Na juventude, o fanatismo pode ser ingenuidade ou lavagem cerebral. O da ingenuidade se cura com o amadurecimento. O da lavagem cerebral se gruda à mente feito tatuagem, e deságua no fundamentalismo. É assim o fanatismo da mocidade.
Na idade adulta, o fanatismo nasce decorrente da esclerose intelectual. Não tem cura. O único jeito é evitar o contato, que não produz contágio mas enche o saco…
O cantor e compositor Romildo Soares se encontra neste momento no Hospital Gizelda Trigueiro. Romildo deu entrada na unidade ainda no carnaval. Ele aproveitava os festejos no polo do Centro Histórico de Natal quando passou mal e, sem conseguir uma ambulância do Samu, foi de táxi com ajuda de amigos ao Hospital.
No Gizelda foi verificado que Romildo sofre dos sintomas provocados por três abscessos, que são causados por infecções bacterianas. Geralmente os abcessos vêm acompanhados de febre alta, calafrios, suores, mal-estar e dor ao toque.
Esses abscessos são mais frequentes em pessoas obesas, pessoas que apresentam seborreia, higiene deficiente, diabetes mellitus, que fazem tratamentos com corticoides, usam roupas apertadas, ou com sistema imunológico debilitado.
Talvez Romildo se encaixe nesse último quesito. Pessoas próximas informam que ele está bem debilitado, mas está recebendo cuidados médicos, está bem alimentado e retomando a medicação necessária ao seu quadro geral.
Amigos têm iniciado uma coleta de dinheiro e materais para organizar a vida de Romildo após sua internação. Sua situação pessoal, dizem, está bastante difícil. Quem quiser contribuir entre em contato pelo zap: 9988-8166.
A professora Isaura Rosado assume mais um posto de comando na seara cultural nesta quinta-feira (27) quando assume a recriada secretaria municipal de Cultura de Mossoró. Ela substitui o arquiteto e produtor de eventos Eduardo Falcão, nomeado no início da gestão Rosalba Ciarlini.
Isaura Rosado é, ao lado de Dácio Galvão, uma das gestoras mais longevas da cultura potiguar. Dirigiu a Fundação José Augusto nos governos de Wilma de Faria, Rosalba Ciarlini e de Robinson Faria (deixou o cargo em março de 2018 para se dedicar à campanha do sobrinho Betinho Rosado).
Isaura também dirigiu a Funcarte no início deste século. Foi dela a ideia da criação do Auto de Natal.
As ruas estão cheias. Onde chove ou onde não chove. Em todas as cidades a festa do povo derrete em cinzas a máscara da hipocrisia. O Brasil tem tão poucos evangélicos assim? Pergunto por que com tantas igrejas fanáticas, vendendo milagres, era de se esperar um país recolhido ao retiro. (aqui, excluo da crítica os evangélicos luteranos, das igrejas protestantes que merecem meu respeito, trato das “igrejas” empresas da picaretagem dos Malafaias, Edir Macedo, Romildo Soares, Valdomiro e et caterva.)
Mentiram. Tem retiro nenhum. Ou “evangélicos” de mentira no meio da esbórnia. Onde estão os evangélicos do poder? Farreando nos escombros.
Quantos blocos ou movimentações de ruas são movidos por “artistas” vinculados ao fascismo? Ou ao humor? Quantos? Nenhum.
Por quê? Porque o fascismo não tem graça. É uma nojeira fantasiada de ordem, de sossego, de união. Sem ordem legal, sem sossego pessoal, sem união social. Isso é o fascismo.
“Pernambuco tem uma dança
que nenhuma terra tem”
Estes versinhos bem expressam a pernambucanidade do frevo. O legítimo, só made in Recife. Foi aí, que, no começo do século XX, ele nasceu, filho do maxixe e da habanera, segundo alguns estudiosos.
Num excelente ensaio, já clássico, Valdemar de Oliveira, estudando as fontes do mais carnavalesco dos gêneros musicais, esclarece:
“Recuando-se (…) de uma geração para outra – de pais, a avós, bisavós, trisavós, compreende-se a dificuldade em conceituar, rigorosamente, a origem do frevo, isto é, em abrir caminho na terra do Tempo para descobrir-se até onde vão suas radículas. De começo, é claro, não era maxixe, nem polca, nem quadrilha, nem dobrado ou modinha, e era tudo isso, no fim de contas, em solução perfeita.” (“Frevo, Capoeira e Passo” – 1971, pág. 33).
Música popular (mas não folclórica) e forma de dança, o frevo, talvez a mais engenhosa expressão musical brasileira, ficou meio enjeitado. Perdeu terreno para o samba e a marchinha, por causa de sua regionalidade e do seu caráter estritamente carnavalesco. Só nos últimos anos tem obtido maior difusão nacional, e é executado com mais frequência fora dos dias de Momo. Compositores como Alceu Valença e Morais Moreira o prestigiam sempre.
Existem vários tipos de frevo, mas o genuíno é o frevo-de-rua. Fácil distingui-lo: é aquele que faz a folia “frever” na alucinação do passo. Exclusivamente instrumental, requer fanfara incrementada, num esbanjamento de metais. Essa modalidade foi eclipsada pelo frevo-canção, menos trepidante e mais romântico, que surgiu por volta de 1930 e logo passou a fazer concorrência à marchinha. É frevo cantado.
Deve-se mencionar, ainda, dentre as modalidades principais, o frevo-de-bloco, parente da marcha-rancho. Só tem graça quando executado pelos corais dos “blocos”, animação dos carnavais recifenses. Pede orquestra de pau e corda. Há, entretanto, uma interpretação individual muito boa, fazendo exceção à regra; é a do Hino do Batutas de São José, por Zélia Barbosa com o Quinteto Violado, gravação incluída no LP “Música Popular do Nordeste”, vol. 1, da Marcus Pereira. A voz límpida, parecida com Nara Leão, valoriza essa belíssima composição (de autoria de João Santiago), cuja letra, apesar de tosca e ingênua, ou por isso mesmo, não poderia deixar de entrar em qualquer antologia.
Mas os mais lindos frevos-de-bloco são, sem dúvidas, Evocação nº 1, de Nelson Ferreira e a Marcha nº 1 de Vassourinhas, de Matias da Rocha. Desta os versos singelos já ganharam sabor folclórico, principalmente estes:
“Se essa rua fosse minha /eu mandava ladrilhar/com pedrinhas de brilhante /para o meu amor passar.”
Vale dizer que Vassourinhas virou frevo-de-rua, “verdadeiro hino do carnaval do Recife”.
Evocação nº 1 tem na sua crônica sentimental um fato interessante. Foi a música que José Lins do Rego, saudoso do Recife antigo, pediu para ouvir após receber a extrema unção. Assim diz Aldemar Paiva em nota na contracapa do LP “O Que Eu Fiz… E Você Gostou – Carnaval Cantado de Nelson Ferreira”.
Quem desconhece estes versos?
“Felinto…Pedro Salgado… /Guilherme…Fenelon … /cadê teus blocos famosos?”
Fato digno de nota, Evocação nº 1 foi talvez o único caso de sucesso estrondoso do frevo no carnaval carioca. Dominou, absoluto, em 1957.
O escritor pernambucano Mário Melo considera José Lourenço da Silva (Zuzinha) o pai do frevo. “Foi ele quem estabeleceu a linha divisória entre o que depois passou a chamar-se frevo e a marcha-polca, com uma composição que fez época e pertencia ao repertório da minha gaitinha dos tempos acadêmicos” (Cit. por José Ramos Tinhorão – “Pequena História da Música Popular (Da Modinha à Canção de Protesto)” – 1975, pág. 141).
Dentre os compositores da pequena classe média recifense – muitos deles instrumentistas de bandas-de-música – salientaram-se outros nomes: Levino Ferreira (O Último Dia), os irmãos Valença (Um Sonho Que Durou Três Dias), etc.
Mestres, porém, existem apenas dois: Nelson Ferreira (Casá-Casá, Qual é o Tom, Come-Dorme, Pernambuco, Você é Meu) e CAPIBA (Lourenço da Fonseca Barbosa ), o primeiro talvez e mais importante, do ponto de vista só do frevo, por dominar, com a mesma maestria, todas as modalidades.
Capiba, que também é autor de canções de sucesso, notabiliza-se mais pelo frevo-canção (É de Amargar, Os Melhores Dias de Minha Vida, Quando se Vai Um Amor, E… Nada Mais, A Pisada é Essa, etc.). Ambos não somente compõem, criam música, mas também são exímios letristas. Da verve ferreiriana sirvam de exemplo os seguintes versos:
“Dedé, Dedé/Você diz que me qué /Mas você me enganô/E deu a outro o seu amô.
“Dêstá, você, Dedé, muié marvada /Gastei meu coração só com você /Dadá, Dedé, Didí, Dodó, Dudú/Dessas muié mais neste mundo eu não quero sabê.”
(Dedé – fragmentos. Interpretação de Claudionor Germano – LP “O Que Eu Fiz… E Você Gostou/ – Carnaval Cantado de Nelson Ferreira”).
Outra bonita letra:
“Maria, ó Maria, me responde já /Maria, onde está a minha fantasia?
(Bis)
“A minha fantasia é uma coisa louca /De um lado ela é palhaço/Do outro é Arlequim/
Metade é de seda /Metade de algodão/ Não é rica nem pobre/ Mas serve pra mim”. ”
(De “Minha Fantasia” – LP cit)
Capiba, assim como Nelson Ferreira, revela-se em sua arte um homem do povo. Nas letras de composições suas encontramos com frequência expressões do linguajar popular. Estes versos, por exemplo, em que ele faz trocadilho com a palavra farol, que significa, na gíria da época, pabulagem, mas também é o nome de um recanto de Olinda.
“Você diz que gosta de mim/Mas só pode ser brincadeira de berlinda/
Por que você mente tanto assim?/Quem vai pra farol é o bonde de Olinda.”
Outros bons momentos do Capiba letrista nestes fragmentos, aliás um tanto machistas…
“Mulher que não consente seu marido passear /E por qualquer besteira pega logo a reclamar
É bom ficar em casa pras crianças balançar /Chega pra lá, deixa o homem se virar.”
(“Deixa o Homem se Virar – Interpretação de Claudionor Germano – LP “Capiba – 25 Anos de Frevo”, 1975).
“Que é que eu vou dizer em casa /Quando chegar quarta feira de cinzas?
Que é que eu vou dizer, que é?/Com este cheirinho de mulher.”
(Que é Que Eu Vou Dizer – LP cit.)
O surgimento dos trios elétricos da Bahia, na década de 60, assinala o início de nova era para o frevo. Pequenas orquestras à base de guitarra elétrica, conduzidas em carros de som com alto-falantes superpotentes, logo tornaram-se coqueluche (vá lá o termo) nos carnavais de Salvador e, depois, de todo o Brasil. A elas deve-se o renascer do carnaval de rua.
Caetano Veloso tomou-as como tema na primeira e melhor de suas composições carnavalescas:
“Atrás do trio elétrico/Só não vai quem já morreu.”
(Carnaval de 1969. Gravações: do próprio Caetano e de Nara Leão).
O frevo é o gênero que melhor se presta para execução por aqueles conjuntos. E tem efeito eletrizante, sem trocadilho. Daí a redescoberta e o consequente prestígio junto a compositores novos.
Hoje acordei com o meu joelho direito doendo um pouco. Deve ser a chuva, que diz que vem e não vem, deve ser a idade, também… Contudo, eu acredito que o dito-cujo fique doendo mais quando estou sentado que quando estou fazendo coisas, pedalando, andando etc.
Assim, como hoje não fosse preciso ir na rua nem para comprar o coentro (rss), peguei a bicicleta e fui dar uma pedalada até o sangradouro da Barragem ARG.
Como disse outro dia, o sertão está começando a mudar de cor, depois das chuvas de janeiro e fevereiro, mas não está todo verde ainda.
Já desde o dia daquela chuva boa, que rolou duas semanas atrás, eu tinha ficado com vontade de ir tomar um banho no “secret point”. Passaram-se os dias; choveu de novo, outra chuva boa, anteontem. E hoje fui.
Antônio, pescador do Sítio Araras, chama o meu “secret point” de “Lagoa das Piabas Magras”. Trata-se de uma lagoazinha que se forma, às escondidas, entre os maciços de pedra que do sangradouro descem até o vale. Quando chove muito, se forma uma pequena queda de água bem bonita, que abastece a lagoa.
O local é muito pouco frequentado porque o acesso não é fácil e de consequência não é muito conhecido entre os moradores da região. A primeira coisa que se nota, à causa disso, é a falta de qualquer tipo de lixo. Isso pode parecer nonada, mas pelo meu ponto de vista é um parâmetro importante para uma apreciação prazerosa da beleza natural de um local meio afastado.
Estivemos pela primeira vez no “secret point” em 2013, com Mateus e Marina Luna, ainda pirralhos; em canoa, até o sangradouro e depois a trilha a pé. Tem um videozinho na net.
Com a bicicleta, eu consigo chegar pedalando num local pouco distante da lagoa e de lá por uma trilha que tenho já toda na cabeça, desço pulando pelas pedras; dando uma bela volta, de qualquer jeito.
Mas vale a pena. O local é muito bonito, com silêncio total, e o merecido banho refrescante é uma sensação agradável demais.
A volta eu já dou pelo outro lado da lagoa, porque nem sempre por onde sobe-se facilmente consegue-se descer, e vice-versa.
A subida é por um lajedo meio íngreme, que passa por cada pé de xique-xique grande que só, mas rapidamente se chega a uma cerca, seguindo a qual eu alcanço em breve a bicicleta.
…
– E o joelho, seu Jack?
– Ficou bonzinho
… espicha daqui, espicha dali… um trago longo no chopp espumante… então estaquei naquele trecho do livro “As Três Mulheres de Antibes”, 1936, de Somerset Maugham… e nele mergulhei…
“nunca poderemos conhecer tudo o que esconde a natureza humana. Só se pode ter certeza de uma coisa: ela jamais deixará de reservar-nos uma surpresa”.
Ruminando o texto, agora.
Sormeset Maugham, escritor inglês, famoso em sua época, mas parece que pouco lido hoje. Ele próprio se considerava “um contador de histórias”, “um escritor de viagens” e “escritor de segunda fila”.
Todavia, muitos de seus romances e contos foram adaptados para o teatro e cinema, como os filmes “Servidão Humana”, 1964 e “O Fio da Navalha”, 1946.
… peço o terceiro chopp ao garça – na faixa, véi, na faixa!… ruminando o texto, ainda… daí baixa poesia, teorias, musicálias, paixonálias, dor-de-cotô, o escambau… acabamos escrevendo-junto-com… e qualquer escriba revive nos nós-de-nós dentro de nós.
A leitura de um texto é sempre um quase-morte-revivência do texto. É que nem picada d’abelha africana. Doi e coça. Um rolé daporra, cumpadi…
Reinterpretamos o texto segundo nossas crenças, querências, gamâncias, idade, valores, sonhos, desejos, ideologias, esperanças.
Como também recauchutamos o texto segundo a crítica diferencial entre nossos conhecimentos e desconhecimentos do tema.
Inevitáveis revivals.
Em suma: fazemos o texto dançar ou musicar ou imagemfluir segundo nossas ruminâncias, imaginâncias e copos de chopp…
O que sabemos? Que certezas há? Que mudanças houve? Quetárolando-mermo? Cumaé? Oncovim? Oncotô? Oncovô? Digaí, manusho! Ei, outro chopp na faixa!!!
As de-formações do fato ao texto, do texto ao leitor, do leitor aos papos e debates – são de-formações inevitáveis.
Têm a ver diretamente com a vivência e formação do escritor e do próprio leitor. E do espírito crítico, calmo ou inquieto, que parece ser próprio da natureza humana.
Os aprofundamentos e ruminâncias sobre um texto quase sempre mistura, reduz, amplia, amarrota, níveis de significações de uma vida corrente exposta pelo escriba. E vida corrente é vida corrente, mano – não é algo fixado ou fixador.
O fluxo corrente da VidaViva não é uma superfície imediata, plana, abstrata. Fluxo é fluxo. Movimento.
Daí que mesmo no imaginário dos escribas, a VidaViva possui tempo, volume, profundidade, sons, curvas, enredos, ziriguiduns e bagalhas.
Todo texto encravilha e ecoa a VidaViva. Daí que todo texto é uma descrição que pulsa e faz pulsar.
Não traz solução nem imediata, nem única, nem chapada. Nem poderia trazer. Seria ingenuidade. Traz soluções ponderadas e desponderadas. Cômicas e escrachadas. Geniais e jumentais. Traz os multireflexos da VidaViva.
O texto apela ao sentir e ao comover? Claro: somos humanos e é a partir dessas sensibilidades que tornamos inteligíveis as coisas da vida real.
No afã da crítica em si, você sobrenadou o texto? Não percebeu sua profundidade reflexiva, mesmo nas trolagens? Não sacou as multiperspectivas que saltam de todo o texto?
Daí que um mesmo texto, lido pela mesma pessoa em várias épocas, abre, ou pode abrir, diferentes resoluções e perspectivas.
Produzidas ou não por nós, a vida real é constituída de diferenças – e não de igualdades. Uma igualdade social só pode ser considerada na diferença social.
Igualdade-na-diferença.
Não perceber isso é viver de ilusões teóricas pensando que são práticas. Porquanto o que faz mover a vida são os interesses de grupos – ou seja: as diferenças.
Por isso mesmo, a mensagem, de qualquer texto, é esticada, re-formada, desconstruída, redesconstruída.
A mensagem é literalmente mascada pelo pensar, pelo imaginar, pela cultura, de cada leitor. Como chicletes.
Daí que todo texto se multiplica num feixe de interpretações diferenciadas. A mesma e única mensagem se torna mensagens diferenciadas. Ou perspectivas. Por vezes o texto se esbagalha.
Ou seja: a “verdade do texto” ou mensagem, se multiplica numa conjunção de perspectivas e bagalhas das leituras.
Essa é a estranha realidade de qualquer livro ou texto. Inclusive do Livro da VidaViva.
