Londres – Inglaterra, 12 de Janeiro de 2018.
Se você me perguntar, amigo velho, qual a primeira imagem referente à Londres que guardo na memória, certamente vou te falar sobre a capa do álbum Abbey Road, da coleção e dos LPs dos Beatles que a minha mãe possuía e que eu costumo ouvir desde que me entendo por gente. Obviamente também não iria poder esquecer de mencionar a viagem panorâmica de balão que Gene Wilder fez com Peter Ostrum no filme de 1971, “A Incrível Fábrica de Chocolates”, um clássico absoluto das sessões da tarde da minha infância e que fez a geração que nasceu nos anos de 1970 se apaixonar, no limite da diabetes, pelo texto de Roald Dahl.
Apesar de presentes e recorrentes nos primeiros anos de minha existência, lá em nossa casa, no conjunto Mirassol, zona sul de Natal, essas imagens não tiveram o impacto iconoclasta do conjunto de reportagens fotográficas sobre o movimento Punk que vi em uma edição especial da revista Somtrês, que mamãe comprou em uma banca do supermercado Nordestão, lá pelo comecinho dos anos 80.
Foi só ali que eu descobri o sentido de uma coisa chamada “contracultura” e que havia também uma “cena” contracultural na Londres de mister Willy Wonka, mesmo que eu ainda não tivesse, pela pouca idade, internalizado o sentido mais amplo desses conceitos.
Acho que foi muito em função dessa memória afetiva que me esforcei por convencer nossa trupe potiguar em ir até o mercado de Camden Town, depois de levarmos as crianças para conhecer o museu da Madame Tussaud.
Situado às margens do Regent´s Canal, Camden Town inicialmente cresceu como um bairro de classe média baixa, pontuado por indústrias, destilarias de gin e pequenas fábricas de piano. Na segunda metade do século passado, no entanto, o local passou por uma transformação etnográfica, recebendo uma grande quantidade de imigrantes pobres da Irlanda. Foi desse estrato proletário da sociedade britânica que emergiram, não apenas diversos Pubs que se espalharam pela vizinhança, mas também toda uma escola de músicos irlandeses com suas flautas, bandolins e violinos, que criaram uma cena musical vigorosa por aquele bairro.
E foi justamente em uma das ruas de Camden Town, na Chalk Farm Road que, em 15 de Outubro de 1966, duas mil pessoas se imprensaram numa casa de shows chamada Roundhouse, para ouvir, durante o lançamento de uma revista chamada Internacional Times, a apresentação de uma banda recém formada que prometia revolucionar o modo como se tocava (e se ouvia) rock.
Provavelmente ninguém tinha consciência disso, mas quando o Pink Floyd subiu ao palco naquela noite e começou a tocar Interstellar Overdrive, estava mudando o sentido, não apenas da música pop, mas também da história daquele bairro na zona norte de Londres.
Depois do Floyd, as novidades mais quentes da cena musical britânica, como uma banda chamada Led Zeppelin e uma outra chamada Black Sabbath, se apresentaram por lá, assim como novidades vindas do outro lado do Atlântico como o The Doors e Jimi Hendrix.
Se você traçar uma linha cronológica, amigo velho, do Pink Floyd ao Oasis, passando pelo The Cure, o Stone Roses e chegando em Amy Winehouse (que vivia pelos pubs da vizinhança), toda a história da música britânica do final do século passado, andou por aquela área que, de quebra, viu nascer, explodir e congelar, como um artefato arqueológico, o movimento punk da Inglaterra. Por isso, quando estava traçando os planos dessa viagem, pensei comigo mesmo: “Não deve haver melhor lugar no mundo para se comprar camisas de banda!”.
Apesar de toda a expectativa que cultivei nos rincões da minha imaginação, bem lá onde guardo essa minha eterna pré-adolescência; ao sair da estação do metrô e atravessar as ruas de Camden Town em direção a seu famoso mercado, confesso que senti uma evidente decepção.
