REDINHA VELHA: Início da ocupação e boemia (parte 5)

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Este texto integra uma ampla matéria jornalística sobre a história da praia e bairro da Redinha Velha, que será dividida em 10 partes. A reportagem foi premiada no edital Auxílio à Publicação de Livros, Revistas e Reportagens Culturais, na categoria Reportagens Culturais. Tem recursos da Lei Aldir Blanc, e patrocínio do Governo do Estado do Rio Grande do Norte através da Fundação José Augusto, e Governo Federal através da Secretaria Especial da Cultura e do Ministério do Turismo.

Se de franco agradecimento sobre a história antiga da Redinha se deve reverências a Cascudo, do início da ocupação propriamente dita da praia, nas primeiras décadas do século 20, há o relato do advogado e magistrado Gil Soares de Araújo, que chegou a ocupar cargos de Promotor Público das comarcas de Martins (1935-1942) e Ceará-Mirim (1942), e foi deputado estadual entre os anos de 1935 e 1937. Aposentou-se como Juiz de Direito do Rio de Janeiro.

Em duas páginas inteiras do semanário O Poti, de 30 de outubro de 1988, o advogado conta detalhes da Redinha de ontem. Ele aponta a data de 22 de novembro de 1921 como de fundação “de fato” da Redinha como praia de veraneio, quando desembarcaram na praia “as cinco primeiras famílias de veranistas”.

No entanto, o jornalista e cronista Vicente Serejo lembra, em seu livro Cartas da Redinha, que o jornal “Gazeta do Comércio”, de 26 de fevereiro de 1902, publicou a seguinte notícia, sob o título “Passeio à Redinha”: “O ilustre tenente-coronel Jerônimo Câmara reuniu, domingo último, em sua residência temporária, no saudável e pitoresco arrebalde da Redinha, grande número de pessoas distintas de nossa sociedade, entre as quais o exmo. Dr. Alberto Maranhão (então Governador), Capitão Manoel Coelho, digno Inspetor da Alfândega, o nosso chefe de redação, major Pedro Avelino e muitos outros”.

As observações de Gil Soares também contradizem algumas palavras de Cascudo. O folclorista afirma que, durante o século 19, a Redinha já se tornara praia indispensável à vida social da Cidade. O dr. Brito (Barão da Redinha) popularizara a praia entre os amigos quando a descobriu, em meados do século 19.

No relato de Gil Soares publicado em O Poti, em 1921 a praia da Redinha possuía “somente” casas de palha, geralmente habitadas por pescadores e rendeiras. E havia também um grande armazém destinado a produtos agrícolas de Sandoval Capistrano e Jeremias Pinheiro, em atividade na região.

Gil Soares escreveu ainda nessa mesma publicação, que além das peixadas e dos cajus que acompanhavam os aperitivos, havia na Redinha de Dentro, “muito apreciada como local privilegiado no verão”, piqueniques e peixadas memoráveis promovidos pela família Brito, do “Barão da Redinha”, com participação de pessoas de destaque da sociedade natalense, inclusive presidentes de Província. “Seus famosos cajus acompanhavam os aperitivos, antes do banho no rio ou no mar. Era a generosa hospitalidade dos Brito”, completou.

As “peixadas memoráveis” e os “Presidentes de Província”, ou mesmo as casas de palha, também são citados por Cascudo, como partes do cenário da Redinha do século 19. No entanto, no relato a seguir, retirado da Acta Diurna de 26 de janeiro de 1939, Cascudo é claro ao dizer que o Presidente de Província Antônio Bernardo de Passos “vinha a Natal aos meses de inverno”, portanto, era um veranista, enfrentando na Redinha, inclusive, as pestes de varíola que assolavam a Província na época: “Redinha envolveu os presidentes da província. Benvenuto Augusto de Magalhães Taques, em 1849, depois ministro dos Negócios Estrangeiros, presidente de quadro da província, era um decidido ‘redinheiro’. Para lá mandava o expediente e governava com os pés nus na areia úmida, sonhando planos. Antonio Bernardo de Passos, presidente de 1853 a 57, era comilão e amigo de serenatas e peixes cozidos com pirão fervido e pimenta malagueta, ouvindo as modinhas de Lourival Açucena e despachando os papéis oficiais sem arredar pé do casebre de palha que mandara erguer. Da Redinha enfrentou a peste de varíola, dando ordens e dirigindo tudo, eficazmente. Vinha a Natal aos meses de inverno. Por muito favor”, relatou o folclorista.