Não poderia haver momento mais oportuno do que o atual para a reedição de “A pátria não é ninguém”, do escritor François Silvestre. Não apenas porque o livro está esgotado e tenha intrínseca qualidade, mas, sobretudo, devido a tenebrosa conjuntura política brasileira, que faz com que tudo ganhe assustadora urgência.
A primeira edição veio a lume em 2002, pela saudosa Editora A.S Livros, e foi muito bem recebida por críticos e leitores. A leitura causou-me forte impressão à época. É livro obrigatório em qualquer antologia ficcional que se faça no Rio Grande do Norte. Eu, que conheço relativamente bem a literatura potiguar, o coloco sem medo entre os dez melhores.
Com projeto gráfico primoroso (a capa, linda, é de Raíssa Tâmisa), a nova edição sai pela editora Sarau das Letras. Tem apresentação do escritor, crítico e integrante da ANL (Academia Norte-rio-grandense de Letras), Manoel Onofre Júnior, e prefácio do escritor e editor Clauder Arcanjo.
“Esta obra, no meu modesto entender, afigura-se importante pelo seu caráter de documento – painel das trevas – mas também pelos aspectos formais, reveladores de um artesão da palavra, no pleno domínio do seu ofício”, afirma Manoel Onofre Jr.
Em seguida, ele comenta a estrutura da obra: “A ação romanesca desenvolve-se em três planos distintos, sem preocupações de ordenamento cronológico: 1- os horrores da era Médici; 2 – a distensão ‘lenta, gradual e segura’, vale dizer, a ditadura agonizante; 3 – a infância sertaneja do narrador, no sertão pernambucano.”
“Neste livro de François Silvestre, os capítulos narram acontecimentos entre 1977 e 1982. Entrelaçados com intersecções, nem sempre em ordem cronológica, num intrincado tecido de memória, relato-reportagem e ficção”, escreve Clauder Arcanjo.
Ainda no prefácio, Clauder alerta o leitor que não irá encontrar somente “a reportagem de um período em que o medo imperava, e a tortura mostrava suas garras e sua fúria covarde nos locais eleitos pelos militares golpistas e seus áulicos-babões pra debutar maldades em cada vez mais desumanas maquinarias e procedimentos. Haverá de encontrar isso, mas verás, também que François não foge à luta de narrar tudo como uma crônica de época, madura e inventiva”.
Por decisão do autor não haverá lançamento desta nova edição de “A pátria não é ninguém”. O livro está à venda na Livraria Independência, em Mossoró, e na Cooperativa Cultural, no Centro de Convivência, da UFRN.
Senti uma vontade enorme de relê-lo, o que farei depois de acabar “Os irmãos Tanner”, romance de outro craque, o suíço Robert Walser.
A programação de shows do Carnaval de Natal 2020, sem dúvida, é das mais robustas dos últimos anos, se não a maior. A qualidade das atrações é sempre discutível. E o cachê, mais ainda. A edição desta quinta-feira (6) do Diário Oficial de Natal publicou o valor de cada um dos artistas nacionais convidados. O total chega a quase R$ 2 milhões.
O valor maior coube ao baiano Carlinhos Brown, um artista renomado, com história, com pegada percussiva e bem encaixado em uma programação carnavalesca. Na sequência vem duas bandas de forró: a Cavaleiros do Forró, dos maiores nomes potiguares no cenário nacional, mas forró no carnaval? E uma banda que esteve há um mês no Natal em Natal? E ainda a Saia Rodada.
Empatados estão Alceu Valença e Margareth Menezes, que como previ neste vídeo AQUI, após apresentação do Natal em Natal, também voltam ao carnaval de Natal. Com o mesmo valor, a apagada banda Babado Novo, que também esteve no Natal em Natal – na minha opinião, o maior desperdício de dinheiro de toda a programação e repetida agora.
Também com o mesmo valor de cachê estão a excelente cantora Iza, que abrirá os festejos de Momo em Natal, e Ricardo Chaves, que já chateia durante o carnatal, e agora vem também para o Carnaval. Mas ok, o axé tem seu espaço na folia e o cara tem lá uma trajetória decana.
Na sequência, os animadíssimos do Monobloco, sempre uma ótima pedida. Depois, Sergynho ex Pimenta Nativa. Ressalte-se que no Diário Oficial vem descrito dessa mesma forma, com o adendo de “ex Pimenta Nativa”, ou corre o risco de ninguém saber quem seja o sujeito.
A potiguar/carioca Roberta Sá embolsou uma grana justa. E a Gloria Groove é uma ótima pedida para animar o tradicional bloco d’As Kengas, no Centro Histórico. Mas pelo estilo e estética, logo me veio o comparativo com a Potiguara Bardo. E minha preferência, de longe, seria pela atração “local”, uma das grandes revelações dos últimos anos da música potiguar.
A melhor contratação, o Maestro Forró e a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, chega com um terço de um Carlinhos Brown ou menos da metade da maioria das atrações acima. Show imperdível! Acontecerá no Pólo Petrópolis (palco da Rua Seridó), na segunda-feira em horário a definir.
Duas outras atrações de peso, diferenciadas, também com cachês bem abaixo de uma Babado Novo da vida: o mestre Antônio Nóbrega e o cantor Toni Garrido. Se Antônio Nóbrega sempre esteve à margem do mainstream, Garrido é um cantor notório, pop, líder de uma das maiores bandas de pop reggae nacional, a Cidade Negra e fica difícil presumir um cachê tão abaixo dos demais.
Outros bons destaques da programação são Lia de Itamaracá, Daúde e Zezé Motta, esta última esteve em novembro por aqui, em apresentação no Centro Histórico em data alusiva ao Dia da Consciência Negra. Tem ainda a Duda Beat, que desconhecia, fui atrás e achei bem interessante.
Outras atrações, com valores de cachê menores, em maioria integram bandas de samba com apresentações agendadas para o Pólo das Rocas. A Fubica de Jubila, local, assim como a cantora Laryssa Costa (publicado na edição de ontem do DOM), irão receber cachês de R$ 3 mil.
Carlinhos Brown: R$ 185 mil
Cavaleiros do Forró: R$ 140 mil
Saia Rodada: R$ 140 mil
Alceu Valença: R$ 130 mil
IZA: R$ 130 mil
Margareth Menezes: R$ 130 mil
Ricardo Chaves: R$ 130 mil
Babado Novo: R$ 130 mil
Monobloco: R$ 115 mil
Sergynho ex Pimenta Nativa: R$ 100 mil
Roberta Sá: R$ 75 mil
Glória Groove: R$ 70 mil
Maestro Forró e a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério: R$ 60 mil
Toni Garrido e banda: R$ 50 mil
Duda Beat: R$ 50 mil
Almério: R$ 24 mil
André da Mata: R$ 10 mil
Antônio Nóbrega: R$ 55 mil
Banda Nagibe: R$ 35 mil
Lia de Itamaracá: R$ 29 mil
Zezé Motta: R$ 25 mil
Daúde: R$ 25 mil
Capilé: R$ 20 mil
João Cavalcanti: R$ 15 mil
Marquinhos Diniz: R$ 15 mil
Paulinho Mocidade: R$ 15 mil
Juliana Diniz: R$ 10 mil
Fobica do Jubila: R$ 3 mil
Domingo passado, eu coloquei o despertador para as quatro da madrugada; contudo, ainda me levantei um pouco antes disso. Tomei café, comi duas bananas, amarrei a bomba de inflar e o kit de reparo no bagageiro da bicicleta, peguei a bolsa e saí pedalando às quatro e meia, ainda no escuro.
Quando cheguei à periferia de Itajá, me encontrei com Evanildo Cesar, com o qual fui pedalando até a casa do pai dele, seu Cícero, não muito distante do trevo da BR304 com a pista que, passando por São Rafael, vai até Caicó.
Gustavo, outro ciclista que iria com a gente, não apareceu no local de encontro e assim seguimos logo pedalando apenas os dois; atravessamos toda a cidade e pegamos a BR, que tem acostamento asfaltado em ótimas condições.
A primeira ladeira que encaramos parece não terminar nunca, mas, com santa paciência e força nas pernas, chegamos ao topo dela e seguimos a pedalada sem outras dificuldades até o trevo de São Rafael, distante uns cinco quilômetros do de Itajá.
A estrada lá não tem acostamento nenhum e após poucas centenas de metros começa outra ladeira das que parecem não ter fim. Quando, já nos três quartos da ladeira, o declivo aumenta um pouco, achei que tivesse chegado a hora certa para dar uma parada e bater umas fotos do amanhecer. Também aproveitei para tomar uns goles de café e comer quatro biscoitos. Descansados, seguimos pedalando até a casa de seu Cicero, pouco distante.
A pedra pintada está mesmo no quintal da casa dele, atrás do cercado das cabras. Trata-se do único registro oficial de petróglifos no município de Itajá/RN. Fazia tempo que estava com vontade de conhecer o local e nesse dia finalmente fomos. Agradeço o amigo Evanildo pela oportunidade.
A grande pedra se encontra nas margens de um riacho que seca na estiagem e que, na época da chuva, no local até cria uma lagoazinha. Uma localização típica por uma itacoaticara, perto de um curso de água.
Os petróglifos são poucos e mal conservados. Tirei a foto de todos eles. Perguntei para Evanildo se no topo da pedra tivesse mais pinturas e ele me disse que não.
Confirmei no GPS a posição do local e voltamos às bicicletas para a pedalada de volta.
O retorno foi todo por caminhos de terra, numa pedalada tão boa que não me deu tempo ou vontade de parar e tirar uma foto. Quem conhecia o caminho certo era o meu amigo, que segui confiante, sempre pedalando a uma boa distancia de segurança nesse percurso misto de terra, pedras e areia fofa, com curvas rápidas e algumas descidas íngremes; ainda vou ver se consigo achar no wikiloc os singelos caminhos que percorremos.
Quando recomecei a orientar-me sozinho, reconhecendo uns lugares familiares, a gente já estava pelas bandas do Sítio São Francisco; num trevo, Evanildo dobrou por um lado e eu segui pro Sítio Araras, chegando em casa às sete e quarenta, três horas e dez minutos depois de ter saído. Acho que o percurso completo não deu 20 km, ou talvez pouco mais.
Luiz Gonzaga, grande sanfoneiro e cantor, cognominado Rei do Baião, distingue-se na História da Música Popular Brasileira, principalmente, como compositor. Mas, os seus maiores sucessos foram criados não por ele só, mas em parceria com Humberto Teixeira e Zé Dantas, de modo que estes compositores também são reis, com direito a todas as honras…
Zé Dantas (José Dantas de Souza Filho – 1921/ 1962), talvez o mais importante dos três, como compositor – letrista e criador de música – não tem obtido o reconhecimento que bem merece. Por que? Em sua carreira sempre se houve com muita discrição.
Autopropaganda não era com ele. Nunca se preocupou em administrar a própria glória. E, morrendo moço, exatamente quando o baião estava em declínio, seu nome apagou-se no mundo musical, ficou relegado ao esquecimento, por bastante tempo, somente voltando o merecer homenagens na década de 70, face à ressurgência do gênero nordestino. Ainda assim, não lhe foi dado, então, o devido realce. Zé Dantas continuou sendo ofuscado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, o que, aliás, se explica, no caso de LG, que sempre apareceu mais, por ser, além de compositor, intérprete e homem-show.
Note-se, porém, que as composições de Zé Dantas/ Luiz Gonzaga foram, mais do que as de Humberto Teixeira/ Luiz Gonzaga valorizadas pelos grandes nomes da Nova Música Nordestina. Alceu Valença, Fagner e Quinteto Violado – compositores e intérpretes – ressuscitaram êxitos como Vem Morena, Cintura Fina, Riacho do Navio, Sabiá, Vozes da Seca, A Volta da Asa Branca, e se abeberaram no trabalho de Zé Dantas & Luiz Gonzaga. Fagner, em dueto com o Rei do Baião, deu magnífica interpretação a Acauã, composição de autoria só de Zé Dantas (LP “Luiz Gonzaga & Fagner”, 1984). Já o Quinteto Violado havia revalorizado esta mesma composição – pequena obra-prima, diga-se de passagem – em seu LP de estreia, 1972.
Não obstante essa preferência, as publicações especializadas e a grande imprensa subestimaram e continuam a subestimar o grande compositor pernambucano.
Veja-se a “História da Música Popular Brasileira”, publicação em fascículos da Abril Cultural (1970 a 1972), que dedicou um número à dupla Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira, concedendo a Zé Dantas apenas uma página do fascículo. Tremenda injustiça!
Já a Enciclopédia da Música Brasileira (São Paulo: Art. Editora Ltda, 1977) incorre em erro semelhante: apresenta longo verbete sobre Humberto Teixeira, enquanto dedica a Zé Dantas poucas linhas. Observe-se que a referida Enciclopédia, obra digna de respeito, cita, equivocadamente, Acauã como sendo resultante da parceria Gonzaga/ Zé Dantas.
Ninguém pode negar a relevância histórica da dupla Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira. Deve-se a esta o lançamento do Baião, como gênero musical, “uma forma de integração da cultura popular nordestina à comunicação de massa”. Além de tudo, o patrimônio musical que a dupla doou ao Brasil e ao mundo é inestimável. Lamentamos, no entanto, que se queira superestimá-la, em detrimento de uma presença não menos importante na História do Baião: Zé Dantas.
Autor de numerosos baiões, cocos, xotes, toadas, e de alguns rojões, rancheiras e um maracatu, em todos estes gêneros Zé Dantas manteve-se fiel à temática sertaneja e nordestina; saiu dela, somente, em duas ou três marchas carnavalescas, uma toada natalina, duas “batucadas”, pouquíssima coisa mais. E, quase sempre, usou a linguagem matuta.
Dedicado à pesquisa do folclore, desde a juventude, soube em muitos casos, estilizar e adaptar a música rural sertaneja; valeu-se do Desafio e da Literatura Oral, em tudo conservando a autenticidade, homem do sertão, que era, exilado na cidade grande.
Na letra que fez para o xote Riacho do Navio (música de Luiz Gonzaga), podemos constatar uma grande nostalgia do sertão de sua infância:
“Riacho do Navio
Corre pro Pajeú
O Rio Pajeú
Vai despejar no São Francisco
(O Rio São Francisco
Vai bater no meio do mar) Bis
Ah! se eu fosse um peixe
Ao contrário do rio
Nadava contra as águas
E nesse desafio
Saía lá do mar pro Riacho do Navio
Eu vinha direitinho pro Riacho do Navio
Pra ver o meu Brejinho
Fazer umas caçadas
Ver as pegas de boi,
Andar nas vaquejadas
Dormir ao som do chocalho
E acordar com a passarada
Sem rádio e sem notícia
Das terras civilizadas.”
Esta belíssima composição recebeu, há algum tempo, nova roupagem na interpretação de Marina Elali, neta de Zé Dantas, grande divulgadora da sua obra musical.
De repente foi aquela confusão de pernas avançando para a mesa. Pernas de todos os calibres. Avançavam risonhas. Passo estugado.
Emaranhavam-se. E perdiam a identidade própria. Enchiam o espaço de cores e movimentos andantes e moderatos. Em close, eram passos curtos, agressivos, indecisos, agressivos ou calmos. Abrindo a perspectiva, parecia enorme hidra. Uma centopeia humana.
As pernas avançavam.
Vozes soltas, risadas, gritos, conversas, ruídos de pratos, talheres, copos. As pernas continuavam avançando numa dança estranha. Havia uma música espargindo som barroco, pontuado, em fuga perpétua bachiana. Lembrava a paz soturna de castelos medievais, por cujas escadarias de pedra úmida descia o Conde Drácula e sua sombra sinistra.
Por vezes lembrava uma paisagem campestre calma. Que a mente teimava em estruturar. Mas sempre fugia com os acordes pontilhados da fuga.
Talvez por conta das duas caipirinhas a paisagem abstrata interior transfugia, dançava, fazia piruetas irrequietas. Os caboclos desentocam. E abrem os zôios…
As pernas se abriam-fechavam coloridas,, alegres… e avançavam.
Glug, glug, glug, glug… ploc… ploc… preparei a segunda dose de uísque com duas pedras de gelo pra rebater as caipirinhas. Abri as comportas da imaginação.
Seres irreais pularam no ambiente e começaram a participar. Tronchura total.
Anãozinhos cochichavam entre si e saiam correndo. Gnomos astutos se escondiam rindo sob as saias das mulheres. Enorme coelho branco, bem vestido, com relógio de corrente no bolso do colete, passou apressado. Tirou o relógio e gritou: Eita porra! Vou chegar atrasado demais no jogo do Flamengo! Acho que era o coelho de Alice, de Lewis Carrol, repaginado.
Não havia mais parede na sala – em seu lugar um vale verdejante se estendia ao longe… campos de trigo… florestas… vales… um rio encolhia em voltas e alongava seu corpo líquido. Manadas de grifos amarelos amarelavam a cena. Seus cascos azuis corriam frenéticos no descampado.
De repente, foi chegando um bando de hippies com seus longos cabelos e colares de dentes de plástico. Começou a tocar não sei de onde Born On the Bayou, com Creedence Clearwater. A hipalhada ficou elétrica. Dançavam que nem zumbis chapadões. Fumaçavam umas bagas de marafa. Fumacê daporra, véi! Daí o DJ, lá deles, lascou Love, Devotionn and Surrender, de Santana. Um arraso!
Estranhamente, havia um navio pirata navegando no céu. Seus tripulantes dançavam bêbados em torno de uma barrica de rum preto cubano.
As pernas não mais caminhavam. Mas flutuavam e dançavam por sobre o vale um jazzminueto doido de Zéca Bastião Bar…
Drácula – o Conde – de óculos escuros, bregacalçapantalona, sempre sedento de sangue, s’enfiava-entrepernas suculentas duma ninfa menstruada que gemia agudos histéricos em lá-sustenido-menor, que nem desvairada cantora de ópera.
Fui apresentado a alguém. Só não tinha certeza se vinha do mundo real. Oi!… digaí! prazer!
