Infância, adolescência e ferrugem

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Antes do sucesso absoluto da minissérie britânica Adolescência (2025), o cineasta baiano Aly Muritiba chegou aos cinemas com Ferrugem (2018). Em ambas histórias um garoto adolescente se vê responsável pela morte de uma garota adolescente por razões misóginas; e, como uma das repercussões, vem a tormenta dos pais do menino para lidar com isso.

Assim como a técnica de plano sequência, em Adolescência, que impressiona o espectador (e funciona a favor da imersão na narrativa e da potencialização dos significados desejados pelo diretor); também em Ferrugem uma escolha técnica, a do roteiro, tem um impacto avassalador.

Acompanhamos Tati como protagonista, até ela cometer suicídio, sendo substituída por outro protagonista. Assim, sentimos profundamente o seu desaparecimento, enquanto o mundo continua. Enquanto em Ferrugem o garoto adolescente não pretendia a morte da garota, e se arrepende a ponto de confessar sua culpa — em adolescência somos colocados de frente com um garoto que planejou e executou um assassinato. A motivação é uma realidade assustadora que estabeleceu-se de 2018 para cá: o crescimento desenfreado dos INCEL e da sua garra cruel, que esmaga a vida de jovens, tornando-os assassinos ou assassinadas; normalizando a ‘violência justificável’ por meio de um delírio misógino, que ressignifica acontecimentos comuns do período da adolescência.

Caberia debater dezenas de assuntos: acesso à internet e redes sociais, sexualização/adultização forçada e precoce, machismo, ausência parental, escola…

O que queremos abordar aqui, entretanto, é a consequência dos atos desses personagens meninos. Quando Ferrugem foi realizado e lançado, ainda não existia legislação para punição ao crime de revenge porn/compartilhamento de conteúdo íntimo (lei que entrou em vigor em setembro/2018). Portanto, nenhuma atenção se dá às questões jurídicas no enredo. Quando a família precisa lidar com o que o filho fez, eles partem em uma jornada impulsionada pela decepção e pelo amor incondicional — os contraditórios sentimentos da mãe; poeticamente caminham entre ruínas, e visceralmente encontram a mãe da vítima para assumir a culpa.

Essa abordagem narrativa, que valoriza a destruição emocional e as consequências subjetivas, colocando vítima e algoz frente a frente, tem bastante a ver com a realidade do Brasil, como exploraremos mais adiante.

Já no Reino Unido, a minissérie Adolescência deixa claro como o algoz é também vítima, e isso tem tudo a ver com o sistema prisional de lá. Os policiais e os pais sofrem, a assistente social, os advogados e investigadores, por saberem que a vida do garoto ‘acabou’. País de primeiro mundo, tão idealizado como exemplo de civilidade, é um grande exemplo de brutalidade sem sentido quando se fala em criminalização de crianças.

A maioridade penal lá é de 10 anos. A partir de 10 anos a criança pode ser considerada consciente das consequências de sua infração. Qualquer pessoa que conheça crianças ou entenda qualquer coisa sobre infância, sabe que a noção de conceitos como a morte, e a suscetibilidade de crianças à influência externa, são questões extremamente complexas e é simplesmente impossível de igualar uma criança à um adulto nesse sentido.

De todo modo, a minha questão aqui nem é debater se o menor de idade entende o crime ou não entende — questão essa que é exposta na série Adolescência, no episódio em que uma psicóloga precisa definir se o garoto de 13 anos entende o crime que cometeu.

O meu problema, aqui, é o sistema de reabilitação e o sistema prisional. Hoje, no Brasil, o congresso acaba de aprovar o projeto de lei de Eduardo Bolsonaro para aumento do tempo de internação da pessoa com menos de 18 anos (ou seja, quanto tempo o menor de idade pode ficar privado de liberdade).

“O texto aumenta de três para cinco anos o tempo máximo de reclusão para adolescentes que cometam atos infracionais em geral. Em casos classificados como hediondos, o período de internação poderá chegar a até 10 anos. A proposta também eleva para 23 anos a idade de liberação compulsória dos jovens infratores. De acordo com o projeto, aqueles que completarem 18 anos durante o cumprimento da medida serão transferidos para unidades específicas, distintas do sistema prisional de adultos.”