Se algumas afirmações de Cascudo e Gil Soares estão desencontradas, a data de 22 de novembro de 1921 dita como “fundação” da Redinha como praia de veraneio, pode vir a ser uma data simbólica, para retratar uma época em que, realmente, houve um processo de ocupação mais concreto e sistematizado.

Itamar de Souza também acredita na proximidade da data ao afirmar que “o veraneio, como atividade de lazer, só começou a ser praticado regularmente no século 20. A elite de Natal começou a frequentar, primeiro, a praia de Areia Preta, depois, a praia do Meio e da Redinha. Esta última, por volta de 1920”.

As primeiras famílias de veranistas

E foi na manhã de 22 de novembro de 1921 que desembarcaram, no chamado porto-velho, nas vizinhanças do antigo e destroçado Cemitério dos Ingleses, as cinco primeiras famílias de veranistas, apontadas por Gil Soares.

São elas: dr. Paulo de Abreu, seu genro Boanerges Leitão, da firma Julius von Sohsten & Cia, posteriormente contador geral do Estado; Pedro Fonseca, tesoureiro do Correio-geral; José de Luna Freire, gerente da filial das Lojas Paulistas; e Lauro Medeiros, gerente da filial da Fábrica de Cigarros Lafayette, de Recife, mais tarde proprietário do cinema São Pedro, no Alecrim.

Este último era primo de Gil Soares e, para sorte de muitos pesquisadores da praia, o trouxe como hóspede, para que ele registrasse a simplicidade dos tempos antigos da Redinha. Todos ficaram a residir em casas de palha alugadas, exceto o dr. Paulo de Abreu, que foi ocupar a que mandara construir durante o ano.

Dr. Paulo Pinto de Abreu (1861-1947), apontado por Gil Soares como um dos primeiros veranistas “de fato” da Redinha, era baiano de Alagoinhas. Em 1907, ele chegou a Natal, onde se fixou definitivamente. Major-médico reformado do Exército, também prestou serviços ao antigo Batalhão de Segurança (Polícia Militar) e aos Hospitais São João de Deus (tuberculosos) e São Roque (variolosos). Durante 18 anos atendeu toda manhã, gratuitamente, as crianças levadas ao Instituto de Proteção e Assistência à Infância, dirigido pelo seu colega Varela Santiago. Os anúncios na imprensa, de sua clínica particular, traziam sempre, no final: “Consultas grátis aos pobres”.

Pela manhã, as famílias de veranistas seguiam para o trabalho no pequeno bote à vela do comerciante Augusto Barroca, retornando ao fim da tarde partindo do cais da Associação da Praticagem, no começo da atual rua Chile, banhados pelo pôr-do-sol do Potengi, que se multiplicava na calmaria do rio.

O único transporte regular entre a Redinha e a outra parte da cidade era subvencionado pelo Estado: a canoa do velho Piéca, que fazia a travessia daquele trecho do Potengi duas vezes ao dia. Pela manhã, a canoa levava lavadeiras para o trabalho no rio Doce e voltava à tarde. Ainda cedo, ela ia ao Passo da Pátria, levando populares que vendiam legumes no mercado da Cidade Alta, retornando depois, ao meio-dia.

O transporte dos botes e canoas pelo rio Potengi era o único meio de se chegar a Redinha naquele começo de século 20. Os veranistas e admiradores da praia bonita vinham como que guiados por um “misterioso chamamento”, como observou Newton Navarro. A rusticidade e singeleza das casas de palha somavam-se à rotina e costumes seculares de pescadores, aos peixes empilhados nos samburás, fisgados pela rede de tresmalhos: herança dos índios Potiguaras.

Natal nem bem iniciou seu processo de urbanização, com o charme dos bondes elétricos subindo da Ribeira à Cidade Alta, e as famílias da elite natalense já procuravam fugir da urbe. E o chamado misterioso da Redinha começava a ecoar pela Província. Em 1922, um novo grupo de veranistas chegava à praia. Dessa vez, coube ao professor e advogado Francisco Ivo Cavalcanti, conhecido como Mestre Ivo, coordenar a vinda dos novos visitantes.