Quatro crianças irromperam no cenário. Elas falavam uma língua estranha. Procuravam pelo pai. Eram alegres, coradas. Brincavam jogando bolas de neve entre si. Um enorme cão dinamarquês pulava com elas. Mais duas crianças surgiram. E foram todas irmanadas brincar de roda num gramado azul…
As pernas se contorciam-apressavam num avanço inexorável.
A coisa toda agora estava esquentando. Os duendes, Conde Drácula e toda gang resolveram investigar minuciosamente as fendasfêmeas circunjacentes. Subiam pelas pernas das mulheres e se penduravam nos pelos como macacos. Os grifos copulavam desesperadamente. Daí, um barulho infernal de cascos e urros em contraponto bachiano.
O grande coelho iniciava uma masturbação apressada e elegante, mas sempre consultando o relógio de corrente. Os hippies estavam completamente desligados do aqui-agora. E murmuravam palavras ininteligíveis.
Drácula – o Conde – se demorou um pouco mais na fendafêmea duma náiade que estava de boi. Ele tinha sede.
As pernas continuavam firmes no seu avanço e não se importavam com nada. Súbito, as pernas pararam em torno de uma mesa grande.
Lá estava a feijoada.
As pernas marcaram passo, ora num pé, ora no outro. Cresceu o vozerio. O ruído de talheres, garfos, copos, se tornou ensurdecedor. Aumentou o ritmo energético. O ar ficou elétrico. A música barroca foi esvaecendo. O cenário esfumando…
A feijoada sorriu… lambeu os beiços… e engoliu a todos!
Durante o quinto ano primário, no verão de 1971, minha geração se submeteu às provas do Exame de Admissão, um pequeno vestibular para acesso ao ginásio. Fiz as provas, confiante, e curti as férias de final de ano na expectativa de trocar de mundos, sair do pequeno Grupo Escolar Felizardo Moura, nas Quintas, e entrar num dos colégios estaduais de reconhecida competência. Quando o ano virou, o resultado foi publicado nos três jornais da cidade.
A lista saiu num domingo e meu pai comprou a edição de O Poti, mas nem ele, nem eu, conseguiu ver meu nome entre os aprovados. Eu não queria crer na reprovação, ciente de ter feito boas provas. Papai foi buscar a Tribuna, mesmo sabendo que a lista era a mesma distribuída pelo governo à imprensa. No entanto, para alegria geral da nação Cleodon, lá estava meu nome, aprovadíssimo, e a indicação da data de apresentação à minha nova escola.
Foi a única parte insatisfatória para mim, que não queria estudar no colégio Padre Miguelinho, por pura pirraça tribal. Mas no dia de se apresentar, fui lá e fiz uma via crucis de porta em porta procurando minha sala, que não aparecia.
Depois que a multidão de adolescentes sumiu nas salas, eu fiquei praticamente só em busca da minha, até que vi uma senhora com uma prancheta e com meu nome numa das páginas. Aí veio a alvíssara: eu iria para o Winston Churchill.
Tomei o ônibus e desci na Rio Branco, praticamente na calçada do trabalho de papai, a quem nem deu tempo avisar da mudança. Atravessei a avenida subi, feliz, os degraus do colégio, acompanhado por outro garoto retardatário.
Nos comunicamos explicando as mesmas situações, ele vinha a pé desde o Atheneu, onde também não queria ficar. Seu anjo da guarda deveria ser do mesmo time do meu, que também bateu as asinhas premeditando a mudança.
No ano anterior em que fizemos as provas, o Nobel de Literatura saiu para Pablo Neruda, autor da frase “eu acreditava que o caminho passava pelo homem e que dali tivesse que sair o destino”. Eu a inverteria por causa daquele encontro.
O garoto nos degraus e que acabou na mesma sala que eu, e depois nas mesmas salas durante o ginásio, e depois na mesma sala do científico, e depois amigo fraterno, e depois parceiro profissional, era Carlos Soares.
Carlos foi meu amigo mais longevo até ontem, 48 anos sem intervalos, que o acaso juntou naquele começo de 1972 e que revirou o dito de Neruda: eu acredito que o homem passa pelo destino e que dali tem que sair o caminho.
Fui testemunha de toda a trajetória do imenso talento de Carlos, desde os quadrinhos em caneta ou lápis, nos roteiros que eu inventava, passando pelos retratos em bico de peno, perfeitos, até tornar-se o artista absoluto que ele foi.
Meu coração disparou no sábado quando meu filho, seu sobrinho, avisou que havia duas ambulâncias na porta da “tia Rose”, o amor que Carlos emoldurou para sempre ao conhecê-lo através de mim. Avisaram que o quadro era grave.
Ontem, na notícia da sua morte, o coração não tinha como disparar, pois já passara os últimos dias no mesmo ritmo do primeiro susto. Desabei na mesa de um shopping, riacho nos olhos e sentindo algo arrebentado por dentro.
Das muitas e muitas coisas feitas juntos, meu pensamento estava naqueles degraus do Churchill, e eu pensava que se a vida me deu irmãos sanguíneos, o destino me deu um irmão de alma, um grandioso companheiro de jornada.
Nos meus delírios estudantis, contei com sua arte para compor folders políticos em off set, uma disparidade com os impressos em mimeógrafos. Arrisquei os primeiros textos críticos fazendo apresentação das suas telas em exposições.
Eu vi, numa tarde pardacenta em São Paulo – na rua México do bairro Brooklin – um célebre cearense abrir o tubo de papelão, desenrolar um trabalho de Carlos sobre a mesa e gritar: “porra, o boy é artista mesmo!”. Era Belchior.
“Um dia vamos dar um banho de arte nessa Pauliceia, eu pintando e tu poetando”, disse ele após os elogios do rapaz latino americano, feliz e sonhando nas ruas longe de casa. Não banhou São Paulo, mas pintou sonhos.
Nós, os cegos diante dos mistérios das cores, não imaginamos a visibilidade de algo tangível ou concreto numa tela do gênero abstrato. Carlos nos fazia ver nossos sonhos, nossos temores, nossos amores, em pinceladas mágicas.
De uma vida pessoal discretíssima, jamais afeito a grandes grupos, de uma timidez toda própria dos gênios, falava tudo por suas telas e por elas estabelecia uma relação íntima com o mundo. Acho que pintou mais que falou.
Meu velho companheiro de jornada era um reflexo no espelho, os defeitos comprometedores da saúde que eu tive, não havia nele. Viveu sem álcool, sem fumo e desde a adolescência criticava minha aversão a exercícios físicos.
Já escrevi outras vezes sobre a relação estreita que tenho com a morte desde a juventude; como mantenho a atenção nas sentenças dela. Cansei do formato em que ela só me tira e não devolve. Em seis meses, me levou três irmãos.
Carlos Soares foi o golpe mais forte, me pegou no contrapé da segurança emocional. Me resta Neruda, o mesmo daquele Nobel do ano das nossas provas de admissão: “vale muito ter lutado e cantado, vale muito ter vivido”.
Agradeço ao destino por ter nos colocado naqueles degraus do colégio. Pode ter sido acaso o encontro, mas não foi acaso que nossa jornada virou uma grande amizade. Vou catar os cacos da dor da saudade e juntar numa moldura de belas lembranças. Tchau, meu irmão. Até a próxima prova.
Vi O caso Richard Jewell (Richard Jewell – 2019), o último trabalho de Clint Eastwood. Sensação esquisita ver um filme sozinho no cinema. O caso de Richard Jewell começou e, em sala, estávamos sós: apenas eu e os meus botões e a história daquele sujeito, que Clint resgatou das entranhas da história americana contemporânea e jogou no turbilhão de uma trama cinebiográfica, familiar, cômica e trágica, anônima e pública.
Esperava que os fantasmas não aparecessem. E esperava ainda que O caso Richard Jewell fosse pelo menos próximo do último Eastwood e diferente do que vem apontando a crítica, que deseja sempre, em uma relação de amor e incompreensão, que o realizador prescinda das questões político-culturais que lhes são fundamentais, que se torne imune ou se distancie, assim, como quem troca de roupa, do seu mundo, cosmologia, imaginário, princípios.
Aliás, em relação ao cinema de Clint, a crítica se comporta como uma gangorra, ora elogiando os filmes, mas num esforço descomunal para separar o cinema da política ou de uma certa cultura republicana – e, então, as obras são incontornáveis, mas, politicamente, incorretas, ora recusando-as sob o pretexto de que sua ética está na ponta extrema do que deve ser politicamente aceitável.
Não teve jeito: os fantasmas apareceram ao longo da sessão e a crítica de cinema foi um deles. Eu sozinho ali, olhando para as imagens, prestando atenção aquele sujeito em um processo de formação e adensamento perceptivos do mundo, da vida, da lei e da ordem: autoproclamado agente da salvação pública – sob uma direção sem histeria, que elimina toda e qualquer atmosfera e encenação excedente, o que torna o desenvolvimento do personagem Richard algo mais brutal dada a inocência perigosa que conduz seus passos, comportamento, ações.
É justamente com a história de Richard Jewell que Clint promove esse encontro de forma mais brilhante, talvez, desde Gran Torino (2008), em que um certo mundo republicano estava em quadro como dimensão cultural marcante e dominava as imagens. O que torna esse enlace o fator das melhores sequências que vemos em O caso Richard Jewell ou, em outros termos, o desenvolvimento de personagem mais preciso.
Aquele conjunto de encenações – dentro da encenação clinteastwoodiana –, que envolve a chegada dos agentes do FBI a casa de Richard, a passagem deste em meio aos jornalistas e o seu depoimento no escritório policial americano, vale por uma centena de obras da década. Ali, com o sistema farsesco em quadro como numa comédia de horror, Clint expõe a farsa da lei e da ordem, a ilusão de um paranóico-patético e um sistema policial degenerado.
Em O caso de Richard Jewell, o estado de coisas que o diretor coloca em cena é confundido com apologia pelos seus leitores mais à esquerda. Sinceramente, não vejo aqui qualquer tom celebrativo de uma certo republicanismo/fascismo americano que desemboca num desenho positivo de Richard. E não sei também como é possível elogiar o filme destituindo das suas dimensões políticas ou culturais. Que não se concorde, equivocadamente, é uma questão diferente de tentar olhar para as imagens destituídas dessas dimensões. Não é possível no cinema de Clint, assim como não é no de Leni Riefenstahl – goste-se ou não dos lugares que ocupam/ocuparam na História –, ainda que a arte e o absurdo sejam um todo que, nesses casos e em outros similares, torne-se impossível de ser quebrado e separado.
E, ao contrário de trabalhos anteriores, Clint desenvolve aqui esse enlace sem perder o foco, pontuando o personagem, apresentando o contexto e desenrolando o drama pessoal e familiar, privado e público, com circunstâncias históricas e fílmicas que o envolvem, sem aquelas tramas secundárias como a dos irmãos que apaga pelo menos duas das cinco estrelas de As pontes de Madison (The bridges of Madison County – 1995). O foco em Jewell, na construção da sua personalidade, na sua imersão numa agencia da segurança, na ilusão de autoridade, não perde a força narrativa do início ao fim.
No primeiro bloco, da partida do game com o seu futuro advogado (a apologia as armas) à suspeita do cabeludo com uma mochila no show em Atlanta (o tipo criminoso inquestionável na cosmologia republicana de Richard), Clint desenvolve cada uma das fases da formação de Jewell rumo ao herói americano preso a um mundo doentio (o game, a sequência do tiro ao alvo, a coleção de armas sobre a cama), do autoritarismo (a batida na república de jovens em festa e as “blitz policiais” no College) e da paranoia da segurança (para garantir a lei e a ordem que, no documentário A 13ª Emenda (13th – 2016, de Ava DuVernay) tem a sua gênese e miséria registradas, do século XIX a atualidade, como um processo de regulação e encarceramento que se estende até o tempo de Richard). A progressão da construção da personalidade desse sujeito, nesse momento inicial, passa longe de tornar o último Clint Eastwood um evento de celebração a uma certa cultura republicana fascista.
Do início ao fim, não fica qualquer dúvida de que estamos diante de um paranoico, bobão, idealista (em seus próprios parâmetros), pateta ou, o que é pior, de um inocente perigoso. Se ao final esse sujeito ganha farda e distintivo não deixa de ser um sintoma de um modelo de sociedade que, em tela, Clint Eastwood registra sem disfarces. Uma sociedade com seus heróis de plásticos, enaltecidos e depois destruídos, postos em cena pela mesma mídia, eticamente, degenerada, colocada nas cordas por Eastwood n’O caso Richard Jewell sem qualquer concessão (o choro da jornalista ao final é igualmente patético, a força da nota do advogado de Richard na coletiva de imprensa empareda, sem lados, a mídia e o Estado, a chacota na sequência da oração depois do atentado não perdoa).
Se, por um lado, os casos que envolvem as táticas da jornalista que, sem pudor ou qualquer princípio, passa por cima de qualquer coisa para alcançar seus propósitos jornalísticos, são de fato os mais questionáveis, pois, como já comentaram, a jornalista em tela não é do mundo da ficção e sequer, já morta, tem como responder ao lugar que Eastwood lhe reservou na História; por outro lado, entretanto, são questões relacionadas a um personagem específico e não ao estado de coisas que constitui o que é central neste filme, que é mais uma crônica histórica cinebiográfica americana documentando mais um certo tipo de herói que brilha e se apaga.
Por fim, se a humanização do personagem é uma das linhas de força de O caso Richard Jewell, é porque Clint não filma um tijolo ou um pedaço de madeira, mas a complexidade humana e da vida – os indivíduos com seus anjos e demônios, contradições e sensibilidades específicas.
Recentemente estreou nas ondas do rádio (97,9 FM) do Rio Grande do Norte, o programa “Sem Amarras”, jornalístico comandado por um verdadeiro trio do mais alto nível: Osair Vasconcelos, Sávio Hackradt e Antônio Melo. Todo final de tarde, das 18 às 19 horas, um bate-papo inteligente e descontraído, com muito conteúdo sobre os principais temas do nosso cotidiano. Enfocamos, a seguir, alguns dados acerca desses ases do nosso jornalismo:
Macaibense, Osair Vasconcelos ainda estudante, começou sua carreira profissional, repórter de “A República”. Em seguida trabalhou em vários outros órgãos da imprensa natalense, e foi correspondente, em Natal, de “O Estado de São Paulo”, “Jornal da Tarde” e Rede Globo.
Considerado como uma das revelações da ficção do Estado, Osair publicou os livros: Encontros Passageiros com Pessoas Permanentes (2008), A Cidade que Ninguém Inventou (2010), As Pequenas Histórias, contos (2015) e, mais recentemente, Retratos Fora da Parede (2018). Todos esses livros alcançaram êxito de público e de crítica.
Osair Vasconcelos nos concedeu, em 2015, uma entrevista para o livro Impressões Digitais – Escritores Potiguares Contemporâneos, vol. 3, último trabalho de uma série de entrevistas que fizemos com mais de cem escritores potiguares. Abaixo, destacamos:
“Fui para ‘A República’ indicado por Remo de Macedo – colega de turma – já no primeiro ano de faculdade. Ele traduzia os telegramas da Associated Press. Chegamos no mesmo dia eu e Margareth Martins, também colega de faculdade, e que depois fez uma bela carreira no ‘Diário de Natal’. Como repórter de ‘A República’, fui me enturmando e conhecendo outros veteranos de primeira linha, como Antonio Melo, à época assessor de imprensa do governador Tarcísio Maia. Acrescente-se uma rápida passagem pela Rádio Rural, num programa que organizamos via a Cooperativa de Jornalistas de Natal – Coojornat.
No ‘Diário de Natal’ e na ‘Tribuna do Norte’, trabalhei em dois períodos distintos e de formas iguais: primeiro como repórter e, muitos anos depois, como diretor de redação. Fui para o ‘Diário de Natal’ na primeira vez indicado por Rogério Cadengue, repórter e depois professor na UFRN. Fui um dos formatadores do ‘Salário Mínimo’, com uma turma da Coojornat, e também do ‘Dois Pontos’, junto com Dodora Guedes e Ricardo Rosado, a convite de Marco Aurélio de Sá. O nome ‘Dois Pontos’ foi sugestão minha.
Antes disso, em 1979, quando era repórter na ‘Tribuna do Norte’, recebi convite para ser correspondente, em Natal, de ‘O Estado de São Paulo’ e do ‘Jornal da Tarde’, onde fiquei até 1988. E, em 1985, passei a ser, simultaneamente, correspondente da Rede Globo em Natal, de onde saí, em 1987, para ser chefe de redação da TV Cabugi, junto com Antonio Melo, ele como diretor de jornalismo – nós dois formatamos e botamos o jornalismo no ar.
Claro que tenho muitas lembranças das passagens por todos esses órgãos. Experiências variadas, talvez possíveis apenas aos repórteres, é o maior patrimônio que um jornalista constrói na carreira. Você se vê em situações ou diante de figuras às quais a maior parte nunca terá acesso. Teria muitas experiências a contar, mas fico com uma. Levado pelo seu redescobridor, Deífilo Gurgel, entrevistei para ‘O Estado de São Paulo’ e ‘Jornal da Tarde’, o mito Chico Antonio, louvado por Mário de Andrade como “um Caruso”. Só isso já preenche um enorme terreno no meu espaço de satisfação. Foi a primeira vez em que Chico voltou à cena nacional, depois de ser descoberto por Mário de Andrade, em 1927, e redescoberto por Deífilo Gurgel, em 1979.
Na Cabugi, vivi a possibilidade de criar programas como o RN Rural e o Meio Dia RN Especial. Lá, paralelamente à função de chefe de redação e depois diretor de jornalismo, fui apresentador do Bom Dia RN e repórter. Quero registrar a revista ‘Palumbo’, criada juntamente com Afonso Laurentino, Albimar Furtado, Tarcísio Gurgel e Dácio Galvão.
