Redinha Velha: Uma religião de duas moradas (parte 11)

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Este texto integra uma ampla matéria jornalística sobre a história da praia e bairro da Redinha Velha, que será dividida em 10 partes. A reportagem foi premiada no edital Auxílio à Publicação de Livros, Revistas e Reportagens Culturais, na categoria Reportagens Culturais. Tem recursos da Lei Aldir Blanc, e patrocínio do Governo do Estado do Rio Grande do Norte através da Fundação José Augusto, e Governo Federal através da Secretaria Especial da Cultura e do Ministério do Turismo.

A padroeira da Redinha não poderia ser outra senão Nossa Senhora dos Navegantes, que ilumina aqueles nativos, marinheiros de canoas e jangadas, conquistadores de peixes pelos oceanos místicos e perigosos do além-mar. E, se folclore é aquilo que é representado pelas crenças populares e tradição, em diferentes formas de manifestação, assim como a exigência de que sua origem seja anônima e desconhecida, um dos folclores da Redinha é a festa da padroeira do bairro.

A procissão de Nossa Senhora dos Navegantes é uma prova da fé no cristianismo do povo nativo da Redinha e de veranistas da praia. Ocorre anualmente e é uma das tradições mantidas no bairro. Mas, se a festa deveria unir fiéis em torno da imagem da santa, o que ocorre é uma divisão religiosa, de crenças entre veranistas e pescadores – característica peculiar da procissão da Redinha.

No entanto, a santa tem o consolo de duas comemorações distintas. É que na festa de Nossa Senhora dos Navegantes há duas procissões, com duas imagens: a da capelinha antiga é a imagem da Procissão Marítima, pelas águas do rio Potengi, entre a Boca da Barra e os confins da Base Naval; e a imagem da igreja de pedra, que vai por terra, levada pelos veranistas ao longo das ruas e becos da vila.

A tradição reza que a procissão saía sempre no último domingo de janeiro, que coincide com a maré. No barco maior segue uma imagem na procissão fluvial. No seu sulco, pequenas embarcações levando fiéis cumprem a trajetória até a Base Naval, voltando à Boca da Barra. Finalmente, volta à terra para o encontro com a imagem similar, que cumpre a procissão por terra.

O jornalista, escritor e poeta Sanderson Negreiros, em texto publicado em 1970, relembra e homenageia uma das figuras mais queridas da história da Redinha, que muito proferiu louvores durante as procissões em homenagem à padroeira do bairro: o padre José Maria Biesinger, mais conhecido como Padre Zezinho, o primeiro pároco da Capela Nossa Senhora Dos Navegantes.

Assim se referiu Sanderson Negreiros ao padre: “Seu trabalho apostólico foi poema vivido, incessante e contínuo, a distribuir bondade entre os humildes, ele tão pobre, tão só, dando de si a pobreza material, enriquecida pelos dons com que Deus o fez mensageiro”.

O escritor e poeta Alexandro Gurgel, veranista daquela praia, assim escreveu no Diário de Natal de 2 de julho de 2003, em artigo sobre os 400 anos da Redinha: “O toque de fé e lirismo é o encontro das duas imagens, sob o aplauso fervoroso do povo simples de lá, inclusive nós que cantamos o Hino da Santa arrastando a esperança de que, não tendo faltado à sua procissão, seremos felizes o ano inteiro. Uma velha certeza, mistura de lendas e crenças populares”.

Após percorrerem os percursos fluvial e terrestre, e ouvirem juntas a celebração da missa, as duas imagens são levadas para seus lugares de origem: uma segue para a capela dos pescadores e a outra volta para a igreja nova.

DUAS NAVEGANTES

A história das duas imagens de Nossa Senhora dos Navegantes vem de antiga “rixa” entre veranistas e nativos. A construção da capela dos pescadores, em 1925 (essa data de origem da construção da capelinha é polêmica) guardava em seu altar a imagem da padroeira. Um grupo de veranistas construiu uma nova igreja, 31 anos depois, em 1956, alegando o diminuto tamanho da capela. Com a conclusão do novo templo, os veranistas acharam que a imagem deveria ser transferida. A ideia da transferência não agradou aos pescadores e familiares, como também a alguns veranistas.

Insatisfeitos e temendo verem a santa sair do altar da capelinha, um grupo de homens, entre pescadores, veranistas e sob a proteção do padre na época, roubou a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes da capelinha. O paradeiro – a catedral antiga – ficou em sigilo por dois anos.

“Até a polícia entrou na briga e impediu que a capela fosse aberta por algum tempo, até a imagem aparecer”, conta o pescador e marinheiro aposentado Manoel Esteves da Silva, o “Cará”. Contudo, as mulheres dos pescadores desafiaram a proibição e realizaram a novena mesmo sem a presença da imagem. A capela passou mesmo dois anos fechada.