Faziam parte do grupo o dr. Odilon Garcia Filho, agente do Loide Brasileiro; o médico Mário Lira, professor do Atheneu; os comerciantes Enéas e Manoel Reis; a viúva Julieta dos Reis Couto e filhos; e Francisco Nogueira da Costa (Nogueirinha), da firma Wharton Pedroza.

Aos poucos a Redinha, que passou 400 anos sem se preocupar com o progresso, ganhava vida social intensa e distanciava-se cada vez mais da paisagem bucólica que a retratou desde o século 15. A primeira transformação substancial da fisionomia da praia foi a substituição das casas de palha da linha de frente, onde habitavam pescadores e rendeiras, pelas residências de tijolo e taipa, já com o alpendre dos novos veranistas.

Por essa época, ainda no início da década de 1920, dos veranistas mais famosos, Barôncio Guerra (1882-1944) transferiria seu veraneio para a Redinha de Frente. Foi ele quem musicou a letra do hino a Nossa Senhora dos Navegantes, escrita pelo advogado Francisco Ivo.

Festejos

Para Gil Soares, “pelo menos até 1934” não houve festa alguma que pudesse ser comparada à do Natal de 1924. Segundo ele, as embarcações trafegavam desde a tarde até de madrugada, trazendo e levando pessoas da Capital. No que chama de “grande descampado”, espalhavam-se barracas de quermesses, bem sortidas. Tudo muito concorrido e animado. A coordenação do programa esteve a cargo de Lídia, esposa do juiz de direito Francisco de Albuquerque, novo veranista.

Algumas das atrações da festa retratavam a Redinha de outrora: um local não só de atração turística e da elite natalense, mas também rica culturalmente, com manifestações culturais diversas. Na ocasião, foram reunidos moças e rapazes, com a orquestra de Tibiro (Joaquim de Sousa Freire, inspetor de alunos do Atheneu), para números de canto e recitativo. Promoveu jornadas do Pastoril e ainda conseguiu a exibição de Coco, orientado por Arari Brito.

Segundo Gil Soares, o ponto alto da programação foi uma espécie de “Desafio”, com um grupo feminino a representar a praia de Areia Preta e outro, a Redinha. Os versos do grupo de Areia Preta mostram, naqueles meados da década de 1920, a lenta evolução da Natal província, com o melhoramento gradativo da linha de transporte que ainda iria descer à praia, ou mesmo o deboche sobre a luz elétrica, que já iluminava aquele trecho litorâneo.

As palavras entoadas pelo grupo da Redinha retratam uma praia longe do progresso, como permanece até hoje, mas orgulhosa de seu mar e de sua cultura. Eis os versos:

AREIA PRETA: “(I) Nossa Areia Preta/ Tem encantos mil/ Como em parte alguma/ De todo Brasil/ Perto das areias/ No azul do mar/ À noite as sereias/ Vão ali cantar/ (II) Lá nós temos tudo/ Luz e sedução/ Quem andar ali/ Deixa o coração/ Seja melindrosa/ Seja almofadinha/ Não troco meus banhos/ Pelos da Redinha/ (III) Lá na Areia Preta/ Ao calor do sol/ Moças jogam tênis/ Moços futebol/ Vamos ter o bonde/ Ainda este ano/ Pois assim promete/ Seu Coriolano”.

REDINHA: “Aqui eu nasci/ Aqui me criei/ Melhor do que isto/ No mundo não sei/ Melhor que a Redinha – Ninguém acredita/ Quem isso afirmar/ Vai fazendo ‘fita’/ Aqui na Redinha/ É coisa supimpa/ Estamos bem perto/ Da praia da Limpa/ O banho é delícia/ É mesmo um colosso/ Vamos ter sereias/ Mas de carne e osso/ (III) Estrebilho: Não vale cidade/ Nem a Capital/ A praia é o encanto/ O nosso ideal/ Na Festa dos Reis/ Na Festa do Ano/ É bom camarada/ O velho oceano”.

Depois da missa de meia-noite, Gil Soares afirma que “o grande baile do Redinha Clube se prolongou até quase o amanhecer”.

Redinha da elite natalense e dos registros de Mário de Andrade

Nos fins de 1926, a família do deputado Juvenal Lamartine não encontrou mais casa de tijolo ou taipa para veranear. É que, mesmo a Natal provinciana, com novidades despontando a cada ano, como a consolidação do sistema elétrico de energia ou as linhas de bondes a expandir-se pelos bairros recém-inaugurados, a Redinha já havia sido descoberta de vez pela sociedade natalense.