Finalizo voltando aos jornais por onde passei: trabalhei com jornalistas admiráveis, como Woden Madruga, João Neto, Afonso Laurentino, Ticiano Duarte, Nilo Santos, Vicente Serejo, Alexis Gurgel, Dermi Azevedo, Francisco Macedo, Dorian Jorge Freire, Aldemar de Almeida, Everaldo Lopes. Cito esses e poderia citar uma galeria ainda maior. Escolhi esses nomes como representantes de uma geração que muito contribuiu para o jornalismo natalense e com quem tive a graça de trabalhar e de me tornar amigo. Mas a minha geração foi, também, marcante. Foi a primeira a sair em massa da universidade e, dentro de alguns limites, revolucionou os nossos jornais”.
Jornalista e escritor, Sávio é uma daquelas figuras humanas que, de certo modo, colaboram, na maioria das vezes de forma anônima e solitária, com o nosso desenvolvimento cultural, mas que fazem toda a diferença. Estivemos juntos num evento da Caravana de Escritores Potiguares, em junho de 2019, ocasião em que Sávio palestrou, ao lado de Osair, para quase 300 professores da rede pública de São José de Mipibu, município da região metropolitana de Natal.
Nascido em Natal no dia 20 de outubro de 1956, Sávio viveu infância e adolescência na rua Trairi, em Petrópolis. Sua formação escolar teve início no colégio Sete de Setembro; em seguida, foi transferido para o Colégio Marista, onde concluiu o ensino médio. Graduou-se em Comunicação Social, pela UFRN, no início dos anos 80.
Depois de mais de vinte anos residindo e trabalhando nas cidades de Brasília e São Paulo, Sávio retornou a sua querida cidade de nascimento, em 2009, atendendo a um convite para ser candidato ao Senado, numa chapa apoiada pelo Prefeito de Natal, Carlos Eduardo Alves. Foi dessa forma que ele estreou, oficialmente, na política, embora já tivesse bastante experiência na área devido aos anos que trabalhou como consultor.
Sávio Hackradt sempre foi um ativista, desde a época da faculdade, onde inclusive presidiu diretório acadêmico e participou ativamente da luta contra a ditadura militar, além de ser um dos fundadores da Sociedade Civil de Defesa dos Direitos Humanos do RN e do movimento pela anistia. Em 1985, assumiu a assessoria de imprensa do Ministério da Administração, a convite do ex-ministro Aluízio Alves. Como repórter cobriu trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, quando conviveu com diversos líderes políticos do Brasil, como Ulisses Guimarães, por exemplo.
Jornalista conceituado, Sávio tem importante atuação na mídia norte-rio-grandense. Entre os veículos em que trabalhou estão: TV Universitária de Natal, Rede Globo Nordeste, Rádio Rural, revista RN Econômico e jornais A República e Diário de Natal; foi presidente do Sindicato dos Jornalistas do RN e da Cooperativa dos Jornalistas de Natal.
Profissionalmente especializou-se em marketing político-eleitoral e comunicação pública na Escola de Comunicação e Artes da USP, sendo, inclusive, professor convidado do curso. Desde início dos anos 80, exerce diversas atividades como profissional de marketing em campanhas eleitorais em vários estados do país. Tendo coordenado campanhas de vereador, deputado estadual e federal, governador, senador e até presidente da República, quando supervisionou a campanha de Mário Covas, candidato do PSDB na eleição de 1989, primeira campanha presidencial após a ditadura.
Ex-chefe do Gabinete Civil da PMN, ex-presidente da Urbana, Sávio se aventurou na área literária, na juventude, ao lado do poeta Carlos Gurgel; publicou O Arquétipo da Cloaca – 3×4, espécie de portfólio, em parceria com Carlos Gurgel, Carlos Paz e Flávio Américo. Recentemente Sávio recebeu a “Medalha Agnelo Alves”, da Academia Norte-rio-grandense de Letras, pela sua contribuição ao jornalismo do Estado.
Em 2016, o entrevistamos para o site de outro competente jornalista, Tácito Costa, e dentre várias passagens interessantes destacamos a seguinte:
Sávio Hackradt, o que você considera mais difícil na carreira de jornalista? Qual a característica fundamental de um bom jornalista?
Sávio Hackradt – O equilíbrio. O homem não tem equilíbrio. O homem só vê um lado. Aquele que mais lhe agrada. O bom jornalista luta pelo equilíbrio, mesmo sabendo que não vai alcançá-lo.
Jornalista potiguar com cinquenta anos de profissão, e uma carreira das mais consagradas, Antônio Melo trabalhou na Tribuna do Norte, Diário de Natal e muitos anos na imprensa fora do Rio Grande do Norte, como, por exemplo, em Veja, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, O Globo e Estado de S. Paulo, entre outros.
Testemunhou, como repórter, as torturas da ditadura militar, dentre outros fatos marcantes da nossa história recente, ao longo de suas várias décadas como jornalista, além de ter se destacado, também, na seara do marketing político, comandando várias campanhas políticas pelo Brasil, inclusive algumas fora do país, e assessoria dos governos dos ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.
Antônio Melo lançou, em 2018, o seu primeiro romance, A Vingança (Natal, Z Editora). Concebido, inicialmente, como uma coletânea de contos, o livro terminou sendo um romance, no decorrer da narrativa, dada a força expressiva da personagem central – Dinha – “uma garota que nunca existiu, mas que vive de verdade em todos os sertões do Nordeste brasileiro”. Dinha conduz a trama romanesca, constituindo-se em notável perfil de mulher, com destaque, de modo especial, na ficção potiguar. Segundo o prefaciador, jornalista Chico Mendonça: “A Vingança não é apenas uma história de política, paixão e pistolagem no sertão nordestino – e se somente fosse, já teria cumprido o seu papel com louvor –, mas uma instigante fonte de informação sobre a cultura, as ligações e convivência de políticos e pistoleiros no Nordeste”.
A obra musical do norte-americano JJ Cale passou ao largo no Brasil e hoje ainda é aqui desconhecida. A emblemática e crítica “Cocaine”,catapultada, pelo amigo Éric Clapton, foi sucesso mundial, mas ele não.
Seus discos jamais foram lançados em território brasileiro.
Vindo do meio oeste americano, natural de Tulsa, OKlahoma, John Cale se tornou um ícone junto aos pares de sua geração ao mesclar Rock, Country, Blues e Rockabilly num estilo soft ao qual batizou de Tulsa Rock.
Chamou atenção da crítica e do próprio Clapton com o disco “Naturally” (1971) em que apresenta belas canções como “After Midnight”, “Dont go to Strangers”, “Call me the Breeze” e “Crazy Mama”.
De estilo excêntrico e jeitão cool caipira, recusou convites de empresários para gerenciar a carreira e aparições em programas de TV nas quais tivesse que se dublar apoiado em playbacks.
Conduzia a banda em uma velha pick-up, carregando músicos e instrumentos na carroçaria. Ele próprio era o motorista.
Por muitos anos foi subestimado como guitarrista, mas uma audição apurada revela um instrumentista intuitivo e bastante melódico. A voz ficou marcada por interpretações sussurradas em letras que tratavam do universo rural e do amor.
Os últimos anos lhe renderam certo reconhecimento e maior popularidade, graças principalmente ao álbum “Road To Escondido” (2006), em parceria com Éric Clapton.
Cale morreu em 2013, vítima de um infarto fulminante. Emocionados os amigos músicos lhe renderam o belo tributo “Call me the Breeze – An Appreciation of JJ Cale”, disco que traz participações de Mark Knopler, John Mayer, Tom Patty, entre outros conduzidos pelo idealizador Clapton.
Escute o som de Tulsa!
Desde que a fotografia passou a fazer parte de nossas vidas, uma questão é discutida com mais afinco em determinados períodos: o papel e a intervenção do fotógrafo diante do que é retratado.
Roland Barthes chegou a dizer que a fotografia era a verdade, um registro inquestionável da realidade. No entanto, é claro que essa verdade ou realidade assumem um papel questionável diante da fotografia, assim como da vida.
O fotógrafo interfere na realidade que registra: aquilo que escolhe como objeto de sua fotografia, os ângulos e enquadramentos pelos quais opta, as cores ou a ausência delas, o tipo de lente, de tratamento, a acentuação ou esmaecimento de determinados aspectos já são por si só uma interferência.
É preciso também pensar a respeito do tempo da fotografia, afinal toda foto é um registro do passado que se achega ao presente sempre que é vista. O antes e o depois, o contexto e a situação de cada fotografia, tornam-se invenções de cada espectador ao ver uma foto revelada diante de si.
Questões como essas, trazidas de maneira muito simples e efêmera aqui, são fundamentais em uma sociedade em que todos – ou quase todos, para não excluir ainda mais os que estão à margem – fotografam, em que somos todos turistas de nossas realidades sempre a registrar com algum espanto os fragmentos de nossas vidas.
E se todos fotografam, que papel assume o fotógrafo diante do mundo? Susan Sontag diz que “o fotógrafo procura sempre colonizar novas experiências ou encontrar novos modos de olhar para temas familiares – para lutar contra o tédio”. Por isso, parece-me cada vez mais clara a necessidade de existirem fotógrafos em nossos tempos, em que tantas imagens são produzidas a cada segundo, repetitivas, emuladas, padronizadas pelos instagrans e thumblers de nossa contemporaneidade.
Ao fotógrafo cabe ver a realidade de maneira singular, não apenas vestida do voyeurismo comum de nosso tempo de imagens.
Assentamento do MST Retoma Trairi
Galinhos, Rio Grande do Norte
Pontão do Lago Sul, Brasília
Águas Claras, próximo a Brasília
Rua Cega Matilde, Santa Cruz, Rio Grande do Norte
Cidade Alta, Natal
Aeroporto de São Gonçalo do Amarante, Rio Grande do Norte
Shopping Curitiba, Curitiba
… sabe como é… daqueles trancos no coração que faz você se sentir flutuando nas nuvens que nem gaivotas enlouquecidas e aquecidas por um calor que queima mas não queima…
… que te faz esvoar movido a Ribbon In The Sky, com a voz de romance do Stevie Wonder…
… e aqueles olhos-te-olhando-te-chamando… ainda fazendo deslizar luas em teus olhos… os abismos da paixão ali te chamando num beijo que começa nos olhos se agarrando… como der e vier… e vai se esmagando entre lábioslínguasdentesaliva …
… vaginações ao luar na beira mar…
… nesses entreveros, você é jogado s’escanchando entre luas estrelas tempos carnaduras… e você começa a ouvir lá do fundo do coração ecos da música expansa de Stevie Wonder que te alcança, te estica… e dá um nó de marujo nos fios do teu coração com os fios do coração d’Ela…
… daí, como marujo-velho de multilhões de milhas navegadas por mares bares e cabarés você sobe no mastro da gávea, olhaollhandoolhudo pra Ela, e solta o berro encaroçado d’emoções – terra à vista!..
… então nesse então, é a hora do arrego d’alma e do coração, daí você lança a âncora no porto seguro d’Ela… nesses enganchos e amarrações você sai jurando todas as juras… até pra Deus… enquanto dança agarradinho lá no último bar das estrelas-perdidas…
… e nessas todas sonhaduras e lembruras nossas de cada dia, Ela s’achega com toda charmegância te chamando pra ir ao mercado… e perguntando rápido se tu já tomou os remédios de pressão, dos rins, e d’arritmia…
Tendo estreado em 2009, com o livro “Dos Bondes ao Hippie Drive-in”, os autores – nossos irmãos Goncourt – enveredam mais uma vez “em busca do tempo perdido”. Aliás, o verbo enveredar não está aqui bem empregado; “Natal do Século XX” abre caminhos. Misto de memórias e documentário, com muitos dados e fotos, repassa, também, um tanto da crônica sentimental da cidade.
Na prosa ágil e leve, aparentada com a objetividade jornalística, a narrativa, do meio para o fim, torna-se, plenamente, memorialística. Episódios, curiosidades, fatos pitorescos deixam entrever um certo ar de almanaque. Alguns erros de revisão e omissões não chegam a comprometer a obra.
“Natal do Século XX” não pode faltar na estante de todo bom natalense.
A magia dos sinos tem inspirado muitos poetas, pelo mundo afora; é temática fascinante. Clauder Arcanjo, poeta consumado, soube explorar essa mina, tirando ouro de um veio, aparentemente, esgotado. Vejam os versos a seguir:
“Nem se sabe de onde vieram
Dependurados na manhã fria
Eles espalhavam seus dobres
Por cima dos telhados altos, e
A província ressumava a altar.”
Repassada de lirismo, a poesia de Clauder Arcanjo, não só neste fragmento, mas em todo o seu livro, flui, simples e clara, não precisa de chave para se abrir e decifrar.
A edição, bilíngue, valorizada pela tradução para o espanhol, do escritor Alfredo Pérez Alencart, conta com desenhos de João Helder e Miguel Elias, e numerosas fotografias, de Jose Amador Martin, Marcão Melo e Ricardo Chrisóstomo, verdadeiras obras de arte, à altura do texto.
Doze histórias compõem esta coletânea, com grande variedade temática e formal. O conto inicial, “O Amigo da Onça”, por exemplo, é uma peça de humor sobre fatos cotidianos, beirando a anedota. No conto que dá nome ao livro, narrativa mais densa e impactante, evidencia-se a versatilidade do autor, que também incursiona, com desenvoltura, pelos domínios do maravilhoso e do fantástico, em outros contos.
A prosa fluente, despida de ornamentos, prende o leitor, envolve-o prazerosamente em sua malha. Um certo viés kitsch, presente, inclusive, nos títulos de alguns contos (“Não Maltrate o Coração de uma Mãe”, “Mar de Rosas”) confere à obra especial característica.
No fim de vida, já cego, o autor ditava aos netos artigos diversos, quase sempre versando sobre temática regional. Dentre estes destacam-se os da série “Velhos Costumes do Meu Sertão”, publicados originalmente em jornal (1954), depois enfeixados em livro.
Trata-se de um repositório imenso de informações acerca do sertão antigo, a vida nas fazendas, de modo especial.
Região semi-árida, que ficou como que parada no tempo, até ao início do século XX, esse sertão, meio medieval, revive nos artigos de quem nele viveu, intensamente.
Político de primeira plana, Presidente (Governador) do Estado, mas, também, homem de letras, espírito cosmopolita, Juvenal Lamartine jamais distanciou-se do seu Seridó, queria bem a ele. A prova está neste livro admirável.
Leia também: 10 anos sem Oswaldo Lamartine. Sua última entrevista
Obra-prima do grande escritor italiano, narra a comovente história de uma família de aldeões sicilianos pobres e infelizes. O Realismo em toda a sua crueza.
Publicado em 1881, o livro não envelheceu e até apresenta uns traços de modernidade.
Nota curiosa: a inserção de provérbios em grande número no decorrer da narrativa.
Só o Amor não sustenta nenhuma relação. Falo do Amor banalizado. Do amor como pura burocraciafetiva, em sua querência de trivialidade.
Esse amor não basta. É preciso que ele, o Amor, seja vibração carnespiritual de presença-ausência. De fusão de erros e acertos. De generosa cumplicidade e perdão incondicional. Nesse aqui-agora. Não só no amanhã da eternidade. Mas também no hoje da eternidade.
Amantes precisam ser quadrilheiros. Amantes precisam sempre dançar o último bolero na noitesuave. Amantes precisam se lamber com frequência em sua impura nudez… e tramar sonhos juntos.
Amantes precisam saber fazer dos ressentimentos a faísca das madrugadas gemidas. Amantes precisam se casar, mensalmente, até nas filas dos bancos. Ou tomando um chopp duplo.
A tradição religiosa e o senso comum catequizado, explicam o Amor como algo único, eterno, universal. Ora, nos enroscos da VidaViva esse Amor ideal é figurinha rara.
Nas oficinas da VidaViva não há padrão único de qualidade de amor. Daí que, universal, eterno, único – só nos rituais casamenteiros. Nem mesmo matemático, nem lógico, nem científico. Mas a gente tenta fazer de um momento a eternidade…
Mas antes de mais nada, o amor não se explica. E “não tem solução”, como cantava o velho Caymmi.
Em seu enroscar de egos e superegos o amor é pura impureza humana, plena de luz, intensidade, fagulhamento.
Amor é transbordamento mútuo.
Cada um de nós ama diversamente, diferentes amores, com diversas sintonias e intensidades, em tempos diferentes. Ou mesmo na complicação de um mesmo tempo. E aí sai faísca pra todo o lado.
Há o amor da mãe, do pai, de irmãos, de amantes, de amigos (a amizade). Ama-se através de tempos, espaços e de outros carnavais. O amor como navio carregado de saudades precisa navegar águas fundas, cruzar tempestades e calmarias, entrar em muitos portos de pedra e sonhos… até chegar rangendo ao seu porto seguro.
O Amor pode ser único sim. Único como presença. No aqui-agora. Não como algo eterno-sempre-o-mesmo. Não como regra moral ou única metade.
A arte de amar, por Andre Kummer
Com quantas metades se faz uma amor? Nem Zeus, sabe. Em seu urgir, rugir e ressurgir, o Amor humano é carnespiritual e aleatório. O amor vareia e varia.
Nos passos silenciosos do inesperado, o amor não pede licença pra chegar. Ele vem e pronto. Cada vez é um cada vez diferente.
Uma coisa é verdade: se não é amor de família ou amor-amizade, se é amorpaixão daqueles que sai a faísca-das-encarnações: ai, então, como poetava o velho-Vinicius “é preciso ter peito de remador” pra segurar o turbilhão que vem dos olhares-se-deslizando naquela luz-de-gozo-eterno se estilhaçando no coração.
Todo amor quer eternidade, profunda eternidade!
É o delírio do eterno inalcançável. Jogo de (des)encontros inesperados na VidaViva. Tensão de emoções se aloucando no (in)finito de cada um.
Quando o olho gruda no outro e faz deslizar luas, quando o olhar é sorriso de gozolhar, quando a gente “pesca”, num repente, aquele brilho que só teu olho tem a senha… então velho, sai da frente, que é o Zignal de Eros!… é o tsunami do amor que-tá-chegando. Daí é um ziriguidum daporra, véi!
Não! Sai da frente não, poha!… mergulhe e viva!