Sempre comento com meus alunos que a pior coisa que a gente pode fazer na vida é realizar um sonho, porque qualquer realidade (justamente por ser uma bela bosta) é sempre pior do que a mais raquítica imaginação. Hoje, Camden Town me pareceu um imenso bairro do Alecrim monotemático (se é que isso é possível), com dezenas, talvez até centenas, de lojas de rua e quiosques vendendo bugigangas para turistas do século passado (como eu). Em cada banca, posta nos limites da rua (pra não atrapalhar o passeio público) inúmeras quinquilharias turísticas da cidade se misturam às camisas com cores da Inglaterra, cachecóis de Harry Potter, pequenas peças que simulam artesanato, posters e vinis antigos; tudo isso amontoado nas proximidades das barracas do famoso mercado, que exalam fumaça de churrasco junto ao odor de comida mexicana e tailandesa.
Nem mesmo ter passado em frente ao Elletric Ballroom, casa de shows que recebeu Joy Division, The Smiths e U2, a fina flor do pós punk dos anos 80, todos em começo de carreira, serviu para esconder um certo ar de parque temático que tomava conta do ambiente.
A sensação nítida era de que eu havia chegado uns vinte anos atrasado e que aquela cena, cantada e decantada nas reportagens das revistas de rock que a minha mãe colecionava, era apenas uma reminiscência, uma ruína arcaica de um tempo que já passou e que volta apenas como simulacro plástico para fantasia de visitantes desavisados.
Talvez em função dessa sensação desconfortável de estar no local certo, mas na época errada, apressei o passo da nossa trupe para que a gente chegasse logo ao tal mercado. Afinal, eu tinha um objetivo naquela visita: trazer para a taba de Poty algumas camisas das minhas bandas prediletas, compradas in loco, no canto onde toda aquela cena musical aconteceu.
Amigo velho, você não pode imaginar a minha surpresa ao perceber que já não se vendem mais “camisas de banda” no mercado público de Candem Town. Foi preciso quase uma hora, zanzando pra lá e para cá entre as barraquinhas e os quiosques na parte interna e externa ao mercado, para achar uma lojinha qualquer que vendesse uma mísera camisa do The Clash, com a famosa foto da capa de seu primeiro álbum, clicada na escadaria de uma ponte (ou seria um viaduto?) que fica a poucos metros daquele lugar.
Tirando camisas do finado Dawid Bowie, quase onipresentes, e várias outras de artistas pop, junto as referências a grupos da “religião do metal”, o que mais se via no lugar eram estampas de filmes, séries, mangás, animes, jogos de videogame, pontos turísticos de Londres e personagens da marvel e da DC comics. Sim… e, como não podia deixar de ser, referências também a Amy Winehouse, que virou, com sua morte precoce e trágica, um chamariz mórbido para que turistas millennials possam gastar suas libras sem culpa ou pudor.
Foi preciso bater muita perna para que eu achasse um quiosque com alguma coisa, digamos, “da minha geração”. Encostado lá pro fim do mercado, um sujeito careca aparentando uns cinquenta anos, com um forte sotaque que eu penso ser de Manchester (a julgar pelo que ouvi das entrevistas de Liam e Noel Gallagher) vendia material dos Pistols, Joy Division, The Cure e Black Flag, junto (pasmem) a camisas com referências a grupos skinheads.
___ Só vendo punk, pós-punk e punk oi – me disse o sujeito enquanto embalava pra mim uma camisa com a foto de Ian Curtis – você não vai encontrar isso em mais nenhum lugar por aqui.
No começo achei aquilo papo de vendedor. Como é possível que, no bairro que viu o movimento punk explodir e que recebeu de portas abertas em seus pubs e casas de shows toda a fauna do pós punk de Liverpool e Manchester, não se achasse uma reles camisa do Teardrops Explodes, Echo & the Bunnymen, do Happy Mondays ou do Stone Roses?
Mas o pior é que o cara estava sendo sincero.
Tirando uma outra lojinha escondida, onde achei uma camisa do Sonic Youth e uma outra do Radiohead, havia muito pouco, quase nada, praticamente nenhum traço, da cena que redefiniu o comportamento e o gosto estético de parte da minha geração nas últimas três décadas do século que passou.
Voltei para o albergue naquele fim de tarde com um sentimento de estar ficando velho e de que os nerds finalmente venceram a grande batalha pelo domínio cultural dos corações e mentes na decadente civilização ocidental. Na Londres de hoje, nós, que éramos os “descolados alternativos”, já viramos candidatos a peças no museu de cera de Madame Tussauds. Aquele Camden Town que um dia foi de Johnny Rotten, Robert Smith e Joe Stummer, neste fim de segunda década do século XXI, me dizia isso… sem dó, nem piedade.