Tanto no Reino Unido, que detém o recorde de menor maioridade penal da Europa, quanto nos Estados Unidos, em que essa maioridade varia entre estados, a lógica por trás da diferenciação entre adultos e crianças é semelhante à do Brasil: o menor de idade é processado com o propósito de ser reabilitado para a vivência em sociedade. Assim, as instituições para privação de liberdade (quando essa ocorre) são distintas daquelas em que estão os adultos, além de serem priorizadas medidas educativas no lugar de punitivas.

Essa lógica faz sentido até para o senso comum que resiste a ela: crianças devem ser reeducadas se estão indo pelo ‘caminho errado’. Já os adultos devem ser punidos para desencorajar a atividade criminal. (Bem, na minha opinião, a reabilitação é o caminho preferível a todos).

Contudo, no Brasil essa é, de certa forma, a moralidade apoiada pela nossa legislação, que limita o tempo máximo de encarceramento a 40 anos. Ou seja, na construção das nossas leis, acreditamos na reinserção do indivíduo na sociedade, independente do tipo de crime.

Já nos EUA (que infelizmente segue sendo o exemplo desejável de organização cultural-social-econômica para o conservadorismo brasileiro) e Reino Unido um outro fenômeno, inacreditável para mim, é possível e aceito: um adolescente pode ser julgado como adulto, inclusive respondendo com os mesmos tipos de pena: a depender do tipo de crime. Ou seja, toda a lógica da reabilitação x punição conforme o estágio de vida e desenvolvimento cerebral/comportamental do indivíduo vai por água abaixo: um adolescente pode até ser condenado à prisão perpétua. [exemplo 1, exemplo 2, exemplo 3].

O que viemos propor, aqui, é um chamado à razão. Quando os autores de Adolescência e Ferrugem voltam a lente da discussão para os pais dos assassinos, eles nos fazem lembrar que aquelas crianças ainda não respondem por si completamente; os menores de idade estão sob tutela dos pais e das instituições, em última instância a sociedade é responsável. Os erros que esses adolescentes são induzidos a cometer por não serem vigiados, a falta de proteção dessas vítimas que deveriam ter sido cuidadas, tudo faz parte de um sistema interligado e que tem, agora, a chance de corrigir o curso.

Quando se fala em tempo de internação, é imprescindível lembrar que 5 anos na vida de uma criança é um tempo infinitamente maior do que 5 anos na vida de um adulto. Proponho um exercício simples: entre os 15 e os 20 anos, quantas pessoas você já foi? O quanto você mudou?

O desenvolvimento, as mudanças que ocorrem fisiológica e psicologicamente em uma criança e um adolescente são muito mais rápidos e intensos do que um adulto. Essa proposta de lei quer permitir a privação de liberdade (prisão) por até 10 anos “a depender do crime” (como se faz nos EUA e Reino Unido, mudando o parâmetro do tipo de réu para o crime).

Consegue lembrar quem você era com 15 anos? É muito diferente de quem você tornou-se com 25, não? Mas de 25 para 35, o salto foi tão extremo assim? Espero que fiquemos um pouco mais maduros com o passar do tempo, mas essa capacidade de flexibilidade ou crescimento cerebral diminui conforme a idade. Se você já acompanhou o desenvolvimento de um bebê, sabe que a cada semana ele muda muito. Quando está um pouco maior, essas mudanças começam a demorar um mês para se manifestarem. Depois, um ano. E assim por diante.

A redução da maioridade penal é uma barbárie que constantemente paira sobre o debate na esfera pública. Nunca é demais lembrar, também, o quanto a classe social das crianças é levada em conta, não só nos debates e na indignação seletiva, como também na aplicação dessas leis. É evidente que é para a juventude negra e pobre que essas leis “vão pegar”, como diz a expressão coloquial sobre a aplicabilidade da legislação.

Os programas policialescos, os youtubers de true crime, e a população aflita pela criminalidade, pedem por mais policiamento e mais punição. Mas a realidade do Brasil é a de uma mãe segurando a farda da escola, suja de sangue, do filho pequeno que foi baleado pela polícia. A realidade do Brasil é a do excesso de policiamento, de ‘punição’ sem crime, excesso de Bolsonaros eleitos. A falta no Brasil é de escola estruturada, família estruturada, instituições e programas acessíveis com opções de futuro e de acolhimento da juventude.

Paula Pardillos

Paula Pardillos

Escritora e crítica, membra da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. É também roteirista e diretora de cinema, com enfoque no gênero terror.

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