Amar é Vidar! E vidar é mergulhar, plenamente-com-o-outro, na VidaViva. Afundar feliz nos abismos dos sonhos, das ilusões, das ternurinhas. E nos absurdos e encantos das paixões perigosas. Como poeticanta Djavan que “amar é perigoso demais”…
Antes de mais nada, devo dizer, que não tenho a pretensão de efetuar estudo crítico e/ou biográfico sobre o grande escritor baiano, mas, apenas, quero, modestamente, revelar impressões que a leitura dos seus livros me propiciou ao longo de muitos anos.
Para começo de conversa, uma constatação óbvia, mas indispensável: a obra literária de Jorge Amado divide-se em duas fases distintas; a primeira estende-se do romance de estreia – “O País do Carnaval” (1931) – até o romance “Gabriela, Cravo e Canela” (1958), e caracteriza-se pela inserção no Regionalismo Nordestino de 30, sob influxo do Realismo Socialista. Seguem-se a esta fase duas novelas, enfeixadas num só volume – “Os Velhos Marinheiros” -, uma das quais – “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água” – é considerada, unanimemente, a obra-prima do autor.
“Gabriela, Cravo e Canela” revive a saga do cacau no sul da Bahia, porém com um viés picaresco, e em nova linguagem, que prenuncia a segunda fase.
Vale salientar o caráter político-ideológico presente, até meados da década de 1950, na maior parte dos escritos de Jorge Amado. Ele pertencia ao Partido Comunista Brasileiro, sido eleito Deputado Federal por esta agremiação, em 1945.
Depois de “Gabriela, Cravo e Canela”, o romancista, antes tão preocupado com a problemática social, vai se transformando em um bem humorado e sensual cronista de sua gente. Se, por um lado, está livre de compromissos político-ideológicos, por outro lado passa a comprometer-se, cada vez mais, com o seu público ledor, fazendo-lhe concessões, em prejuízo do alto padrão qualitativo, que a boa literatura requer. Vira autor de best-sellers.
Nesta segunda fase, grandes figuras de mulher tornam-se protagonistas principais de caudalosas narrativas, cuja ação transcorre, quase sempre, na amada terra da Bahia.
Confesso que não consegui gostar de nenhum dos romances jorgeanos posteriores a “Gabriela, Cravo e Canela”. Tremenda frustração para este leitor voraz, que, ainda jovem, se encantara com a leitura de obras admiráveis, como, por exemplo, “Terras do Sem Fim” – a melhor expressão da saga do cacau -, e “Mar Morto”, que é quase um longo poema em prosa.
Não passei das primeiras páginas de “Dona Flor e seus Dois Maridos”, talvez o mais famoso romance da segunda fase. E “Tenda dos Milagres”, outro romance desta fase, embora legível, pareceu-me, inclusive do ponto de vista temático, algo forçado, um tanto chato, enfadonho.
“Tocaia Grande – A Face Obscura” seria um bom romance se não fosse uma versão reciclada da saga do cacau. Neste livro, Jorge Amado repete-se a si mesmo. “Um romance muito ruim” – foi como o qualificou, enfaticamente, o crítico Jaime Hipólito Dantas, em seu livro “De Autores e Livros” (Mossoró: Editora Queima-Bucha, 1992). Já “O Sumiço da Santa”, penúltimo romance de J.A. afigurou-se-me pouco mais que um pretexto para homenagear os amigos baianos e tirar brincadeiras com eles.
Pequeno romance, que julgo das obras mais frustrantes, nesta segunda fase – “A Descoberta da América pelos Turcos” – merece figurar ao lado de outro fiasco, mas, este, da primeira fase -, a trilogia “Os Subterrâneos da Liberdade”.
Da safra outonal salva-se, ao meu ver, a novela “Farda Fardão Camisola de Dormir”, pelo que contém de sátira e ironia, mas não a incluo entre as grandes obras amadas…
Resta falar sobre “Tereza Batista Cansada de Guerra”. Foi o romance do mestre baiano, que eu li, por volta de 1976, com grande expectativa.
No meu diário íntimo, anotei o seguinte:
“Aproveito a tarde de domingo para começar a ler o novo romance de Jorge Amado – ‘Tereza Batista Cansada de Guerra’.
Claro que Jorge Amando não é mais aquele… Depois de ‘Os Velhos Marinheiros’ ele parece ter entrado em decadência, esgotando o filão picaresco e as possibilidades ficcionais do seu mundo urbano /baiano /popular, tratado com maestria em ‘A Morte e a Morte de Quincas Berro d’ Água’.
Não gostei de ‘Dona Flor’, tampouco de ‘Tenda dos Milagres’, daí uma certa prevenção para com este ‘Tereza Batista’, romance posterior àqueles dois outros. Mas, de qualquer maneira, vou de leitura a dentro. E torcendo para não me decepcionar”.
Após a leitura, infelizmente, o meu sentimento era de frustração.
Tempos depois, no mesmo diário, registrei: “Jorge Amado morreu. Cansado de guerra.”
Faço-lhe estas e outras restrições, mas, separando o joio do trigo, admiro, e muito, a sua grande obra de ficção.
Enganam-se os críticos que o subestimam, atentos, somente, aos seus livros da segunda fase.
Jorge Amado muito contribuiu para a renovação da ficção brasileira, na década de 1930 e começos da década seguinte, como integrante do Regionalismo Nordestino, e, depois, num período de transição, criou duas obras mestras – “Gabriela, Cravo e Canela” e “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’ Água” -, as quais bastariam para consagrá-lo.
Em 1972, quando Francis Ford Coppola lançou O Poderoso Chefão, o público foi convidado a sentar à mesa de Don Vito Corleone (Marlon Brando), um dos chefes da máfia mais respeitados criados pela literatura de Mario Puzo. Ao mesmo tempo em que aquele filme retrata um personagem tão ameaçador, faz também de suas ameaças algo emocionalmente convincente, admirável. A introdução, que contrasta Don Corleone em seu escritório discutindo os interesses de Bonasera (Salvatore Corsitto) com o casamento de sua filha, revela o equilíbrio do poder e do afeto, da importância da família, e como não é difícil cultuar um criminoso quando passa a se considerar tudo dentro dos seus termos.
Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!
O Irlandês (disponível na Netflix), por sua vez, não está interessado na pompa do crime nem muito menos em provocar alguma espécie de reverência do público para com seus personagens – especialmente por Frank Sheeran (Robert De Niro). A direção de Martin Scorsese (de O Lobo de Wall Street, 2013), junto ao roteiro adaptado de Steven Zaillian (de A Lista de Schindler), prefere o lado mórbido de tudo, a parcela mais humana e menos permissiva dos atos. Nesse sentido, o plano-sequência inicial, que pacientemente sinaliza onde Sheeran está – em um abrigo para idosos –, não é somente eficiente para demonstrar a localização daquele homem, mas para contrastar o envolvimento nada solitário de cada hóspede de tal asilo com a solidão do protagonista. Esse contraste é reforçado pelo resgate da canção In the Still of the Night (I’ll Remember) – em tradução livre: Na Calada da Noite (Eu Me Lembrarei) –, de Fred Parris, que, na voz dos Five Santins, canta:
“Na calada da noite,
eu te segurei,
segurei apertado
porque eu te amo
Amo-te tanto…
Prometo que eu nunca
vou deixar você ir
na calada da noite.”
A solidão de Frank Sheeran (Robert De Niro). (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
Ao passo que uma música que fala de amor de maneira inocente (infelizmente não traduzida pela legendagem) aqui é dura o suficiente para já ceder algumas camadas à personalidade de Sheeran, essa mesma letra provoca uma rima que pode ser de uma eficiência dolorida quando, mais à frente, a personagem de De Niro começa a sair na tal calada da noite e Peggy (sua filha – Lucy Gallina e Anna Paquin) apenas pergunta sobre o seu destino (“Ao trabalho.”, diz ele), sem forças para impedi-lo de sair e muito menos para dizer que o ama.
Scorsese, por sinal, está muito mais interessado em tornar seus criminosos interessantes sem que, para isso, seja necessário fomentar uma aura de deslumbramento. Isso faz com que O Irlandês não seja um filme que evoca o poder e as consequências diretas dele, mas uma ode ao tempo e, sobretudo, um tratado sobre lealdade, amizade e escolhas.
Não que tudo isso seja contornado por linhas retas, afinal há quem diga que a vida é escrita certa em linhas tortas mesmo. Por esse lado, relembrar dos trabalhos cineteológicos de Scorsese é quase como acrescentar interpretações aqui: se A Última Tentação de Cristo (1988) expõe um Jesus frágil e perturbado que reflete como seria sua vida se tivesse a levado de forma comum e Silêncio (2016) expõe a intolerância humana e justamente o silêncio de Deus – que talvez doa no filho (e nos filhos) muito mais do que pregos fincados no corpo e uma coroa de espinhos – O Irlandês pode ser visto como a comunhão dessas experiências.
Isso porque Sheeran – frágil e perturbado – acaba por se perceber sozinho, abandonado, sem a única voz que gostaria de ouvir (a de Peggy), até mesmo quando vai até ela. A resposta dela, de certo ponto ao final da vida é, então, o silêncio. Ainda assim, talvez fique claro que não é o silêncio do desprezo, mas é o de distanciamento por discordar inteiramente dos métodos do seu criador, como alguém que percebe o próprio pai como um deus, mas aquele do Velho Testamento, que prova o amor através da morte e que precisaria ceder seu filho ao mundo para aprender a dar a outra face.
Peggy é esse filho. A cena em que ela pergunta ao pai “Por quê?” (em uma das poucas falas da personagem) é, inclusive, das mais intensas de todo o filme. Paquin dá à pergunta de sua personagem uma força tão destruidora que, naquele momento, Sheeran vai para o inferno. Ele, que não consegue olhar para a filha, fomenta a fragilidade do seu poder. Ela, que não desvia os olhos dele, atesta o poder da dúvida e a força de não concordar com as atitudes do próprio pai, por mais que estas tenham sido a forma que ele, embrutecido, encontrou para dar proteção e demonstrar amor.
“Por quê?” (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
Scorsese, obviamente, tem papel fundamental nessas questões: enquanto trata Sheeran e Russell Bufalino (Joe Pesci) com planos e contraplanos comuns e, muitas vezes, encaixando-os nos mesmos frames – algo que também faz com Sheeran e Jimmy Hoffa (Al Pacino) –, o tratamento que dá às cenas do protagonista com sua filha separa-os esteticamente de um jeito quase violento. Pela direção de fotografia de Rodrigo Prieto (do citado Silêncio), ora ele à sombra e ela à luz; ora ele de perfil e ela de frontal; ora ele em grande plongée e ela em close… a questão é que o diretor jamais idealiza pessoas tão próximas, mas com tanto entre elas, em união visual. Existe muito mais do que alguns centímetros ou poucos metros entre elas e a escolhas de Scorsese junto à luz de Prieto atestam esse distanciamento.
A visão de Scorsese, por sinal, faz de O Irlandês um contraponto exatamente para O Poderoso Chefão (com a música de Robbie Robertson – de Jimmy Hollywood – evocando a de Nino Rota de vez em quando). Em oposição ao filme de Coppola, o que se vê aqui não é a máfia como algo a ser temido-porém-respeitado, a prosperidade da família (Vito – De Niro no segundo filme) e a decadência da moral (Michael – Al Pacino) exercidas por homens; o que se apresenta é a máfia pela máfia aos olhos do público. No final das contas, Scorsese tem controle total do seu trabalho a ponto de se permitir deixá-lo inteiramente para as interpretações e para o ajuizamento de cada espectador.
Essa sensibilidade fica clara na última cena: construindo imageticamente algo semelhante ao final do filme de 1972 – quando Michael, enfim, assume a função de chefe de família e Coppola exclui Kay (Diane Keaton) ao fechar a porta entreaberta que a permitia ver os homens beijando a mão do então esposo –, Scorsese deixa a sua porta entreaberta a pedido do seu personagem: “Padre? Pode me fazer um favor? Não feche a porta completamente. Não gosto disso. Deixe-a entreaberta.”
Final de O Poderoso Chefão. (Imagem: Paramount Pictures)
Final de O Irlandês. (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
A partir daí, as diferenças ficam claras: a visão de Scorsese é muito mais um julgamento, é mais dura (sem de modo algum invalidar o trabalho de Coppola). Sheeran – com o natal se aproximando, sozinho e sem ter para onde ir e muito menos com quem ficar – é entregue ao espectador, que o vê por alguns segundos pelo vão da porta entreaberta até que o corte seco para a tela escura traz de volta a mesma música do início.
“Então, antes da luz,
segure-me novamente,
com toda a sua força,
na calada da noite.”
Mas não tem ninguém para segurá-lo.
Resta imaginar se aquele homem se sente culpado pelas suas escolhas ou apenas quer conversar conosco sobre a lealdade que decidiu levar para o túmulo. Ou sobre o quanto o tempo é implacável… o fim, que sempre vence.
O Irlandês é uma obra-prima.
Post publicado originalmente no Canaltech
Poeta, escritor, bibliófilo e editor, o cearense, radicado em Mossoró, Clauder Arcanjo, desembarca em Natal, dia 3 de dezembro, terça feira, para lançar, a partir das 17h30, na Academia Norte-rio-grandense de Letras, instituição da qual ele é membro, seu mais novo livro, “Sinos (Campanas)”, Edição da Sarau das Letras em parceria com a Trilce Ediciones (Salamanca -Espanha).
Clauder Arcanjo é natural de Santana do Acaraú (CE) e reside em Mossoró (RN), desde 1986. Graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ficcionista, cronista, poeta e ensaísta. Durante anos foi professor universitário e é um dos idealizadores-produtores do programa Pedagogia da Gestão, na Tv a Cabo Mossoró (TCM), programa voltado ao incentivo às boas ações de gestão, educação e cultura na região Oeste do Estado. Clauder Arcanjo fundou juntamente com o escritor David de Medeiros Leite, a Editora Sarau das Letras, que já publicou mais de 200 livros.
Por alguns anos, Clauder foi cronista semanal do jornal Gazeta do Oeste (Mossoró), e usou durante muito tempo o heterônimo Carlos Meireles (homenagem a Carlos Drummond e Cecília Meireles) para resenhar textos literários, colaborando em sites, revistas e jornais de várias partes do país. Atualmente coordena, no Jornal de Fato, o Espaço Martins de Vasconcelos e escreve para a versão online do jornal O Mossoroense e a revista cultural Kukukaya, dentre outros veículos literários.
Publicou os seguintes livros: “Licânia” (contos), “Lápis nas Veias” (minicontos), “Novenário de Espinhos” (poemas), “Uma Garça no Asfalto” (crônicas), “Pílulas para o Silêncio” (aforismos, edição português-espanhol), “Cambono” (romance), “Separação” (contos), “Mulheres Fantásticas” (contos). E organizou em parceria com David de Medeiros Leite, “Sarau das Letras – Entrevistas com Escritores”; e com Ângela Rodrigues Gurgel e Raimundo Antônio, a coletânea “Café & Poesia”: volume I e Vol. II, em parceria com Kaliane Amorim e David de Medeiros Leite.
Clauder Arcanjo é membro da Academia de Letras do Brasil (ALB), Academia Mossoroense de Letras (AMOL), da Sociedade Brasileira para Estudos do Cangaço (SBEC), do Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP), e de outras instituições culturais e literárias de todo o país.
Em 2017, o escritor recebeu o título de cidadão norte-rio-grandense, que lhe foi concedido pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte.
O escritor ainda tem no prelo “Carlos Meireles: Oficio de Bibliófilo”, ensaios críticos e resenhas de sua autoria, dispersos em revistas e jornais.
Além do lançamento do seu novo livro, Clauder Arcanjo participará de uma série de atividades culturais, na Grande Natal, dentro do seu oficio de militante e ativista cultural.
A seguir, alguns trechos da entrevista, que nos concedeu, para o livro “Impressões Digitais – Escritores Potiguares Contemporâneos” v. 1, primeiro trabalho de uma série de entrevistas que fizemos com mais de cem escritores potiguares.
No começo, tão só as leituras paradidáticas. Algumas, enfadonhas e fora de época, e de qualquer propósito. Outras, nem tanto. No caminho, graças a Deus, a mão orientadora do mestre Galvino. Ele lia para nós, seus alunos, com prazer e paixão. Nas férias, catando novidades na biblioteca do grupo escolar, a descoberta de Jorge Amado, José Lins do Rego, e tantos outros.
Sou engenheiro de petróleo, ao concluir o curso de formação, em Salvador, Bahia, optei por trabalhar em chão potiguar. No início, no vale do Açu; pouco depois, em Mossoró, onde resido até hoje.
Quando aqui cheguei, lá pelos idos de 1986, era tão somente um aprendiz de leitor. Confesso que, da literatura do Rio Grande do Norte, quase nada sabia. Foi pelos jornais, no entanto, que encontrei (e me alumbrei com) a prosa de Dorian Jorge Freire. Com o passar dos anos, curioso, meti-me pelos desvãos da poesia e da crônica potiguares. Não parei mais.
Do engenheiro, no escritor, ficou, acho eu, a disciplina e algum sentido de proporção, não mais. Do poeta e ficcionista, no engenheiro e gerente, um melhor entendimento dos dramas e tragédias humanas. O engenheiro ganhou mais, concorda?
A Sarau é coisa de quem adora livros. Melhor, de malucos por livros. David Leite e eu, cansado de vermos os novos autores publicando edições descuidadas, resolvemos ousar, criando um novo selo.
Licânia reuniu não os meus primeiros contos, mas, sim, aqueles que eu julgava mais maduros, e melhores concebidos. Li-o, reli-o, treli-o, rabisquei-o… quase à exaustão. Alguns amigos, em especial os mestres Manoel Onofre Júnior, Sânzio de Azevedo, David Leite, Marcos Ferreira, José Nicodemos, com suas avaliações e sugestões, fizeram-no melhor. Não tive, até hoje, coragem de relê-lo, na íntegra, após ter sido publicado; não por rejeitá-lo, nunca, mas com receio de querer revisá-lo, remendá-lo… Enfim, recomeçá-lo, reescrevê-lo. Tudo de novo.
