A Cultura de Weimar
Autor: Peter Gay
Tradução de Laura Lúcia da Costa Braga
Editora: Paz e Terra
Ano: 1978
Páginas: 213
Há cem anos a Alemanha vivia um dos períodos mais fascinantes e complexos da sua história. Espremida entre duas grandes guerras, a época da chamada República de Weimar ainda nos desafia com uma das mais inquietantes assincronias históricas da era moderna. A curta experiência democrática que nasceu após o colapso do segundo império alemão, colocou lado a lado exuberantes tendências vanguardistas no campo comportamental, artístico e cultural, junto a uma desconcertante pulsão política reacionária.
Esse movimento dialético, onde pólos opostos de uma mesma experiência social se chocam e se alternam, ainda tem muito a ensinar sobre a nossa época. Nestes anos, em que experiências neofascistas e neonazistas saem da fossa séptica da história e ganham impulso na cena pública de países onde, até pouco tempo, a tal da “democracia liberal” parecia reinar absoluta. Por isso, entender a República de Weimar, sua gênese, suas contradições e as razões do seu fracasso, é uma tarefa urgente.
Então, para se compreender um período tão paradoxal e contraditório como aquele, que antecipou e também gestou as bases do horror do regime de Hitler, nada melhor do que recorrer a um clássico.
E nesse caso o clássico é o livro de Peter Gay, historiador alemão, nascido na Berlim dos anos 20 e radicado nos EUA: “A cultura de Weimar”. A despeito de ter sido publicado há quase sessenta anos (em 1968), este é um desses ensaios historiográficos que não parecem perder o vigor nem a agudeza de sua análise. O texto concentra a maior parte de suas páginas na história cultural do período, remontando pedaço a pedaço, os elementos estéticos e artísticos que produziram uma explosão criativa no campo da cultura alemã, mas também traz um pequeno “apêndice” com uma descrição cronológica dos principais fatos políticos por trás da aurora e do ocaso dessa curta experiência de democracia liberal em uma Alemanha rodeada pelo fantasma do “Reich de mil anos”.
Foi durante a República de Weimar que a exuberância da pintura expressionista de artistas como Emil Nolde e Franz Marc pegou tração; que a genialidade da prosa de Thomas Mann (como sua Montanha Mágica) ganhou o mundo, junto com a poesia de Stefan George e Rainer Maria Rilke. Foi naquela época que o modernismo da arquitetura da Bauhaus de Walter Gropius, da música de Kurt Weil e Lotte Lenya, do teatro de Berthold Brecht e do cinema de Robert Wiene, Murnau e Marlene Dietrich revolucionaram a cena cultural europeia.
Poucos períodos na história moderna foram tão criativos e exuberantes quanto os curtos quatorze anos dessa experiência democrática, e a capital alemã na época acabou por se tornar um dos pólos culturais mais modernos, pungentes e progressistas da Europa. A Berlim de Weimar era um centro, não apenas de entretenimento cultural, mas também de liberação sexual e emancipação feminina, a ponto de ser descrita por Stefan Zweig como uma “babel mundial” onde “bares, parques de diversão e tabernas surgiam como cogumelos” e, como também descreveu Willy Haas, cujas as ruas foram tomadas pela “resposta aguda e rápida da mulher berlinense”. Uma cidade com uma “atmosfera encantadora” tomada por um ambiente onde o “não levar nada a sério” casava de papel passado com a “apreensão da seriedade das coisas”.
Não era à toa que alemães como o filósofo Martin Heidegger, oriundo da rural, católica e conservadora “floresta negra”, no sul da Alemanha, odiavam Berlim. Em uma época na qual, ainda nos dizeres de Zweig “nem a Roma de Suetônio conhecia as orgias dos bailes de travestis de Berlim, onde centenas de homens com vestimentas femininas dançavam sob o olhar benevolente da polícia”; a sensibilidade matuta de um sujeito como Heidegger não combinava nem um pouco com o modernismo nortista daqueles loucos anos vinte. O autor de “Ser e Tempo”, que fazia questão de se apresentar em suas preleções universitárias vestido com roupas de camponês da Suábia e que não escondia, em seus solilóquios fenomenológicos, o carregado sotaque dos sertões gelados do sul, vindo lá do pé dos Alpes, nunca escondeu seu desprezo pelas frivolidades metropolitanas de Berlim.
E é justamente, ao descrever essa atmosfera cultural tão pungente, que o livro de Gay torna a consciência do fracasso político dessa experiência democrática algo tão assustador. A fragmentação política da oposição aos nazistas, a crise econômica, o desemprego e a violência sectária explicam em parte as razões da catástrofe, mas não dão conta de tudo.
Particularmente interessante é a descrição, por todo o curso do livro, do modo como o ressentimento dos veteranos de guerra e a desilusão dos jovens alemães com o futuro econômico do país impulsionaram a ascensão da extrema direita.
Se você é alguém antenado com o que se passa no mundo hoje, pode ficar realmente assombrado com as semelhanças desconcertantes que unem nossa época àquela que antecedeu a ascensão nazi-fascista na Alemanha. A ideia de uma “guerra cultural contra o sistema” aliado a um mal estar dos jovens, expresso em um gênero de prosa literária que ganhou destaque na época, o “romance de suicidio estudantil” (como o de Friedrich Torberg, “O aluno Gerber”, de 1929) mostrava que o clima de insatisfação e desamparo circulava forte por baixo da euforia modernista. Curioso também notar como foi justamente entre os segmentos mais jovens, que eram protagonistas (diretos e indiretos) das notícias divulgadas nos jornais sobre a onda de suicídios entre estudantes universitários, que a semente do nazismo germinou com mais força.
Dá pra sentir um desconcerto, especialmente quando lemos hoje notícias sobre a “crise dos meninos” na América de Donald Trump, o apoio da juventude argentina á Javier Milei ou o aumento da violência política produzida por adolescentes armados e turbinados por grupos de discussão no Discord. Em Weimar, os assassinatos de ativistas de esquerda como Rosa de Luxemburgo, Karl Liebknecht, Kurt Eisner (assassinado na Bavária), Gustav Landauer (escritor comunista espancado até a morte por policiais na prisão) e Walther Rathenau (ministro do exterior do governo social democrata e chamado de “porco judeu” pelas milícias de extrema direita) mostra que a estrutura do ódio nadava de braçada bem antes de Hitler tomar o poder.
Um detalhe relevante, ao menos na edição brasileira de 1978 (não identifiquei se há outra versão em português do texto disponível), é que não foi feita a tradução dos termos em alemão que aparecem no original em inglês, o que torna a leitura do texto meio truncada para quem não tem um conhecimento da língua de Goethe ou não tem paciência pra ficar o tempo inteiro consultando o Google tradutor. Aliás a edição peca muito nas transcrições dessas passagens em alemão, cometendo erros grosseiros que complicam a compreensão de certos conceitos e induzem ao erro na identificação das obras citadas pelo autor.
Mas esse detalhes não tiram a importância do livro nem a qualidade do trabalho historiográfico, que vale muito a pena ser conhecido, não apenas por quem gosta de história da arte ou crítica da cultura, mas, fundamentalmente, por quem, como eu, fica perplexo sempre que se pega pensando que parece ser justamente nos períodos de maior liberdade e brilho cultural, que resta guardada, em potência latente, a densa escuridão de nossos mais apavorantes pesadelos autoritários.
É isso, amigo velho… se o fascismo é mesmo uma estrutura social, precisamos compreender seus mecanismos sob pena de sermos tragados por seu fluxo de violência e ressentimento.
