REDINHA VELHA: Cemitério dos Ingleses (parte 4)

cemitério-dos-ingleses

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Este texto integra uma ampla matéria jornalística sobre a história da praia e bairro da Redinha Velha, que será dividida em 10 partes. A reportagem foi premiada no edital Auxílio à Publicação de Livros, Revistas e Reportagens Culturais, na categoria Reportagens Culturais. Tem recursos da Lei Aldir Blanc, e patrocínio do Governo do Estado do Rio Grande do Norte através da Fundação José Augusto, e Governo Federal através da Secretaria Especial da Cultura e do Ministério do Turismo.

Existem frases que beiram à redundância, mas que explicam o fato tal como ele é. O Cemitério dos Ingleses, localizado na Redinha, em frente à gamboa Manibu, é um cemitério morto. Há décadas perdeu sua função: dar sepultura aos “marinheiros” aqui falecidos.

O lugar poderia ser monumento tombado como patrimônio público por sua importância histórica. Mas, são poucos os que conhecem sua história e menos ainda os que sabem sua localização. Isso porque, hoje, nada resta da antiga necrópole. Alguns coqueiros continuam no lugar, como testemunhas vivas dos estrangeiros mortos, renegados pelos preceitos religiosos de outrora.

Não há data precisa sobre a edificação do Cemitério dos Ingleses, mas Cascudo restringe a abstração entre os anos de 1867 e 1869.

Até a construção do Cemitério Público do Alecrim, em 1855, ou mesmo do Cemitério dos Ingleses, entre os anos de 1867 e 1869, Natal desconhecia o que era cemitério. Enterrava-se o cadáver dentro das igrejas, ao redor delas ou do cruzeiro. A matriz de Nossa Senhora da Apresentação ergue-se sobre uma base de ossadas humanas, sepultadas durante séculos.

Da memória do historiador Lauro Pinto, transcrita em seu livro Natal Que Eu Vi (1971), o Cemitério dos Ingleses ganha mais descrição: “Está plantado em uma pequena elevação no ângulo entre o rio Potengi e a gamboa Manibu. O local foi bem escolhido, pois além de muito bonito, jamais será atingido por qualquer maré. Lindo, porque a vegetação ali está sempre verde e o local está cercado por quatorze coqueiros antigos. Beleza e silêncio. Poético chão para o sono eterno”.

Intolerância religiosa

O Cemitério dos Ingleses surgiu ante a intolerância religiosa. No cemitério Público do Alecrim, naquela segunda metade do século 19, só podiam ser enterrados católicos. Na época, o comércio importador e mesmo exportador eram feitos por barcos quase que exclusivamente estrangeiros. Embora nosso Porto fosse frequentado por dinamarqueses, holandeses, etc., os ingleses eram maioria. “Eram os embarcadiços que o povo chamava de ‘marinheiros’”, escreveu Lauro Pinto.

Ao chegarem a Natal de ontem, os estrangeiros encontraram clima adverso e eram mais facilmente vitimados pelas epidemias da época, como febres, impaludismo, tifo, etc. Muitos foram mortos e, por serem protestantes (anglicanos e calvinistas), não poderiam ser enterrados no cemitério do Alecrim, lugar de católicos.

Para suprir essa necessidade, foi construído o Cemitério dos Ingleses, na Redinha, onde os “capa-verdes”, como o povo apelidava os protestantes, passaram a ser sepultados.

Lauro Pinto aponta também outro fator possível para a construção do Cemitério: “Tenho para mim, e que também deve ter concorrido para a edificação do novo cemitério, seria a dificuldade de se fazer um sepultamento no Alecrim, tão longe e sem estrada razoável. Muito prático, e o inglês sempre foi homem que não gosta de perder tempo, e, mesmo lógico seria fazer no lado esquerdo do Potengi, tão perto dos vapores”.

Tarcísio Medeiros é mais preciso quando conta que, durante as epidemias ocorridas depois de 1860, já se encontrava estabelecida na Ribeira, com escritório na antiga Rua do Comércio (hoje Tavares de Lira), esquina com a Rua Chile, primeiro prédio à esquerda, a Firma Exportadora John Ulrich Graff e Cia., de suíços e ingleses. Muitos dos seus empregados morreram, e não podendo receber sepulturas nas igrejas ou no Cemitério do Alecrim, foram enterrados na Praia da Redinha. Por isso, a denominação de “Cemitério dos Ingleses”. “As ruínas dos túmulos atestam o fato”, ressaltou o historiador.

Sobre os “protestantes, luteranos clássicos”, da empresa Ulrich Graff, Cascudo afirmou que “esses rapazes morreram como moscas durante a febre amarela e o cólera-morbo. Povoaram o cemitério na margem esquerda do Potengi”.