A concepção de cada conto foi uma catarse, um (re)encontro com os meus espectros, com os guardados da minha província. A ficção é algo que nos consome e nos encanta. Conceber um conto é mister sobremaneira difícil, quem lê um Machado de Assis, um Tchekhov, um Moreira Campos, um Borges, um Miguel Torga… bem sabe a que estou me referindo.
Tempo, dedicação, seriedade e muito, muitíssimo respeito ao leitor. Tenho ojeriza aos que concebem sem humildade, sem submeter os seus escritos à quarentena da gaveta. Explico: guarde seus textos numa gaveta bem funda, deixe-os escondidos dos seus olhos por um longo período de tempo; depois, com o olhar crítico, revisite-os: limando-os, polindo-os, e, em especial, avaliando se resistiram ao julgamento do tempo. Uma espécie de vacina de gaveta. Depois de publicado, babau, o livro já não é mais seu, amigo. Parafraseando o poeta Mario Quintana, um erro em livro é um erro eterno.
Minha preferência? Não saberia responder. Às vezes, quero me expressar em contos maiores, em outros casos, motivo-me para criar algo mais minimalista. Apenas uma exigência: a busca utópica pelo sublime e belo. Vã, mas gostosíssima, ilusão. Lápis nas veias traz um ensaio fotográfico de Pacífico Medeiros, dentro de uma ousada diagramação do Túlio Ratto, que salva o livro.
Escrevo e leio todo santo dia. Quanto mais leio, mais me critico e me motivo. Não me vejo sem a literatura. Cato assunto e mote em todo canto e lugar, passo os dias com as antenas ligadas: uma palavra, uma situação, uma lembrança… tudo vira motivo para criar. Nem tudo presta, mas confio mais na transpiração do que na inspiração.
O bibliófilo nasceu primeiro. Depois, numa gravidez tubária, o escrevinhador. Como os livros nascem dos livros, tenho fé que, um dia, me farei melhor escritor (risos…). Minha biblioteca é o meu chamego maior: nela, abrigo doze mil paixões. Haja coração!
O Pedagogia da Gestão é um programa semanal que realizamos na TV Cabo Mossoró (TCM), e que se assenta no tripé: gestão, educação e cultura. Decidimos criar o Pedagogia para dar vez e voz aos novos talentos.
Ando, cada vez mais, relendo mais do que lendo. Nos últimos meses, vários livros de Machado de Assis, de Graciliano Ramos e de Lima Barreto. Da literatura local: o contista Newton Navarro, o poeta Paulo de Tarso Correia de Melo, o memorialista Manoel Onofre Júnior, os cronistas David Leite, Francisco Rodrigues da Costa (a quem nutro um carinho todo especial) e François Silvestre. Este, sem pestanejar, um artífice da palavra.
São os que me espantam, os que me alumbram, os que me fazem sentir menor, como escritor. São todos aqueles que, quando os leio, cato sempre pepitas novas na mina das suas criações. Alguns até já os mencionei: Shakespeare, Cervantes, Machado de Assis, Miguel Torga, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Italo Calvino, Tchekhov, Dorian Jorge Freire, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade… Ficarei por aqui. Toda lista é falha, pois sempre incompleta.
Escrever e ler. Ler e escrever. Ler (e reler) cada vez mais os clássicos, e escrever com fúria, devoção e loucura.
Não posso fugir do lugar comum: escrever é uma forma de manter-me vivo.
Ilustração: Miguel Elias
Acordou. Levantou. Tomou banho. Cantou no chuveiro. Vestiu roupa bonita. Olhou no espelho a meia-idade chegando. Foi alegre encontrar a amante-de-fé. Na esquina teve enfarte fulminante e “virou jaz” (Aqui jaz…).
Morreu de amor? De falta de revisão? Ou morreu dos enroscos do prazo de validade do implacável Tempo?…
…. ♫♪ “Tempo, tempo, tempo, tempo… Entro num acordo contigo…
Tempo tempo tempo tempo… Compositor de destinos” ♫♫…
… poeticantando na sua Oração ao Tempo, VelosoCaetano em sua baianês pede ao Deus do Tempo bênçãos e axés… e num arrego de fé pede, sobretudo, um acordo.
Na cult-baianidade, a entidade do Tempo é Irôko, orixá do Tempo-Espaço, Senhor do Silêncio e dos Mistérios-do-fim-sem-fim. Mistérios que são trampos abissais pojados de solidão, exclusivos dos deuses imortais e seus caboclos escatológicos (Vida, Destino, Morte…).
Abro o parêntesis dos Mistérios. Para a gregalhada antiga, segundo o aedo Hesíodo, do séc. VIII aC, o deus Tempo é Khronus, força mítica, incorpóreo, infinito. É um dos doze Titãs, filhos incestuosos da deusa Gea (Terra) e seu filho Ouranos (Ceú). Gea, é a matrix primeiríssima da Vida, entidade divina, autocriada do Nada ou Cáos. Virgem, e sem umbigo, ela gesta por partenogênese, e quem sabe por masturbação hipersolitária, os primeiros filhos; com estes, por incesto, gera todas as criaturas. Nas 3 primeiras levas de incestos, nascem Titãs, Cíclopes, Hecatônquios (cem mãos, cinquenta cabeças). Deuses monstros, gigantescos, bipolares, porraloucas. Khronus, por exemplo, em surto corta os testículos do Pai Ouranos, com sua foice. Nada, Solidão, Autocriação, Virgindade, Incestos, Loucuras, Nonsense – essas são as marcas dos Mistérios Mitológicos da VidaViva. Fecho o parêntesis dos Mistérios.
Mas, seja Khronus ou Irôko, que acordo musicosonha CaetanoVeloso com Mr.Tempo? Talvez uma prorrogaçãozinha do prazo de validade? Talvez sonhos do eterno-fim-sem-fim? Quem sabe o que rola nos cotovelos e sonhos sensíveis, movidos a dendê, desse músicopoetabaiano-porretinha? Sei lá, mizifio!
Seja o que for, meus campanhas de copo-e-fé, Mister Irôko esse jovemvelho Orixá do Tempo, sem idade, nem documento, nem emeiu, nem zap-zap, nem facebook ou site, nunca nascido, nunca morrido, não perdoa. Não faz acordo. Nem ajuste fiscal. Nem os seus caboclos.
Em seu silêncio, espalhamento e solidão, Irôko nos dá, dia-a-dia, um pé na bunda rumo ao desmanche na eternidade. Como desmanche de carros velhos. E tamusconversados!
Afinal, o Homem é um ser-que-vai-indo, vai-indo, vai-indo… e acaba um “ser-ido” de vez, um “ser idoso”… no passar do Tempo. Vira suco de energia, pó de sonhos-perdidos.
Ópaíó, meu rei, ó!: envelhecer, velhar, velhuscar, melhor-idade, idade do lobo, etc e tal: todo esse nhem nhem nhem ou narrativa sobre a velhice compulsória e suas ferrugens, pra Khronus ou Irôko tanto faz. Apois então, não tem acordo mesmo. Não rola.
O Tempo nem mesmo respeita, o doce mantra poético dum velho-amigo meu, MaestroPrentice, professor de música, já partido pras bandas das estrelas-perdidas. Mas antes de partir, em plena solidão de seu sexagenário espírito jovem, declarou firme numa seresta doméstica: “não sou velho, nem idoso, sou um acúmulo-de-juventudes”.
Saravá, Prentice-velho! Porreta isso de envelhar como acúmulos de juventudes.
Mas não adianta, Mister Irôko e sua sinistra legião de caboclos escatológicos estão nem aí. Zombam de nós, míseros mortais. Basta olhar pro espelho nosso de cada dia.
Sacumé chaparia, falo da velhudez diária refletida, ali, na contraface do espelho-espelhomeu. Naquele momento em que sai lá das funduras da carniconsciência de cada um a implacável pergunta bolada de dúvidas: espelho-espelhomeu-estou-mais-velho-eu?
O espelho mágico do Tempo responde, voz cavernosa, um olho fechado outro aberto, sob grossas sobrancelhas: − Mísero mortal, você virou, no passar do Tempo, um desmanche mocoronga de ferrovelhoenferrujado! Virou salmoura de rugas, ruguetas, barriga de chopp, pneus na cintura, estrias, pés-de-galinha, papadas, pelancas, carequices, celulites, boca banguela, dentaduras soltas, verrugas, seios caídos, xanas-murchas e bagostristes!
− Porra, pega leve EspelhoMeu! Acabou comigo! Dá um tempo, pô!
Tonitroante EspelhoMeu resmunga: − Grunf! Grunf! Caluda mísero mortal! Caluda! E chupa essa, catraia-velha! Vosmicê já tá no enrosco do Tempo, já tá um velho chinfrim e ferrado! Perdeu, playboy! Grunf!Grunf!
Daí a gente cai na real. Ééééé, bicho! Vidaviver é jogo de tudo-e-nada. Que acaba num coió de rugas, bengalas e dentaduras.
Velhar, mano-velho, é se diluir numa sopa de pelancas, forever.
É encarar a neura da fila-check-in do voo, sem volta, pras estrelas-perdidas que… “tiritan, azules… a los lejos”, como verseja Neruda… estrelas que nos esperam para seu tristefrio abraço de silênciosolidão e arrêgo final. Epa Babá! Sapralá, meu santo!
Mas olhem, manos e manas da tal melhor idade, se segurem, que “coisa boa é namorar” e “amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”, como canta o genial Flávio José, outro músico porretaço, lá das bandas dos cariris da Paraíba, no seu xote-metafísico-desfilosófico “se avexe não”. Vale googlar a música e curtir, chefia.
Nada está, pois, totalmente perdido, mano. Nem pros velhotinhos. Nem pras velhotudas. Há nos bares, shoppings, mercados e igrejas, uma ruma de velhuscos e velhudas ainda no aprumo da meia-sola que se encaixa na tua meia-sola, meu cumpadi, minha cumadi.
Há sempre velhões solitários, a perigo, com olhar de Bento Carneiro, vampiro-brasileiro do Chico Anísio, língualinguando como um craque, pronto pra jogar a prorrogação.
Há sempre madamas–velhudas, na idade da loba. Ancudas-pelancudas. De pernaças, peitaças, vaginaças, pós-sensuais. De megabundaças, bundi-self-moving, mascando luxúrias. Só para experts, of course. E maturadas no uso-abuso de paixonites e safadagens. Que te chamam aos brios de macho-viagra e ao linguar do gozo-nosso-de-cada-dia. Arré égua!
Há sempre uma pá de velhames mestres nas artes horizontais-transversais, do kama-sutra e do kama-chupa. Todos curtidos nas encanações d’alma-e-corpo. Requentados na dor fininha de desenganos, xifrâncias e cotovelos-inchados. Que ainda encaram uma cuba-libre e dançam o bolerão romântico, escanxando–coisa-na-coisa, nas lentasmadrugas.
Abro parêntesis de resistência cult-brega. (Insisto que xifres, xifrâncias, e similares, é com “x” mesmo. Tem a ver com o “x” de xanas e ximbas, maldegustadas e mal-amadas. Coisas do humanodrama. Já com “ch” é coisa da galharia dos animais; e de gramáticos ungidos e mugidos pela purificação gramatiqueira). Fecho rápido o parêntesis.
A velharada, meu santo, é quase toda mestre nas artes do gozo sugado-degustado, que nem vinho de boa cêpa sorvido no estalo da língua.
Mesmo se babando sabem namorar-gozando e gozar-linguajando. Mesmo arrastando pés entrevados, sabem se aconchegar na tardemansa, numa ilha de ternuras, carícias, gemências, pigarros, tosses secas. Num revoar de fantasias girando-se-esfregando nos gestos abestalhados, papadas engelhadas, óculos caindo, chapas soltas.
Tão enamorados que no triscar cantienrugado d’olhares românticos, míopes, cansados, sabem deslizar luas e cataratas.
Momentos únicos, em que as velhitudes esquecem as ferrugens do Tempo. Desconjuram a deprê. Resgatam a auto-estima. Renascem nos sonhos, lembruxas, curruchios e amassos. Evohé Bacchus!
Daí que Mestre Irôko fica baratinado com as resistências da velharada romântica. Afunda e retorna nos “acúmulos de juventude” e nos lembrares-e-sentires de cada um.
Presos sempre no Tempo, nós, por momentos prendemos e trollamos o Tempo. Jogamos seu jogojogado. Mestre Irôko pira. Encrua e recarrega. Anda, desanda. Dá piti. Entra em refluxo no turbilhão de si mesmo. Loading-reloading, como Matrix descalibrada.
… carpe diem, velharia, carpe diem!… pois só vocês sabem curtir a bagaceira d’amores e sonhos vivendo-se-revivendo apesar dos siricuticos do Tempo… que em sua eterna solidão não sabe amar. Só passar, passar, passar…
Mr.Tempo enreda-se-debate nos revivals de nossas lembruxas. Como peixe na tarrafa. Preso, gira-regira, se debate num vai-e-vem aloucado…
… e arregala os zoião nos tapes e remakes de nossas ternurinhas, nóias, emotions, refluindo dentrofora de nós… nas ruas, shoppis, bares, motéis… nos papos-lentos entre-amigos na tardemansa… nas lonjuras de navios longepartindo… nos pios de gaivotas riscando saudades… nas músicas da dor-de-cotovêlo… nos enganchos dos Grandes Amores…
… gira Tempo, gira Tempo, tempogira, giragirando, regirando… correndo, pulando, voando, encolhendo, escorrendo, quicando, espichando, rolando-des-enrolando, rindo, rindo, rindo, rindorolando, preso em si mesmo, como eterno-deus-criança que nunca envelhece, sempre brincando-mergulhando nas praias-sem-fim… mas que em seu lentiveloz fluir através dos mistérios do “fim-sem-fim”, é tão só triste-alegre solidão infinita que nunca morre… Tempo… solidão infinita… triste-alegre solidão… que nunca morre… nem mesmo de Amor… nem mesmo de Amor… nem mesmo…
Como sussurra Nana Caymmi, no boleraço “Resposta ao Tempo” (se link, mano), naquela voz rouca de deusa das madrugas-vadias, uisk-cantando no penúltimo boteco das galáxias-perdidas dentro de nós… e trollando com os siricuticos do Tempo…
… enquanto a velhascaria-romântica s’engata-enrabicha, linguajando adoidada, pelas quebradas da vida… Quem nunca?
A casa-grande da Fazenda Horizonte tem sido um lugar de refúgio para minhas leituras e escritas. Sempre que ali retorno, apesar de o calor maltratar impiedosamente a minha pele − a temperatura ultrapassa os 40 graus centígrados, derretendo os miolos dos seres acostumados com a brisa do litoral − releio com olhos de encantamento uma crônica fixada em um quadro emoldurado na parede da sala de estar. O texto foi publicado em 28 de agosto de 1959, no jornal A República, pelo escritor e historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986).
Câmara Cascudo descreve Gregório Ferreira de Melo (1872-1944), que nasceu e criou-se na Fazenda Horizonte, localizada em Campo Grande, na microrregião do médio-oeste potiguar, a uns 300 km da capital. Vale lembrar que o município de Campo Grande teve seu nome alterado para Augusto Severo, em 1903, em homenagem ao inventor do dirigível Pax e, em 1991, voltou a receber sua antiga denominação. Ali predominou, por décadas, o plantio do algodão arbóreo e atualmente cultiva-se o milho, o feijão e o capim que servem de apoio à pecuária.
Sala de jantar e oratório da Fazenda Horizonte
Mas voltemos à crônica de Câmara Cascudo que faz referência a Gregório Ferreira de Melo como um comerciante próspero, regente de banda de música, cronista nato e crítico literário. Um leitor assíduo de almanaques, revistas e livros com excesso de verve. Gregório Ferreira de Melo era um intelectual requintado com olhos de turquesas azuis em busca de descobrir o novo. Câmara Cascudo o considera um homem à frente de seu tempo e um dos mais inteligentes e curiosos que encontrou na sua vida.
Câmara Cascudo também descreve a casa-grande senhorial da Fazenda Horizonte como iluminada pelas alegrias de um bando de moças vivas, espirituosas, que cantavam, dançavam e encantavam. A casa-grande, construída no final do século XIX, com paredes de 60 centímetros de largura, cumeeira alta, sótão amadeirado, oratório, fogão a lenha, sem alpendre frontal, tem o estilo das antigas casas da região do Minho de Portugal. Essa volta ao passado remete-me ao quarto de dormir das donzelas, que era desprovido de janela para evitar olhares furtivos ao seu interior e possíveis fugas das moças casadoiras.
Quando Gregório estava com oito anos, seu pai, José Ferreira de Melo (1832-1881), proprietário da Fazenda Horizonte e irmão da avó do historiador Luís de Câmara Cascudo, suicidou-se. A mãe de Gregório, Luiza Mirilanda de Brito Melo (1838-1920), ainda amamentava o caçula Antônio, quando vestiu luto fechado pela morte do marido, acompanhada das filhas: Cândida, Petrila, Ubalda, Ana e Sancha Mimosa.
Em 1912, Antônio Ferreira de Melo (1879-1944), aos 33 anos, já casado com Maria Teodora de Brito Melo (Dona Marieta, 1890-1983), adquiriu a fazenda. Em 1985, a Fazenda Horizonte foi comprada dos herdeiros pelo atual proprietário, Sebastião Ferreira de Melo de Faria Caldas (1948), bisneto de José Ferreira de Melo.
José Ferreira de Melo foi sepultado na Fazenda Horizonte, em 1881. Na época, a igreja católica não permitia o sepultamento de suicidas em campos santos. No túmulo, localizado a dois quilômetros da casa-grande da fazenda, há uma placa de bronze com os seguintes dizeres:
“Jaz aqui José Ferreira
Que este mundo desprezou
E a 25 de março
Pra outra vida passou”.
Confesso que casos sobrenaturais indecifráveis, rangido de portas, balanços de cadeira vazia no sótão e aparições de almas penadas, aguçam minha imaginação. Encantam-me, histórias de mistérios como O Cemitério e Sacos de Ossos, de Stephen King, Histórias de Fantasma, de Charles Dickens, Contos de Fantasmas, de Daniel Defoe, O Fantasma de Canterville, de Oscar Wilde, O Corvo de Edgar Alan Poe, A Menina Submersa, de Caitlin Kiernam, entre outros.
