofre com falta de cuidados” (Diário de Natal – 10 de janeiro de 1999).

Com a virada do século e o caos reinante na praia, sustentada apenas pela tradição e carinho inabalável de seus veranistas, a Redinha recebe alguma atenção do poder público. Mas isso ocorre apenas durante o ano de 2003, quando a praia ganharia, enfim, um projeto de urbanização planejado. Até lá, o velho Mercado assistiria um de seus piores momentos em quase 70 anos de história. Sob o título: “Barracas destruídas e mercado ameaçado na praia da Redinha”, o Diário de Natal de 23 de agosto de 2002, trazia em seu primeiro parágrafo o retrato da Redinha naquele início de século 21: “A impressão que se tem do visual do lado direito do Mercado da Redinha Velha, no sentido praia/mar é que passou um furacão e deixou parte das edificações em ruínas. As demais barracas de praia só estão em pé porque os proprietários colocaram uma proteção, feita de sacos de areia, para impedir o desmoronamento”.

No entanto, exato um ano após a matéria do Diário de Natal, o projeto de reurbanização da Redinha tem início, em 26 de agosto de 2003. Depois de um processo licitatório conturbado, a empresa MK Comércio e Construções Ltda vence a licitação. O valor apresentado foi R$ 1.805.000,00, dos quais R$ 700 mil foram pagos pela Prefeitura do Natal e o restante pelo Governo do Estado. A Secretaria Estadual de Infraestrutura foi a responsável pelo processo, desde o início, seguindo a Lei nº 8666, de licitações. Mas, uma denúncia do então presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte, Abelírio Rocha, em junho, tornou polêmico o andamento do projeto. Segundo ele, o edital de licitação “caracterizava intenção de favorecimento a determinadas empresas”. A liminar impetrada por Rocha foi a terceira deferida em primeira instância pelo Judiciário, desde o início de execução do projeto. Outras duas foram movidas pelas empresas concorrentes do processo de licitação, Ecocil e Aurimar, revogadas no Tribunal de Justiça.

Embora travadas lutas burocráticas e polêmicas nos bastidores do projeto de reurbanização, a obra começou dentro do prazo estabelecido. Após sete meses de trabalho, o prefeito Carlos Eduardo Alves e a governadora Wilma de Faria inauguravam uma nova Redinha em 4 de abril de 2004. Dentro da nova paisagem, a mesma Igreja de Pedra, com charme de mamute; a mesma capelinha incansável a mirar o oceano; o mesmo Redinha Clube, palco das memórias festivas de todos aqueles moradores heróicos e veranistas entusiasmados. Junto a eles, 22 novos quiosques de 9 metros quadrados, feitos de madeira e fibra, além de um galpão para pescadores trabalharem suas redes e peixes.

Um calçadão de 4.311m2 de pedras portuguesas, como nas praias do Meio e Ponta Negra, também foi construído. O problema para estacionamento de carros foi amenizado com 113 novas vagas, além de espaço para ônibus de linhas urbanas e turísticas, e abrigo para passageiros. Equipamentos para ginástica, 53 bancos de madeira e 38 novos postes para melhorar a iluminação e segurança foram espalhados pela área. Também foi melhorado o quebra-mar em forma de ponta, avançando sobre o oceano, construído para evitar que a maré volte a assorear o canal do Porto de Natal, escavado para permitir a entrada de navios de grande calado.

Apesar da melhora substancial em sua estética e aspecto, a Redinha não conseguiu retornar aos seus tempos áureos. A insegurança permaneceu como reclamação principal, sobretudo dos nativos. A tranquilidade costumeira dos tempos idos não existiu mais. Pescadores cobravam atenção, ajuda e recordavam saudosos os tresmalhos cheios de peixe. O Mercado Público – de fora do projeto de reurbanização – recebeu, tempos depois, uma melhora no local, após súplica de seus proprietários.

A Redinha virou bairro, urbanizou-se e se reurbanizou. E até hoje se arrepende. Mas, como fugir, se uma estrada seguiu o cheiro de sua brisa e, inebriada, caminhou até suas areias pintando de cinza seu caminho? Razão tinha o cronista Berilo Wanderley, ao dizer que “a Redinha deve continuar é sendo praia. E como ela, os jangadeiros, as casinhas escassas e os cobiçados cajueiros de dezembro”.


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CRÉDITO DA FOTO: Adriano Abreu

Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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