A família Lamartine, segundo Gil Soares, aceitou alugar uma casa de palha, na linha da frente. “E aquelas moças, tão bem educadas, filhas do já escolhido Presidente do Estado, eram louvadas por veranistas pela simplicidade e modéstia no ambiente praiano. O pequeno Oswaldo (Lamartine) divertia-se quase todas as tardes apanhando siris na maré”.

Ainda na década de 1920, um jornal manuscrito, O Farol, divulgava os acontecimentos sociais da praia e fazia merecidos elogios a moças e rapazes de muita distinção, ali veraneando.

A praia da Redinha sempre foi cortejada por intelectuais, boêmios e artistas, os quais viam em sua paisagem balneária, entre mangues de rios e mar aberto, um lugar mágico para inspiração e descanso. Quando visitava Natal, em 1929, o folclorista e escritor paulista Mário de Andrade, de passagem pela Redinha, encantado, disse no seu livro Aprendiz de Turista: “Oculta nessa monotonia de banda do mar, fica a Redinha, praia de verão, bairro em que ninguém sonha pela preguiça do pensamento que atravessa o rio com esse sol”.

O escritor Mário de Andrade foi convidado pelo mestre Cascudo a conhecer o folclore e a beleza do povo potiguar e ficou maravilhado com a travessia de barco, que saía do cais da rua Tavares de Lira até o trapiche, em frente ao hoje Mercado da Redinha. Naquela época, a travessia pelo rio Potengi era feita de barco à vela, e só dependia dos ventos e dos braços fortes do pescador que comandava a embarcação.

Em março de 1935, o advogado Gil Soares, que trouxe à Redinha da década de 1920, sem datas ou à Redinha desinformada, esquecida em seus fatos históricos, alguns acontecimentos que elucidaram o ambiente daquela praia de areias relaxadas, é nomeado promotor público, na Serra de Martins, onde nasceu. Abre-se, a partir daí, alguma lacuna nos detalhes do ontem, da Redinha da década de 1930.

Somente em 1938, através do prefeito Gentil Ferreira, a Praia da Redinha, “futurosa estância balneária”, como consta na Lei nº 603 de 1938, incorporava-se ao município de Natal. Ainda hoje, como bairro, é limitada a norte com o município de Extremoz; a sul, com o rio Potengi e manguezais; a leste com o Oceano Atlântico; e a oeste com a estrada de Jenipabu.

Redinha na Segunda Grande Guerra

Nos idos de 1940, a Redinha assistiu de camarote aos avanços da Segunda Grande Guerra. Do estuário do Potengi, nas bandas do rio Doce, os veranistas e moradores se encantavam com os pousos constantes dos hidroaviões, nas proximidades da Rampa. Não era novidade a frequência de aeroplanos e aviões naquele trecho de rio. Nos idos de 1920, Natal já era importante rota de aviões comerciais. Mas, naqueles anos de 1940, a magia era acompanhar os equipamentos de guerra.

Pesquisador, testemunha ocular da Guerra e veranista da Redinha na época, Lenine Pinto relembra algumas passagens daqueles tempos: “Dezembro chegara e na praia da Ridinha quem não estava batendo ‘crown’, em direção à croa que se formava nas marés baixas, ficava nos alpendres para as brincadeiras de passar aliança, fazer adivinhações, decifrar charadas, cantar cantigas nos cavaquinhos. Ao cair da tarde, o pequeno mundo dos veranistas reunia-se na beira do rio à espera do último bote. Estavam assim, naquela tarde, apreciando o Palmyra que chegava bordejando para vencer o vento contrário, quando são despertados pelo anúncio de Mandioca, apontando o lado do oceano: ‘Navio de guerra! Olha lá um navio de guerra! Ao mesmo tempo aproava na boca da barra, com os canhões à mostra, um navio cinzento e garboso, ligeiro como os antigos ‘avisos’ da Latecoère. Deslizou pelo canal na direção do Refoles, enquanto seus alvos marinheiros, do tombadilho, trocavam acenos com as moças do grupo e com as que corriam de suas casas para saudar-lhes a passagem”.


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Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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