Na Fazenda Horizonte, tenho ouvido relatos corriqueiros que fogem ao controle da lógica e fazem parte do imaginário popular da região. Tião (Sebastião Ferreira de Melo de Faria Caldas) e eu, em nossas idas e vindas ao Horizonte, vamos mantendo vivas as lembranças dos antepassados que habitaram a casa-grande da fazenda.
Esta crônica de Tereza Custodio, intitulada originalmente como ‘Fazenda Horizonte – 1871’, integrará a Antologia “Singularidade das Palavras”, cujo lançamento ocorrerá próximo dia 7 de dezembro, no bairro Pinheiros, em São Paulo, pela Editora Scortecci.
Se escrever uma lista já é uma tarefa pessoal e quase que totalmente subjetiva, taxar se um filme é superestimado eleva esse sintoma. Há quem diga, por exemplo, que Avatar (de James Cameron) e Gravidade (de Alfonso Cuarón) são superestimados. Para mim, se o primeiro tem um roteiro até certo ponto clichê, a direção de Cameron e o valor técnico da produção minimizam os deslizes, colocando-o como um marco da história do cinema a ser lembrado durante muitas gerações. Enquanto isso, o filme de Cuarón é – novamente para mim – uma obra-prima da ficção científica, um filme sobre renascer e sobre a importância da vida, um trabalho a ser descoberto e redescoberto do diretor de Roma.
Por outro lado, há filmes que não me descem. Seja por terem sido incensados a ponto de ofuscarem verdadeiros monumentos do cinema; seja por ser um trabalho engraçadinho e bem feito, mas de relevância perto de zero; seja por ser uma história até certo ponto bem dirigida, mas conduzida com falta de habilidade o suficiente para desviar a atenção do tema principal; seja por ser bonitinho, mas ordinário – e com força para que sua atriz protagonista seja alavancada até onde nunca deveria ter chegado (ao menos não quando chegou)…
Lembrando que o que é superestimado para mim pode não ser para você; o que é bom para mim, pode ser ruim para você. Não há regras. E a lista não é de filmes ruins, apenas de filmes que alcançaram um status que, em minha visão, estão longe de merecer.
Sem mais demora e dentro dessa abordagem subjetiva, sem verdades absolutas e pessoal, vamos à lista dos cinco filmes mais superestimados da história do cinema:
Começando de leve, com um filme baseado no livro do adulado Nicholas Sparks. Se Diário de uma Paixão tem química de sobra é porque Rachel McAdams e Ryan Gosling funcionam como um dos casais mais sincronizados do cinema. O problema é que o filme é extremamente simplista em sua abordagem sobre a paixão, como se esta fosse uma das únicas engrenagens que precisam funcionar para um relacionamento saudável ser eterno (ao menos enquanto dure). Assim, as personagens de McAdams e Gosling – apesar da química – são tratadas como meros clichês românticos e, para piorar, o filme reforça o estereótipo do homem atraente que recusa o não de uma mulher. Um filme que nasceu socialmente datado, foi alçado a um dos melhores romances já filmados e logo começou a perder para o tempo e para a verdade.
Para não sair dos romances, se existe um filme na década de 1990 que eu, pessoalmente, criei um distanciamento grande e um abuso ainda maior é Shakespeare Apaixonado. Dirigido por John Madden (do tosquíssimo O Capitão Corelli, 2001) como se fosse um episódio prolongado de uma novela, o filme trata do processo de escrita shakespereano com uma profunda necessidade de ressaltar uma jovialidade que parece ter saído da série Malhação (que já vai na 27ª temporada). Ainda levou Gwyneth Paltrow, que é uma boa atriz mesmo tendo expressões de pão murcho nas mãos de Madden, a usurpar o Oscar de Fernanda Montenegro por Central do Brasil (de Walter Salles, 1998) – em uma das maiores injustiças da categoria em toda a história.
Dirigido por Anthony Minghella (de Cold Mountain, 2003), O Paciente Inglês define a assinatura do seu diretor: lentidão sem qualquer benefício sensorial ou estético. Aqui, é como se houvesse uma força que segurasse a história em um limbo e obrigasse o espectador a ficar contemplando a beleza das imagens com Ralph Fiennes e Kristin Scott Thomas como quem contempla paisagens mortas. De quebra, o filme ainda levou o Oscar de 1997 (em nove categorias), desbancando os excelentes Fargo: Uma Comédia de Erros (de Joel Coen e Ethan Coen – este não creditado), O Povo Contra Larry Flint (de Milos Forman), Segredos e Mentiras (de Mike Leigh) e Shine: Brilhante (de Scott Hicks).
Certinho, multipremiado e querido por muitos, O Discurso do Rei é daqueles filmes muito fáceis de engolir. Isso não é ruim. A questão é que a direção de Tom Hopper parece quebrar o filme em vários momentos, mexendo na linguagem com planos que contradizem seus personagens e acabam intercedendo na percepção geral do público. Hopper transforma algo simples e até certo ponto simpático em uma gloriosa grandiosidade desmedida. Felizmente, as atuações de Colin Firth (como o Rei gago George VI) e Geoffrey Rush (como Lionel Logue) são bem atraentes e, no final das contas, pelo menos o todo diverte. Por outro lado – e obviamente em minha opinião – dos 10 concorrentes ao Oscar de 2011, O Discurso do Rei é o único que não conseguiria nem cheirar a estatueta principal, mas ganhou.
O interessante (no mau sentido) de Crash: No Limite é que ele camufla seu recheio de vento com uma atitude complexa de histórias emaranhadas e de cruzamentos inusitados. Toda a complexidade do roteiro é vazia a ponto de o discurso racial como retrato da vida em Los Angeles – que já é raso no texto – ser totalmente abafado pela idealização quase que arrogante da direção de Paul Haggis (que coescreveu o roteiro). Pior: o filme recebeu a estatueta principal do Oscar 2006, vencendo quatro filmes que são para lá de superiores (para mim): O Segredo de Brokeback Mountain (de Ang Lee), Munique (de Steven Spielberg), Capote (de Bennett Miller) e Boa Noite e Boa Sorte (de George Clooney). Uma pataquada inesquecível (ou que é melhor esquecer) da Academia.
Agora, ficam aí os comentários. Foi difícil fazer uma lista tão subjetiva, mas tenho certeza que vocês podem complementar e enriquecer tudo o que está aí. Vamos conversando, debatendo… E, de repente, aumentando a lista.
“Cessem do sábio Grego e do Troiano/ as navegações grandes que fizeram;/ Cale-se de Alexandre e de Trajano/ A fama das vitórias que tiveram;/ Que eu canto o peito ilustre Lusitano,/ A quem Netuno e Marte obedeceram:/ Cesse tudo o que a Musa antiga canta,/ Que outro valor mais alto se alevanta”.
Camões inicia duas aventuras épicas. A intencional: de responder a Homero que fincara nos versos a aventura dos gregos, e a Virgílio, que cumprira papel semelhante na origem da aventura latina.
A segunda não foi intencional: estruturar o esqueleto de um idioma. A “última flor do Lácio, inculta e bela”; do dizer de Bilac. Que responderia à pergunta do tempo: “ora direis ouvir estrelas”.
Era o português uma algaravia, desde 1139, (Sec. XII) que se confundia com o galego, a linguagem da Galícia. Ganhou contorno morfológico com a obra teatral de Gil Vicente e o Cancioneiro de Garcia de Resende (Sec. XV). Porém, foi a épica camoniana (Sec. XVI) que teve o mérito de criar o arcabouço sintático da língua que nos define e nos fotografa.
Os Lusíadas, muito mais do que a louvação heroica das aventuras marítimas, é uma fábrica de metáforas. O forno que modelou uma forma de compor versos, na língua nascente.
A metáfora consegue remodelar o conteúdo opaco para fazê-lo brilhante, na forma recriada. Não fosse ela, a poesia seria apenas uma repetida composição de rimas. Sonoridade vocálica, pobreza poética.
A rima, nos Lusíadas, é pobre. Combinando mais das vezes desinências verbais. A metáfora, não. E é delas que ele tira a tintura dos versos para engrandecer pequenos atos. Ao dar-lhes feição maior do que o gesto.
A aventura grandiosa da circunavegação Lusitana vai se desenrolando ao apelo metonímico da mitologia. Com a cumplicidade de Vênus e Marte, sofrendo a oposição de Baco e Netuno.
A metáfora produz poesia. Ela é a rainha das figuras na composição do estilo. Dando nós onde há linha lisa e alinhando a linha onde há nós. Mesmo que seja poesia de pedra, rústica ou polida. Afagando o ouvido ou a leitura.
Dante, Shakespeare, Neruda degustaram metáforas. E deram vida à poesia nossa de cada dia. O resto não é resto, é metáfora do que resta da sobra. Onde se escondem os verbos nos porões da zeugma ou se omitem os nomes, nos escaninhos da elipse.
Aí não se pode esquecer a política nossa de cada noite. No Brasil de hoje, só a língua, mesmo maltratada, ampara a Pátria.
Só que a metáfora na política é a tentativa de esconder a verdade, muitas vezes feia, para vender a mentira falsamente bela. E o povo, metáfora da abstração, deixa-se enganar concretamente na mesma cumplicidade da metafórica democracia de faz de conta.
Na circunavegação da falsidade, institucionalmente estabelecida, senhora dos poderes e controles, o embuste ético humilha a língua de Camões.
A repetição deste texto dá-se pelo abuso com que a televisão, os blogs e twitters, na ausência do jornalismo impresso, assassinam diariamente o que ainda resta da língua que unificou a nossa linguagem cultural.
A falar a língua do povo, no dia a dia, é uma coisa. Outra coisa é usar o texto escrito para enterrar a língua portuguesa. O que há de “sábios”, que entendem de tudo, usando a língua que desconhecem no mais elementar da sua estrutura, é de se imaginar que estão a criar uma “nova língua”. Ou edificar o seu sarcófago.
Uma língua inculta e feia, próxima da ortografia do rincho, com desculpas ao nosso jumento, inculto e belo.
Há muito tempo, num artigo de jornal, reportando-me à academia de letras – e não, especificamente, à ANRL – afirmava eu, de modo enfático: “A Academia é o panteão dos vivos”. Ironizava, com a irreverência própria dos jovens o que então me parecia ser academia.
No mencionado artigo eu citava o escritor e acadêmico R. Magalhães Júnior, que, numa entrevista deu este conselho aos jovens: “Atacar a Academia, já que a juventude deve ser rebelde contra o medalhão e a glorificação fácil”. Mas, concluindo, disse o mestre: “Depois de gritar bastante, entra para a Academia e tenta melhorá-la.”
Meu conceito de academia, hoje, é outro, inteiramente diverso daquele da minha mocidade. Eu mudei. Mudou a Academia. Não mais a vejo como um misto de Olimpo e Feira de Vaidades. Considero-a, tão-somente, na sua condição de alta agremiação literária, capaz de dinamizar a vida cultural, sob o signo da renovação, todavia sem perder de vista as melhores tradições.
É ponto pacifico que a Academia deve acolher em seu quadro de sócios efetivos, somente, escritores canônicos.
Que se deve entender por “escritores canônicos”? Numa definição simplista, canônicos são aqueles autores consagrados que entraram para a História da literatura. Exemplos a nível nacional: Machado de Assis, Castro Alves, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade…
O termo cânone difundiu-se bastante depois que o famoso crítico literário Harold Bloom utilizou-o num dos seus livros mais conhecidos, “O Cânone Ocidental”, em que estuda 26 escritores fundamentais para a nossa cultura.
Sendo extremamente seletivas, pelo menos em tese, as academias de letras – cada uma composta por reduzido número de sócios (no máximo 40) – não poderiam deixar de atrair a cobiça de literatos principiantes e até mesmo de subliteratos, altamente vaidosos, que se julgam merecedores do título de acadêmico, (E, não raro, o conseguem, valendo-se quase sempre de suas relações de amizade).
Até mesmo na Academia Brasileira de Letras encontram-se tais penetras, o que, aliás, pode-se constatar desde a fundação da entidade em 1896. Com efeito, já entre os acadêmicos fundadores constam os nomes de ilustres desconhecidos: Urbano Duarte, Pereira da Silva, Garcia Redondo e o Barão de Loreto. Escritores de segunda classe, eles não deixaram rastros na Literatura Brasileira, apenas satisfizeram seus anseios de glória, “imortais” enquanto viveram.
Figura típica dessa qualidade de gente foi Ataulfo de Paiva (1867-1955). Sociável, maneiroso, mantinha largo círculo de amizades, especialmente entre figurões do Rio de Janeiro, então capital federal.
Ataulfo de Paiva tinha veleidades literárias, mas nunca conseguiu produzir algo significativo no campo das letras. Bacharel em Direito, realizou-se profissionalmente. Mas, não satisfeito, aspirou à imortalidade acadêmica, e tanto fez, no afã de alcançá-la, que foi eleito para uma das cadeiras do Petit Trianon.
Sobre a sua obra, a Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa (2001) registra apenas dois discursos na ABL: “Elogio de Artur Orlando” e “Discurso de Recepção a D. Aquino Correia”. José Lins do Rego, que o sucedeu, na referida cadeira, ao invés de fazer-lhe o elogio de praxe, desancou-o.
Ataulfo de Paiva era um sujeito de sorte. Conseguiu galgar todos os postos que ambicionava, e ainda deixou o seu nome para uma artéria de Ipanema, no Rio, a qual, com o correr do tempo, tornou-se uma das mais movimentadas daquele bairro.
Mas, voltemos às academias.
Em seu livro “Academia Brasileira de Letras – Histórias e Revelações”, (2003), Daniel Piza, após citar Machado de Assis e dizer da sua importância, refere-se a outro dos fundadores da entidade – Joaquim Nabuco – considerando-o não menos influente que o “Bruxo de Cosme Velho”. E acrescenta:
“…foi o maior defensor da ideia de que a Academia, tal qual na França, não se limitasse a escritores e abrisse vagas para homens públicos, como o Barão do Rio Branco (embora, no caso, ele fosse um prosador de talento), mesmo quando não tivessem obra literária digna do nome…”
A presença de “expoentes”, segundo Joaquim Nabuco, serviria para dar relevo público à ABL. “Nós precisamos de um certo número de grandes seigneurs de todos os partidos”, escreveu a Machado de Assis, em 6/12/1901. “Não devem ser muitos, mas alguns devemos ter mesmo porque isso populariza as letras.”
Explica-se a posição de Nabuco. Ele próprio, que era um grande escritor, era também um “expoente”: diplomata (foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na Inglaterra), deputado geral, célebre pela sua participação na Campanha Abolicionista.
A ABL, seguindo-lhe o entendimento, tem acolhido, “ad immortalitatem”, vez ou outra, elementos alheios ao mundo literário, como, por exemplo, Santos Dumont, Osvaldo Cruz e Ivo Pitanguy. Nessa onda pegaram carona, em ocasiões diversas, alguns políticos – Getúlio Vargas, Dantas Barreto, Marco Maciel, etc. –, que pouco ou nada escreveram a não ser discursos.
E la nave va…
No dia 14 de novembro de 1936, um grupo de intelectuais, tendo à frente Luís da Câmara Cascudo, fundou a Academia Norte-rio-grandense de Letras, instituição voltada para “a cultura da língua, da literatura, ciências e artes”.
Seu primeiro presidente foi o poeta Henrique Castriciano, um dos nossos mais ilustres homens de letras, e, que, instado pelos seus pares, aceitou o encargo. A secretaria geral ficou com Cascudo; as 1ª e 2ª Secretarias, respectivamente, com Edgar Barbosa e Adherbal França, e a tesouraria com Clementino Câmara.
Sobre as providências iniciais com vistas à fundação da entidade, há depoimento do próprio Adhebal, nestes termos: “A Academia nasceu das reuniões em casa do Dr. Câmara Cascudo (…) Ele é para nós o que foi Conrart para o imortais da França (…) A Presidência ficou com Henrique Castriciano, que é, assim, o nosso Machado de Assis”.
Compunha-se a Academia inicialmente, de 25 sócios, mas por força de reforma estatutária, de 1948, esse número aumentou para 30, e mais tarde, em 1957, para 40. Formou-se desta maneira o quadro definitivo, nos moldes da Academia Francesa.
Cada uma das cadeiras tem o seu patrono, escolhido pelo respectivo fundador. Da leva inicial sobressaem-se escritores e poetas, como Ferreira ltajubá, Auta de Souza e Segundo Wanderley; juristas como Amaro Cavalcanti e Luiz Gonzaga de Brito Guerra; polígrafos do porte de Luiz Carlos Wanderley, Nísla Floresta e Luís Fernandes.
Na segunda leva de patronos vieram, entre outros, Manoel Dantas, Aurélio Pinheiro e Armando Seabra. Por último surgiram vultos da estatura de Jorge Fernandes e Afonso Bezerra.
Lamentavelmente ficaram fora Tobias Monteiro, Polycarpo Feitosa, Rodolfo Garcia, entre outros escritores. Também foram escolhidos, como patronos, nomes não propriamente de escritores, mas de eminentes potiguares, com lugar garantido na História da Inteligência, por exemplo: Padre Miguelinho, Almino Afonso, Padre João Maria e Augusto Severo.
A Academia funcionou, inicialmente, no Instituto de Música, depois no Instituto Histórico e Geográfico até transferir-se para o atual endereço à Rua Mipibu, 443. A construção da sede própria resultou de uma longa e obstinada luta do presidente Manoel Rodrigues de Melo em busca de colaboradores junto aos órgãos públicos e à iniciativa privada. No terreno doado pelo Governo do Estado começaram os trabalhos em 1958, concluindo-se doze anos depois. Mas, a inauguração da sede, devidamente mobiliada, ocorreu a 23 de janeiro de 1976.
