Este texto integra uma ampla matéria jornalística sobre a história da praia e bairro da Redinha Velha, que será dividida em 10 partes. A reportagem foi premiada no edital Auxílio à Publicação de Livros, Revistas e Reportagens Culturais, na categoria Reportagens Culturais. Tem recursos da Lei Aldir Blanc, e patrocínio do Governo do Estado do Rio Grande do Norte através da Fundação José Augusto, e Governo Federal através da Secretaria Especial da Cultura e do Ministério do Turismo.
O CÉU DA REDINHA
Os verões da Redinha de outrora não parecem preto e branco como as lembranças do passado. Existe um colorido nas histórias de marear e nos saudosismos de antigos veranistas. A boemia, se ainda é presente nos bares e botecos da Redinha, parecia perfumada de inocência nos idos das décadas de 1940 e 1950. Por esse tempo, um grupo de estudantes adolescentes, apaixonados pela praia do índio Poti, construiu uma palhoça com jeito de galpão nos chãos da Redinha, onde se alojavam dez ou doze amigos. Era a solução para aqueles que, mesmo “enamorados” da praia, não tinham casa de veraneio.
O batismo do lugar saiu da boca de um daqueles personagens que também emprestam à Redinha algumas peculiaridades: os embriagados anônimos, que sobem e descem as vielas do bairro como que cansados da sobriedade. Ao presenciar o clima de brincadeira, boemia e farra da “palhoça”, exclamou um deles: “Esse pedaço da Redinha é o próprio céu”. Naquele momento, os estudantes, ainda adolescentes, se fizeram reis e súditos ao mesmo tempo, em um “Pedaço de Céu” de brisas e mar.
Da frase espontânea, saída da embriaguez emotiva, aquele território livre ganhou o nome de “Céu”. Placas indicativas, pintadas com esmero foram espalhadas pela praia, onde se lia: “Caminho do Céu”. “Tínhamos nome, hino e estandarte”, lembra o cônsul aposentado José Maria Guilherme, famoso boêmio daqueles meados de século 20 e um dos entusiasmados adolescentes do “Céu” que amavam a Redinha.
Das lembranças daqueles veraneios de ontem, José Maria Guilherme conta em seu livro de memórias O livro de José: “Ali (no Céu) se brincava, mentia-se, bebia-se. Cantava-se o amor e as belezas da vida. Diziam-se verdades, ouviam-se estórias de pescadores, choravam-se amores desfeitos, comemoravam-se os nascidos e os refeitos, tudo ao som dos violões de Toinho e Macaquito”.
Se ao universo adolescente, sobretudo nos veraneios líricos, as revoltas e molecagens eram perdoadas, aqueles estudantes do “Céu” tinham normas e deveres que traduziam muito do espírito da época. As “obrigações” dos amigos do “Céu” eram transcritas através de um edito assinado por Netuno, que dizia: “Em nome e por determinação suprema da Justiça, da Liberdade e da Ventura, ordeno aos meninos do Céu os seguintes direitos e obrigações:
I – Obrigação de serem felizes;
II – Obrigação para com a verdade, com a sinceridade e com o respeito ao próximo;
III – Obrigação de obedecerem e admirarem o certo e tentarem consertar o errado; de cultuarem o belo e respeitarem o feio;
IV – Obrigação de sorrirem, até exageradamente, para todos, não importando que os chamem de loucos, porque sorrir é preciso para espantar os males do mundo, porque sua loucura é pelo amor, pela paz, pelo belo, pela justiça, pela liberdade, pela ânsia que têm de ver um mundo feliz, sem preconceitos, tabus, exclusões, guerras, ódios e invejas; loucos, sim, de vontade de derrubar fronteiras e Bastilhas; de desafiar e duelar, cheios de revolta, contra a fome; contra a falta de carinho e de compreensão do coração dos homens; pelos meninos e meninas desamparados, de pés descalços, esmolando pelas ruas do mundo, quando nada, um sorriso.
A solidariedade dos veranistas não se dava apenas com carnavalescos que faziam os “arrastões” nas casas nos quatro dias de carnaval. Também aos membros do “Céu” não faltava o essencial para um período feliz de veraneio, como conta José Maria Guilherme:
“Os veranistas não deixavam faltar comida a nós e as empregadinhas, nossas cúmplices das noitadas no PC, lavavam e passavam nossa pouca roupa. Era um veraneio de rico. Muitos abriam suas portas, alta madrugada e nos ofereciam o combustível gelado, com direito a tira-gosto, enquanto dizíamos que as músicas eram em sua homenagem. E as meninas, lá dentro, deitadas e bem guardadas, sabiam que estávamos mentindo, pois era para elas que enchíamos as noites da Redinha criança ainda, com a nossa prova de amor em forma de poesia musical, embalando seu sono e seus sonhos”.
No “Céu”, completa Zé Maria, o amor era diferente. Não tinha o cheiro da brisa do mar, mas à fumaça dos fogões de lenha misturados às loções “Coty” e “Royal Briar”, que envolviam os corpos suados das “empregadinhas domésticas dos veranistas”, depois da “parte” dançada ao som de uma pick-up velha, tocando em discos de cera os sucessos da época, como “Índia”, com Cascatinha e Inanha, “Aos Pés da Santa Cruz” e “Nada Além”, com Orlando Silva, “Delicado”, com Valdir Azevedo, “Fiz a Cama na Varanda”, Dilu Melo, “Ninguém me Ama” e “De Cigarro em Cigarro”, com Nora Ney, sem falar nos boleros, mambos e foxtrotes deixados pela Segunda Guerra.
