Salve, cervejeiros lendários!
De vez em quando, eu gosto de trazer alguns textos menos focados na técnica e mais dedicados a elementos culturais. O texto de hoje vai mais nessa esteira descompromissada.
Faz parte do imaginário cervejeiro algumas lendas e o que elas escondem em seus mitos folclóricos. São estórias, não necessariamente verdadeiras, ou, por vezes, parcialmente, que povoam a cultura cervejeira.
No texto em andamento, vamos tratar de 3 lendas que permeiam esse imaginário.
A primeira delas é a lenda da “Brahma de Agudos ”.
A segunda é “A Lenda da cerveja choca ”.
A última é a lenda “Da Superioridade da cerveja de garrafa (sobre a lata) ”, e/ou, vice-versa, a depender de quem conta a conta.
Portanto, viajemos entre mitos (não vamos falar da “Noivinha de Aristides”, não se preocupem) e lendas, para conhecer um pouco do “folclore cervejeiro” (estou me sentindo um pouco “Câmara Cascudo” hoje, só que “menos integralista”).
Abra sua cerveja e vamos às lendas !
Brahma de Agudos: A melhor cerveja do mundo
Uma das lendas mais perpetuadas no meio cervejeiro (de boteco) talvez seja a da “Brahma de Agudos”. Ouço essa lenda desde quando eu era criança e nem sequer cogitava bebericar uma “loura gelada”.
Não se trata de uma Brahma qualquer, ela é a Brahma feita com as águas cristalinas e mais puras da cidade de Agudos , interior do Estado de São Paulo.
Tal como todas as lendas (não apenas as cervejeiras), existem variantes para essa estória. Exemplificativamente, tem-se notícia também da “Antárctica da Paraíba”, a qual os sommeliers botequeiros reconheciam apenas por causa da água utilizada.
Derradeiramente, é uma falácia dizer que se reconhece uma cerveja apenas pela água usada. Já que é mais fácil distinguir Sivuca de Hermeto Pascoal durante uma nevasca no Alasca que conseguir acertar uma cerveja apenas pela água usada na sua produção…
A base da Lenda: A água puríssima usada na cerveja
Todas as lendas cervejeiras que seguem o script da “Brahma de Agudos” se baseiam no mesmo pressuposto: a pureza da água usada. É uma espécie de Reinheitsgebot tupiniquim…
Ou seja, a cerveja não é a melhor do mundo por causa dos maltes de alta qualidade ou por causa dos lúpulos nobres utilizados… Não! A Brahma de Agudos é uma cerveja estupenda simplesmente porque sua água é pura e cristalina .
Claro que a maior parte da composição da cerveja é água (aproximadamente 99%)!
No entanto, o resultado final é muito menos impactado pela água (caso ela não tenha nenhum defeito, como, por exemplo, ter sido clorada – o que pode causar clorofenol), que pelos seus outros componentes.
Assim, uma água de boa qualidade impacta o resultado final, todavia, ele não é um elemento diferencial, quando comparado com os outros componentes da cerveja.
Maltes e lúpulos de alta qualidade são muito mais relevantes para uma boa cerveja, do que usar uma água puríssima e ainda assim colocar muitos adjuntos (de má qualidade, como xarope de milho) e até mesmo estabilizantes e conservantes.
Portanto, mais um “mito desfeito”. A Brahma de Agudos (SP) não é diferente da Brahma que era feita lá em São Gonçalo do Amarante (RN), apenas pela água usada. E nenhum sommelier de copo sujo sabe diferenciar uma da outra apenas por esse elemento hidrófilo…
A Lenda da cerveja choca
A lenda da cerveja “choca” também é uma “barbada” do folclore cervejeiro: mais comum que copo americano em “boteco de litrão”.
Na verdade, o habitat natural dessa lenda é justamente os estabelecimentos de ilibada reputação, que servem cervejas no grau conhecido como “canela de pedreiro”, ou a velha cerveja “mofada”. Apesar de isso não ser, necessariamente, um pecado…
Tal como todas as lendas, ela possui sempre uma “meia-verdade ” embutida em sua formulação. Ou como diria Heidegger , uma verdade em sua “não-verdade”… então vamos desvelar o ente para compreender melhor a lenda.
Por que a cerveja fica “choca”?
A meia-verdade contida na lenda da cerveja choca se chama “choque térmico”. De fato, o choque térmico pode ocasionar a desestruturação molecular . Ele ocorre quando há uma repentina adição térmica no meio, ocasionando a movimentação das moléculas e, a posterior, formação de cristais de gelo.
Certamente, quando ocorre o choque térmico, a cerveja tem toda a sua estrutura alterada , mudando, para pior, o seu aroma e o seu sabor. Todavia, é provável que quando há o choque térmico, por causa da expansão do volume do líquido (agora, congelado), que a garrafa ou a lata estoure. Por isso que a cerveja congela quando se toca com os dedos (quentes) no meio de uma cerveja prestes a congelar.