A peste de cólera-morbo matou 2.563 pessoas na Província e 215 no Natal. Nesse período ainda não havia o Cemitério dos Ingleses. No ano seguinte, em 1860 “houve uma onda de bexigas, ocupando dois médicos apenas na capital”.

Cemitério dos Ingleses ontem e hoje

Para o Lauro Pinto ainda meninote, em 1919, o ingresso no Cemitério dos Ingleses era fácil, pois não havia nenhuma proteção de muro ou cerca. Dessas recordações de infância, o historiador lembra andar sobre as sepulturas que, embora danificadas, permitiam visualizar algumas inscrições.

Mais de 50 anos depois, Lauro Pinto revisitou o lugar, no início da década de 1970: “Estive recentemente no ‘Cemitério dos Ingleses’ fazendo uma visita sentimental e nada mais encontrei do antigo campo santo. Apenas depois de muito procurar descobri a quina de alvenaria de uma sepultura já encoberta de areia. Era tudo que restava. O seio do monte deve guardar ainda os restos materiais dos ‘marinheiros’. Encontrei, sim, no local, precisamente no lugar onde estavam as sepulturas, uma viçosa plantação de feijão-verde. Só os coqueiros em redor do que foi o cemitério, estão vivos. São as únicas testemunhas mudas de nossa maldade. Já que não soubemos zelar os túmulos dos embarcadiços estrangeiros que concorreram para o progresso de nossa terra, pedimos a Deus, neste momento, amparar suas almas”.

A situação de abandono do Cemitério dos Ingleses já era constatada por Câmara Cascudo 35 anos antes, no livro História da Cidade do Natal, em sua 3ª edição: “Em julho de 1935 visitei demoradamente o Cemitério dos Ingleses. Espalhara-se a lenda de ouro enterrado pelos holandeses. Os túmulos foram rebentados, brutalmente, revolvidos e dispersos os esqueletos. A ferocidade ávida destruiu tudo. A cupidez analfabeta e sacrílega nada respeitou. Apenas li, no transcepto duma cruz: – Whmr Eckett”.

Em 17 de setembro de 2005, este autor visitou o velho Cemitério dos Ingleses, onde mais nada se via. Os 14 coqueiros descritos por Lauro Pinto eram em torno de seis dezenas e, plantados ainda em um elevado de areia, formavam paisagem imponente, cercada de muito verde. O acesso ainda era fácil, mas desconhecido pela maioria. Logo após a entrada dos automóveis em direção à balsa da empresa Norte Mar Navegação e Turismo Ltda., havia um caminho estreito de areia, pelo lado direito. E logo se viam as dezenas de coqueiros. Ao lado, um barraco, muito lixo ao redor e quatro cachorros barulhentos. Era a morada do “pastorador” do lugar, Eliezer Nunes. Ele afirmou trabalhar com reciclagem de lixo e que pastorava o lugar a mando da firma Conami, ligada ao ramo de embarcações, proprietária do terreno onde descansa o Cemitério dos Ingleses.

Sobre a localização exata das covas antigas, Eliezer Nunes é enfático: “É aí em cima, mas você só vai ver uma escavação que não dá pra ver nada”. Ele estava certo. Não havia mais nada. Alguém mais curioso procurou alguma pista e fez uma escavação no ponto mais alto do monte. Lá havia apenas um tijolo amarelado e imóvel.

Apenas na frente do “Cemitério”, nas águas da gamboa Manibu, encontram-se resquícios do passado: duas baiteiras com dois pescadores em cada, a pescar com tainheiras de 80 braças, prática secular daquela praia de rio e mar.

***

Com mais alguns anos o século 20 aportaria na praia da Redinha. A Lagoa de Extremoz, o Rio Doce com as canoas ancoradas repousando em seu leito, assistiriam ao gradativo desenvolvimento da velha praia. Mas as alvas areias que circundavam o lugar ainda transmitiriam solidão e solidões por mais alguns anos.

Segundo o escritor Manuel Onofre Junior, até fins do século 19, os banhos de mar e temporadas de veraneio eram ignorados nas praias de Natal, as quais eram aproveitadas apenas pelos pescadores nativos. Nos fins da primeira década do século seguinte, iniciou-se o movimento de veranistas nas praias potiguares. Mas, o costume iria consolidar-se apenas na década de 1920, onde os coqueiros, imponentes, receberiam seus visitantes.

É o que veremos na quinta parte desta série!


LEIA TAMBÉM:

Redinha Velha: mar de tradição e boemia (parte 1)

Redinha Velha: Dos franceses ao povoado dos reis (parte 2)

REDINHA VELHA: Barões, serestas e poesia (parte 3)

Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidos do mês