A igreja construída pelos veranistas ganhou de presente uma imagem nova, que deveria ser destinada à capela dos pescadores. Cará explicou que devido aos boatos de que a imagem roubada estaria de volta ao seu antigo altar, ficou resolvido que essa nova imagem da santa ficaria mesmo na igreja de pedra.

Porém, quando a imagem roubada voltou foi direto para o altar da igreja nova. As duas imagens, hoje, protegem a igreja de pedra. Uma na torre e outra no altar. Mas, para agradar ambos os lados, a procissão estabeleceu que a antiga imagem voltaria ao seu altar na capela em janeiro, retornando cinco meses depois ao altar dos veranistas. “Agora está tudo em paz”, afirmou Cará.

Mas, a paz descrita pelo pescador Cará, para traduzir as desavenças dantes existentes para o local de abrigo da imagem da santa, ganhou pinceladas indesejáveis de modernidade na festa da padroeira. Nas quermesses, pouco se veem moças vestidas de branco a acompanhar a procissão, cantando hinos religiosos, como se viam antigamente.

Palavras do advogado e tradicional veranista da Redinha, Túlio Fernandes, colhidas pelo repórter Silvio Andrade para o Diário de Natal de 28 de janeiro de 1990, retratam as lamentações dos veranistas mais antigos, descontentes com o sentido comercial dado à festa: “Preferia que a finalidade precípua não fosse deturpada”.

Sobre a procissão, o escritor e poeta Nei Leandro de Castro traz uma visão mais otimista e lírica da festa: “Sobre o Rio Potengi não existe ponte ligando as duas habitações. Mas o rio as une quando há procissão da Senhora dos Navegantes – rainha do reino pobre das Rocas, da possessão da Redinha”.

Retratando a procissão, realizada em 2004, o Diário de Natal assim registrou, em 3 de fevereiro: “A procissão marítima teve um percurso de 50 minutos […]. A Capitania dos Portos havia inspecionado, até a manhã de domingo, 18 barcos, mas cerca de 25 embarcações (entre canoas, lanchas e barcos de pesca de um iate) participaram da procissão”.

A CAPELINHA

A data de construção da capela dos pescadores recebe diferentes versões. Para Gil Soares, conforme relato publicado em O Poti, quem dirigiu a sua construção foi o curraisnovense Napoleão Bezerra. A edificação desse templo católico, segundo Soares, resultou do carinho dos veranistas, os quais adquiriram também uma imagem de Nossa Senhora dos Navegantes e um sino. A inauguração foi em 20 de dezembro de 1925, sob festa e missa solene proferida pelo monsenhor Alfredo Pegado.

A opinião de Túlio Fernandes, exposta no Diário de Natal, é totalmente diferente. Segundo o veranista, que morava em casa alpendrada ao lado da capelinha, ela foi construída pelos pescadores por iniciativa de Barôncio Guerra, então diretor do sérvio de Patrimônio da União e também veranista da Redinha, entre os anos de 1932 e 1933. Junto com Enéas Reis e outros veranistas, afirma Fernandes, Barôncio coordenava quermesses e outras festas para angariar fundos e erguer a capelinha dos pescadores. A imagem da capela, lembrou o advogado, foi doada por uma senhora de Currais Novos, “Dona Venérea”, devota que, com esse gesto, pagava uma promessa. Era mãe de um amigo seu dos tempos do Atheneu, Dirceu Gomes. O pequeno sino da capela, segundo ele, também foi doação.

IGREJA DE PEDRA

FOTO: Sergio Vilar

De acordo com Gil Soares, a nova igrejinha da Redinha foi inaugurada festivamente no dia 16 de dezembro de 1956, com procissão e missa celebrada pelo Bispo Auxiliar de Natal, D. Eugênio de Araújo Sales. Sua construção resultou do trabalho do padre José Biesinger, da Ordem da Sagrada Família, da paróquia do Bom Jesus das Dores, dos pescadores e de um grupo de católicos que veraneava naquela praia.

Na festa de inauguração do templo, lembra Soares, apareceram os nomes de alguns destes colaboradores: dr. Otto Guerra, Letícia Garcia, Chicuta Nolasco Fernandes, Nízia Fernandes de Araújo Lima e Betildo Guerra Cunha Lima.

As paredes externas da igreja, disse ele, foram construídas com pedras pretas, toscas, retiradas dos arrecifes. Não estando sua frente voltada para o mar, os pescadores da Redinha se opuseram ao traslado da imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, da antiga capela para a nova. Apesar disso, houve consenso, graças à diplomacia do dr. Otto Guerra.


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Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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