Diferentemente do choque térmico, no imaginário popular, a cerveja fica choca quando ela é resfriada, retirada do resfriamento, e novamente posta para ficar gelada . Esse movimento de mudança de temperatura pode ser mais sensível em cervejas não-pasteurizadas, que precisam de uma refrigeração contínua para conter a proliferação de organismos que fermentam, todavia, é inócuo nas pasteurizadas.
Contudo, nas cervejas de massa, pasteurizadas, e mais comuns a serem servidas nos botecos da vida, tal movimento tende a afetar minimamente a cerveja. Algo que passa despercebido diante da quantidade ingerida. Sendo irrelevante na experiência gustativa final dos sommeliers de boteco.
Assim, a não ser que você tenha a rara ocasião de beber uma cerveja que foi congelada (e não estourou) e depois foi servida em uma temperatura menor, certamente ela não será atingida pela lenda da cerveja choca .
Foto: www.bavihaus.com.br
Da superioridade da cerveja em garrafa (sobre a lata) – e vice-versa
Talvez, essa seja a “lenda” de hoje que seja mais “inexata”. Na verdade, sobre o dissenso sobre o envase em garrafa ou em lata ser melhor paira a dúvida, e, de fato, inexiste uma resposta única sobre esse embate.
Todavia, existe a lenda (ou as lendas) que tentam justificar porque um é melhor do que o outro. Existem também os fatos (que não são lendas, por conseguinte) que pendem para um ou para o outro lado do debate.
A origem dessa lenda se baseia na premissa que a lata seria inferior porque, por ser de metal, afetaria o sabor da cerveja com notas dessa natureza (metálica) .
Tal elemento poderia até ter algum fundamento de verdade muito tempo atrás, mas, hoje em dia, as latas já possuem um revestimento oculto de epóxi de plástico que impede o contato do líquido direto com o alumínio.
As diferenças no envasamento em garrafa e no enlatamento existem
Ainda que não se possa dizer que a garrafa é superior à lata, como se perpetuou na lenda, tampouco se pode afirmar taxativamente que enlatar a cerveja é melhor, no contexto geral.
As latas são melhores para prevenir do fenômeno do lightstruck (ou skunk ). Ele é a degradação da molécula que dá amargor ao lúpulo, o iso-alfa-ácido . Na presença da luz ele se quebra e dá origem a um aroma e sabor semelhante ao cheiro (nada agradável de gambá).
Tal fenômeno (lightstruck ) é mais recorrente em garrafas de cor mais clara (verde ou transparente), já que as mais escuras (cor de âmbar) protegem melhor contra o impacto luminoso na cerveja.
Todavia, o envase em garrafas de vidro pode ser melhor para as cervejas de guarda , já que o envelhecimento requer uma certa dose de oxidação positiva , algo inviável nas latas.
As latas, por seu turno, são melhores protetoras para as cervejas, o que faz com que sejam capazes de entregar um líquido mais fresco . Além disso, são facilmente recicláveis e agridem menos o meio-ambiente.
O ponto negativo em enlatar a cerveja ainda são os altos custos, fazendo com que apenas cervejarias de médio e grande porte. O que faz com que poucos acessem essa tecnologia de acondicionamento do líquido sagrado.
No final das contas, engarrafar ou enlatar possui finalidades e objetivos diferentes, e consequentemente, pontos negativos e positivos intrínsecos. Não sendo possível falar que um modelo de acondicionamento é melhor ou pior que o outro.
Mais uma lenda que se esfacela.
Saideira
O folclore cervejeiro é cheio de mitos e de lendas , apenas três foram selecionados para ilustrar um pouco da cultura popular que orbita com crendices o líquido das multidões.
Inexistem, portanto, a lenda de que a pureza da água seja o segredo da Brahma de Agudos (haja Brahmosidade !).
Tampouco, as cervejas de massa ficam chocas caso sejam resfriadas e depois voltem à temperatura ambiente para que sejam mais uma vez resfriadas (não confundir com o choque térmico!).
E, por fim, não persiste a lenda antiga de que cerveja de garrafa é melhor que a enlatada . Pelas novas tecnologias empregadas, a lata consegue até proteger a cerveja melhor que a garrafa! Ainda que cada uma delas tenha objetivos diversos entre si, não havendo um consenso de qual método de envase é melhor.
Certamente, as lendas descritas vão continuar a povoar o imaginário cervejeiro por muitos e muitos anos . O que vale é ter uma noção de como elas persistem e o porquê de elas se perpetuarem. Há sempre uma explicação racional para tais lendas da cerveja.
Recomendação musical para degustação
O texto de hoje certamente não é sobre uma lenda de amor, e sim de lendas cervejeiras . Mas, ao se falar de música e pensar na palavra “lenda”, obviamente, a primeira música que vem à mente, é a música A Lenda da (ex) dupla pop (infantil?) Sandy & Júnior .
Não julguemos a qualidade musical da recomendação, tampouco a (não) veracidade das lendas… mas eu sei que você já cantarolou o refrão meloso dessa música em algum momento da sua vida, anos atrás…
Só não sei se as lendas cervejeiras fazem sorrir ou chorar… a degustação é quem sabe!
Saúde!!
VIDEO