Duas árvores monumentais embelezam o jardim, tornando-o extremamente acolhedor: um pau-brasil, talvez o maior de Natal – plantado pelo então presidente Onofre Lopes – e um jambeiro (Deus os conserve a salvo do machado arboricida).
A Academia conta com uma biblioteca e uma revista que vem circulando a partir de 1951, lançados desde então 60 números.
Da programação cultural constam palestras, mesas-redondas, sessões de saudade e “A Academia nas Escolas”. Anualmente, são concedidas honrarias a norte-rio-grandenses com destaque em vários segmentos da sociedade – Palmas Acadêmicas “Câmara Cascudo”, Mérito Acadêmico “Agnelo Alves” e troféu “Mecenas Potiguar”. Por último, instituiu-se, em parceria com o Grupo Vila, um prêmio literário, cujo regimento está sendo elaborado.
Vários melhoramentos têm sido feitos pela atual administração, à frente o poeta e escritor Diógenes da Cunha Lima.
… daqui pra frente com a revolução digital, e o avanço organizado da bandidagem, o que vai rolar é o gangsterismo.
A burakera vai ser outra.
Seremos um narco-país nos trinques. Com narco-bares e tudo. Como em Laranja Mecânica, de 1971. Vocês lembram?… aquele filmaço dirigido pela genialidade de Stanley Kubrick. Onde ele foca a corrupção moral, delinquência e violência, numa sociedade futurista. Tanto corrupção da juventude, como do povo em geral. Quanto corrupção dos governantes.
Corrupção social generalizada com sociedade up-to-date. Tipo mix de hepatite crônica com avanço tecnológico de ponta.
Teremos exércitos de robôs-traficantes… não mais comunismo, nem liberalismo… ou esquerda e direita, muito menos democracia. Frescuras do passado politiqueiro.
Mudaram os cambalachos, bixo.
Daí que o lema político, econômico, jurídico e cultural, vai ser “O crime recompensa, mané”. Com faixa e tudo.
Criminoso será respeitável profissão digital. O operário será o que sempre foi, escravo do Sistema e produtor de riquezas.
Poderoso Chefão Banda Larga, será o maior título imperial e governará o planeta com plenos poderes digitais e trans-sexuais.
A Poderosa Chefona Bunda Larga, será a de maior traseiro e xereca mais inchada. De beleza fatal, andará nua e será adorada até a última instância. Todavia, por via das dúvidas, só adorada com um olho só pra não gastar. Terá um séquito de danseuses, bixas, trixas, bisex e lesbtrans.
Meninos de rua e assaltantes serão estágios acadêmicos… a galera de direita ou esquerda será toda encarcerada. Tudo junto num Congressão. Um Hiper-Congresso onde todos os políticos estarão em sessão contínua. E serão condenados a ouvirem seus sacais discursos pro resto da vida.
Será um quase sublime fim da Política… agonizar ouvindo a si mesma. Daí que, pela primeira vez na História Humana haverá a “morte por saco cheio”, enquanto um coral de monjes barbudos canta torturantes músicas sertanejas… e o povão ruge e muge…
… e Arabataxa Primus, o Poderoso Chefão Banda Larga, pra lá de entediado, dá uns tiros pro alto, saudoso dos assaltos emocionantes de seu tempo… pois que, aqui-agora, na Era da Bandidagem Banda Larga, o povão tá todo ligadão e largadão. Tudo em paz. A narco-paz-social. Todos usando sua Bolsa-Marafa, na faixa.
Mas Mister Infinitaço tá nem aí pra essas esculhambarias terráqueas. Nosso planeta é uma titica de formiguinha nessa imensidão cósmica sem-fim.
Apesar dos avanços. Nossa História ainda caminha meio emperrada nas ideologias e porrologias. Dando um nó-de-nós acochados sobre si mesmo.
E a Terra gira como sempre… a galáxia desembesta louca infinito afora, a incríveis 2,3 milhões km/h…
… quidiabo-é essa toda veloc-loca, mano?
… quidiabo-é essa coisa toda dum espaçotempo sem fim, mano?
… quidiabo-é essa coisa toda sem eira, nem beira, mano?
… habemus Deo? habemus Deo? habemus Deo?… há ou não há Deus ou Deuses? Diz aí, chefia… diz aí…
… todos os livros sagrados dizem que um deus imortal criou tudo, incluso nós, os seres mortais…
… mas praquê um imortal criou mortais? Isto é criou a morte… será por tédio, por diversão… por estudo… qual o sentido? cadê as almas vagando?… cadê os espíritos espiritando?… mistérios…
digaí, véi! digaí-vei! digaí-pôha!
… ninguém responde… silêncios sobre silêncios sobre triscos d’estrelas sobre buracos negros sobre cometas perdidos sobre o Nada… e quase inaudível acordes da Nona de Beethoven e o coral de deuses uivantes estrugem bem lá no fundo dos ziriguiduns e quizumbas de cada um…
… qual o sentido do sem sentido?… quem sabe o quê, chefia?
… Osh, manusho! vôjátomáuma!
Dramaturgo, poeta, escritor e jornalista, Racine Santos tem um longo histórico de dedicação à cultura e à literatura. Atuando desde meados dos anos 60 na cena literária, já publicou inúmeras peças de teatro, poemas, revistas culturais, e mais recentemente dois romances.
Dentre seus inúmeros prêmios culturais, destaca-se a Medalha de Mérito Alberto Maranhão, outorgada pelo Governo do Rio Grande do Norte, em 1998. Racine Santos também é o nome de uma das salas do Teatro de Cultura Popular, da Fundação José Augusto.
Abaixo, destacamos alguns dos melhores momentos de uma entrevista que ele nos concedeu para o livro Impressões Digitais – Escritores Potiguares Contemporâneos, Vol. 2.
Não seria o que sou se não tivesse tido a infância que tive. Correndo livremente pelas ruas de Macaíba do final dos anos 1950, construí um mundo de sonhos que carrego comigo até hoje, como um trancelim pendurado no pescoço. Foi lá e nessa época que vi pela primeira vez um Pastoril, meu primeiro alumbramento, como diria Bandeira. Circos mambembes, João-Redondo, cantadores de viola, vendedores de folhetos, festa da Padroeira e filmes de “cowboy” no cinema da cidade, tudo isso junto formou o painel dos meus tempos de menino.
Duas coisas no entanto destaco nesse universo irresponsavelmente feliz: a igreja de N.S. da Conceição, com seu silêncio e seus mistérios, onde eu fazia parte da Cruzada Eucarística e doido para que seu Adelino, o sacristão, deixasse um dia eu tocar o sino. Coisa que um dia pude fazer, para minha suprema alegria. E a feira, aos sábados, barulhenta, cheia de cores e cheiros, por onde eu passeava como se estivesse num parque de diversão. E assim, entre o sagrado e o profano, vivi minha infância em Macaíba, pecando e comungando como todo bom cristão.
Minhas primeiras leituras, quando eu menino, foram os folhetos de literatura popular em versos. A literatura erudita só vim conhecer mesmo no Seminário Marista, em Apipucos, Recife. Ali, numa primeira fase, li um autor francês de inspiração católica chamado Gilberto Cresbon (“Cães Perdidos Sem Coleira”) e A.J. Cronin (“A Cidadela”, “A Árvore de Judas” e “As Chaves do Reino”). Hoje eu tenho a impressão de que só quem os leu fui eu. Não conheço ninguém que tenha lido Cresbon ou Cronin. Se leu não diz. Bem, numa segunda fase, ainda no Seminário, conheci a poesia de Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto (poetas que me marcaram profundamente, pelo que diziam e como diziam) e Carlos Pena Filho. Como essa poesia me marcou. Principalmente os dois primeiros.
Foi nessa época, entre 1963 e 1964, que conheci o teatro de Ariano Suassuna. Quando li “A Pena e a Lei”, dei um pulo da cadeira e disse: “é isso que quero fazer”. E procurei ler tudo que ele tinha escrito. Num terceiro momento, descobri Dante e os gregos Homero (“Os rubros dedos da aurora” eu considerava a imagem mais bela já escrita por um poeta!), Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. Quando li “Édipo” e depois “Antígona”, de Sófocles, passei a ter por aqueles textos o mesmo respeito que tinha para com a Bíblia. Eram, para mim, sagrados e mereciam todo o incenso do mundo. Shakespeare veio depois, quando eu já estava em Natal. A primeira peça do bardo que li foi “Otelo”, que comprei numa edição de bolso, com tradução de F. Carlos de Almeida e Oscar Mendes.
Já em Natal, fora do Seminário, em 1968 descobri Hermann Hesse, J. Salinger. Quem não leu “O Lobo da Estepe” e “O Apanhador no Campo de Centeio”, naquela época? Eu, que vinha da leituras dos clássicos e de autores canônicos, de repente me deparo com a contracultura, com o movimento hippie, começo a ler o “Pasquim” e um amigo meu me apresenta Maiakovski. Ouvi Joe Cooker cantar “With a Little Help From My Friends” em Woodstok, depois Caetano, Gil e Chico, e vi que o mundo era bem maior do que pensava e que, naquele momento, muitos jovens estavam morrendo por uma causa. O Vietnan existia e a ditadura brasileira cada dia se fortalecia, estendia mais seus tentáculos. Foi nessa época que sofri um acidente de automóvel e tive que passar um ano e dois meses internado num hospital, no Rio de Janeiro. Lá fora o AI-5 e o homem chegando à lua me chegam pela televisão. E eu lia, alimentado de livros pelo amigo Osório Almeida, que me visitava toda semana..
Em 1966 eu já estava em Natal. Conheci Sandoval Wanderley e no ano seguinte entrei para o grupo que ele fundara e dirigia, o Teatro de Amadores de Natal. Com ele fiz várias peças como ator, inclusive “A Viola do Diabo”, da pernambucana Ladjane Bandeira.
Antes de sofrer o acidente que me deixou fora de circulação, eu havia escrito um arremedo de peça, um texto totalmente baseado na Via Sacra de Ghéon, que cheguei a encenar algumas vezes em Natal. Depois recriei para o palco o folheto “A Chegada de Lampião no Céu”, de Rodolfo Coelho Cavalcante, um poeta alagoano. Mas tudo sem consequências. Minha primeira peça encenada, aquela que considero o início de minha carreira dramatúrgica, foi “A Festa do Rei”, levada ao palco do Alberto Maranhão em 1976.
Você sabe que no Brasil quase não se publica peças de teatro, não é? Imagine em Natal. Tirando Meira Pires e eu, poucos autores têm peça publicada no Estado. Talvez eu tenha sido quem mais publicou, pois das minhas 18 peças, apenas “Bye Bye Natal”, “A Festa do Menino Deus”, e “A Ópera do Malazarte” não estão em livros. “A Farsa do Poder” já mereceu duas edições. Uma em 2001 e a outra em 2010.
Geralmente, tudo o que faço em termos de ficção, parte de um fato, de uma situação, ou mesmo um personagem. E em cima desse “embrião” vou desenvolvendo a história. Foi assim com todas as minhas peças, com o romance inacabado “O Quarto Rei Mago” e, agora, com “Macaíba em Alvoroço”. Nesse caso, o romance nasceu de um personagem, que eu batizei de Xexéu de Macaíba, poeta desaforado e cheio de malícia, autor de glosas safadas e irreverentes. Na verdade primeiro vieram as glosas, que eu havia feito para gozar uma situação vivida por um amigo, que faz parte de um grupo que frequentava determinada livraria da cidade. Eram várias glosas em torno do mesmo assunto, que provocaram muito riso no meio do grupo. E disse que o autor era um tal de “Xexéu de Macaíba”, um poeta popular amigo meu. Nei Leandro de Castro quando leu as glosas e soube que Xexéu era uma criação minha, me deu a ideia de escrever sobre esse personagem pícaro, dar-lhe vida, envolvê-lo em outras aventuras. Foi a faísca que faltava para incendiar minha imaginação.
Como carrego Macaíba de minha infância dentro de mim, situei a ação do romance no final dos anos 1950, naquela cidade. Aliás, a maioria de minhas peças tem essa Macaíba como cenário, como ambiente ficcional. Quando crio uma narrativa de ficção, minha imaginação corre pelas mesmas ruas que corri quando menino. Nomes de alguns personagens, tipos e lugares, tanto de minhas peças como no romance, foi lá que fui buscar. Em “Macaíba em Alvoroço”, com o qual ponho um ponto final em minha carreira de dramaturgo, criei uma situação onde coloco pessoas do baixo estrato social e as autoridades da cidade diante do mesmo fato gerador de ações e reações.
Comecei a escrever em dezembro de 2011, mas, somente agora, depois de reelaborá-lo várias vezes, é que achei que estava pronto para ser publicado. Apesar de nunca pré-conceber uma obra, depois que termino, reescrevo muito. Não creio na coisa espontânea, no improviso, no insight, literatura é trabalho, ourivesaria. Nesse ponto estou com Flaubert, é preciso encontrar a palavra certa, le mot juste. A quem eu dei para ler os originais, me deu um sinal positivo para publicação. E o que tenho a dizer sobre ele, é que é um romance aparentemente engraçado. Digo aparentemente porque no fundo ele trata de assuntos que merecem reflexão. A linguagem, e até mesmo o ritmo, tem muito do meu teatro. Me deu muito trabalho, pois reescrevo muito. Espero que gostem.
Todas as minhas peças foram encenadas, algumas delas, inclusive, fora do Brasil, como é o caso de “À Luz da Lua, os Punhais”, “Elvira do Ypiranga” e “Pedro Malazarte”. E minha peça “Chico Cobra e Lazarino”, curiosamente, foi encenada primeiro em Portugal. Depois em Recife.
O primeiro trabalho poético que lancei foi em 1972. Chamava-se Anti-Roteiro da Cidade do Natal. Era, na verdade, uma plaquete contendo poucos poemas sobre a cidade. Coisa de principiante. Depois, em 1984, publiquei A Casa Nordestina, um trabalho bem mais consequente, que gosto muito e que pretendo reeditar. Uma Cidade Vestida de Sol, belissimamente ilustrada por Newton Navarro, lancei em 1986. Sou muito comedido em termos de poesia. Publiquei pouco em forma de livros. Tanto é que somente agora estou com um novo livro pronto para ser lançado: “Breviário de Canudos”. Um trabalho ilustrado por Ciro Tavares, onde mergulho poeticamente na história do arraial de Canudos.
Na verdade, o livro contém um único poema, um longo poema sobre a Fortaleza dos Reis Magos. Como tenho os pés fincados na cultura nordestina, trabalho o poema na métrica e versificação da poesia popular. É um longo poema dividido em cinco capítulos, que chamo de Folhetos. Segundo Diógenes da Cunha Lima, que apresenta o trabalho, é a primeira narrativa em versos sobre a Fortaleza. Foi lançado em 1995, ilustrado com fotos de Carlos Lyra.
Taí, eu nunca tinha pensado nisso. De fazer parte de nossa história cultural. O que tenho a dizer é que a cultura, a literatura, sempre fizeram parte de minha vida. Então, tudo isso pra mim é natural. Parodiando Bandeira, eu diria que faço teatro como quem vive e faço poesia como quem chora. Se dou minha contribuição para a história de nossa literatura, ótimo. Mas, lhe afirmo, não tenho vaidade, nem essa pretensão. Nunca corri atrás de padrinhos para publicar meus livros ou encenar minhas peças. Produzo pelo impulso natural do artista. E se não publiquei mais, foi por falta de empenho meu nesse sentido. O interessante é que faço parte dessa antologia como poeta, quando muito pouco publiquei nessa área. Minha maior produção é na dramaturgia e no romance, e tenho convicção de que nesse campo pude oferecer a nosso Estado um significativo trabalho. Uma produção consciente e consequente..
Não sei. Na verdade não sei. Aliás, para os “antologistas” potiguares o escritor Racine Santos não existe. O único estudioso da literatura potiguar que me cita é Manoel Onofre Jr. Para os demais, não existo. Embora com peças encenadas em Portugal, Espanha, Chile e em quase todo território brasileiro, esse povo não me conhece. Às vezes eu quero crer que seja pelo fato da dramaturgia ser marginalizada no Brasil, pois é uma escrita que incomoda o poder, o estabelecido, o bem posto. Veja que a Igreja, na Idade Média, censurava o teatro. Todas ditaduras, de Stalin aos generais brasileiros, tentaram calar o teatro. Foi violenta a repressão ao teatro durante a ditadura militar no Brasil. Essa postura, claro, faz com que, talvez inconscientemente, os estudiosos oficiais e acadêmicos, fechem os olhos para a literatura dramática. Fora isso não tenho outra explicação.
Veja que coisa curiosa: em 1998 a FIERN e a Fundação José Augusto lançaram, em dois volumes, “Navarro, Obra Completa”. Reunindo crônicas, contos, poemas e tudo que achavam que seria suas obras completas. Mas ali não estão as peças que Navarro escreveu. E as peças que ele escreveu, como “O Caminho da Cruz” e “Um Jardim Chamado Getsêmani”, são grandes obras teatrais. Como se vê, se os dramaturgos dependessem de antologistas, estavam todos mortos. Ainda bem que nosso público é outro. Já pensou se Pirandello, Eugene O’Neill e Beckett tivessem nascido em Natal? Jamais teriam recebido o prêmio Nobel.
Para ficar apenas no campo da ficção, eu levaria: Gizinha (Polycarpo Feitosa), Macau (Aurélio Pinheiro), Os Brutos (José Bezerra Gomes), Os Mortos São Estrangeiros (Newton Navarro), O Rio da Noite Verde (Eulício Farias de Lacerda), As Pelejas de Ojuara ( Nei Leandro de Castro), O Dia em que Tyrone Power Esteve em Natal (Geraldo Edson de Andrade), Chão dos Simples ( Manoel Onofre Jr.), O Mensageiro del Rey ( Iaperi Araujo) e, claro, Prelúdio e Fuga do Real (Câmara Cascudo).
Sou o que escrevi. O escritor é o resultado de sua obra. Agora, quanto a meu teatro, ele é apenas o resto do banquete de Ariano Suassuna. Depois de beber nos gregos, Shakespeare e Molière, foi em Ariano que encontrei o caminho para um teatro comprometido com minha aldeia.
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