Newton Navarro, ao falar sobre a Redinha, comenta no livro Do outro lado do rio, entre os morros, sobre o que chamou de “República”. As descrições do poeta sobre o lugar são as mesmas contadas por Zé Maria Guilherme: “As férias ensejavam aos moços uma estação de total irresponsabilidade. Casa, eles arranjavam de qualquer jeito (e chegaram mesmo a possuir uma, com carta de posse) traziam apenas os teréns mais urgentes: o calção, um estoque de garrafas para as primeiras investidas, roupa caseira, e um ardente desejo de viver a vida oferecida mais fartamente na temporada do sol. Tinha regimento interno, para o não-cumprimento em tempo algum, e uma bandeira – sinal semafórico, para suas notícias e comunicações com o mundo externo da praia”.
Navarro conta ainda que a bandeira hasteada resolvia problemas de mercado, cozinha, comida… “e sua linguagem funérea anunciava ‘urgente necessidade disso e daquilo outro’. A mensagem/exigência não deveria tardar. Caso contrário, a ‘turma’ assaltaria”. Eram os arrastões, relatados por Zé Maria Guilherme. E relembra, saudoso, veraneios de farras carregadas de alguma inocência: “A República marcou época, com seus endiabrados moradores. Mas, quanto da alegria, vida, movimentação, aqueles verões passados não ficaram devendo aos estudantes. Sem eles, a temporada seria fatalmente um fracasso. As serenatas não teriam vez. Os bailes com ares calmosos, sem o toque de humor que eles davam. E as ‘moças casadoiras?’. Hoje, as donas de casa dos ‘republicanos’, que a bandeira-pirata acobertava…”.
Mas, os novos tempos já surgiam nos horizontes da Redinha. Aquela época solta, de farras inocentes, ficaria presa nas muralhas do passado. O pós-guerra, que chacoalhou a cidade e, por alguns anos trouxe novos ares ao provincianismo daquela “vila iluminada”, passaria. E o “Céu”, daqueles veraneios mágicos, não caberia nas faces do novo tempo; pertencia apenas àquela geração de desejos incontidos.
E foi como um feitiço perfeito do “progresso” que surgia, querendo apagar todas as ilusões daquela época, que Tota, embriagado nas madrugadas roxas da Redinha, ateou fogo em alguns pedaços de palha, como brincadeira, para assustar os outros que dormiam na palhoça do “Céu”. O fogo atendeu aos pedidos do Tempo e subiu rápido sem dar chance de ser debelado. “Nem as nossas lágrimas apagaram aquele inferno em plena madrugada”, lamentou Zé Maria.
No dia seguinte, lembra o cônsul boêmio, todos os pescadores e veranistas vieram ver e tentar consolar os jovens, oferecendo material e mão-de-obra para reerguer o “Céu”, já considerado patrimônio poético e boêmio da Redinha. “Sentados nas cinzas do que foi para nós o quartel da paz, da alegria, nenhum tinha coragem de reerguer o Céu. Ele era um só, inimitável, inigualável, portanto irreerguível. Preferimos cantar em coro a ‘Saudosa Maloca’, de Adoniran Barbosa, e enxugar as lágrimas disfarçadamente, para que as namoradas não vissem”, lembrou Zé Maria Guilherme.
E A LUZ DA LUA?
Dos veranistas e moradores mais antigos da Redinha, todos contam histórias curiosas de veraneios escuros, iluminados por candeeiros, velas ou sobre o luar da praia. É que a luz elétrica só chegou à Redinha em 4 de julho de 1959, exatos 100 anos após a data da inauguração de iluminação pública de Natal, quando foram comprados 60 lampiões, distribuídos entre a Cidade Alta e Ribeira. A Redinha percorreu até meados do século 20 às escuras, sob o brilho da lua, espichada nas águas do mar. Com a luz elétrica – mais uma das invenções do progresso – as almas mais românticas do logradouro entristeceram-se.
A luz elétrica chegou à Redinha fornecida por um gerador a diesel. A iniciativa foi do então prefeito Djalma Maranhão, que atendeu à reivindicação dos moradores e veranistas de uma praia que, mesmo das mais prestigiadas pela sociedade potiguar na época, já se mostrava esquecida pelo poder público. Nove anos depois de inaugurado o benefício, em dezembro de 1968, o então prefeito Agnelo Alves, cumprindo promessa de campanha, levou a energia de Paulo Afonso à praia da Redinha, resolvendo assim, em definitivo, esse problema.
Newton Navarro, em Do outro lado do rio, entre os morros lamentava as agruras desse avanço, da força da energia da usina que iluminou o Nordeste e encontrou a Redinha: “Chegaram os postes de Paulo Afonso. As serenatas, as poucas entre o iê-iê e algumas modinhas antigas ‘mal traçadas’, escorrem noite a dentro sob a luz de mercúrio e não mais cobertas do luar saudoso, dos tempos do poeta Jorge Fernandes… Sei que andamos a fazer saudosismo. Mas fazemos também lembranças. Tecemos com fios de memória e emoção coisas que ficaram em nós, naquele fundo poço a que se referia o Poeta. E vez por outra, um luar mais ativo invade a pedra fria e seca e as lembranças despertam e saem”.
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Parabéns pelo texto e o conjunto da obra que está expondo!