O salto qualitativo das cervejas Barrel Aged no mercado brasileiro

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Saudações, nobres degustadores!

Hoje, depois de quebrar a internet cervejeira com mais de 87 mil acessos em 08/12/21 (um número de acessos significativo para um singelo texto cervejeiro, nem foi dancinha no Tik Tok para ter tanta visualização…) e mais de 1K (hum mil) em compartilhamentos, sobre lendas cervejeiras (clique aqui para ler você também), vamos voltar à programação normal.

A propósito, para todos que perguntaram: não, o texto não teve impulso publicitário e não recebi um centavo para escrever.

(Por favor, vê se me contrata, UOL!)

Ou seja, hoje teremos um texto técnico, mais direcionado ao mundo da cerveja artesanal. Claro que isso não implica em um texto sisudo. Apenas indica uma variância normal entre temas, como tudo na vida.

Então, o texto de hoje vai tratar de um tema que eu julgo bastante relevante, e diria que ele foi o grande tema da cerveja artesanal brasileira em 2021: o salto qualitativo dado nas cervejas Barrel Aged nacionais.

Assim, vamos falar de qual é o benchmark internacional estabelecido no mercado cervejeiro acerca do tema em um primeiro momento. Para, posteriormente, trazer algumas gratas surpresas do mercado nacional que se seguiram no decorrer do ano.

Então, recomendo que você abra aquela cerveja que está lá, muito bem guardada, em um canto reservado de sua cervejeira para as grandes cervejas Barrel Aged e acompanhe o texto que segue!

Ícone das cervejas Barrel Aged: A Bourbon County Brand Stout

Utilizei anteriormente o termo da economia, benchmark, para definir o que é a Bourbon County Brand Stout (ou, BCBS, para os íntimos). Benchmark é o alvo, a referência. Uma ferramenta de gestão que objetiva aprimorar processos, produtos e serviços, gerando mais lucro e produtividade.

No caso, a BCBS é o alvo em termos de produção e qualidade para qualquer cerveja que seja Barrel Aged (cerveja envelhecida em barris). Ela é um verdadeiro ícone, quando se fala da produção desse tipo de cervejas mais complexas, robustas e potentes.

Certamente, ela não foi a primeira cerveja do mundo no estilo Russian Imperial Stout a envelhecer em barris que um dia contiveram o destilado americano mais famoso: Bourbon. Todavia, a maestria como o trabalho do barril é efetuado fez a sua fama crescer ano após ano, versão após versão, já que ela é lançada apenas anualmente e safrada.

Os barris utilizados variam ano a ano, por isso mesmo que a cada ano se tem uma cerveja única. Sabe-se que em alguns anos foram utilizados barris da destilaria Buffalo Trace, uma das mais bem conceituadas no segmento.

Tal fato eleva a complexidade da cerveja e deixando-a ainda mais aromática e saborosa, com as notas advindas do Bourbon. Fato esse que contribui com que sua fama e a qualidade obtida com seu envelhecimento seja uma referência para as cervejas Barrel Aged.

Subindo o sarrafo: o salto de qualidade

Claro que não foi em 2021, pela primeira vez, que foram produzidas cervejas de estilo mais extremos (Barley Wine, Russian Imperial Stout, etc.) envelhecidas em barris (que contivessem Bourbon ou outro destilado, como, por exemplo, cachaça, que também serve bastante ao propósito) no Brasil. Há alguns anos experiências nesse sentido já eram realizadas no mercado cervejeiro nacional.

Todavia, a particularidade apontada é o salto qualitativo obtido nesse ano, com muitos lançamentos que satisfizeram a máxima do nosso querido BH27 de chegar a #otopatamá. A expressão cervejeira que foi possível ser extraída do envelhecimento em barris, de fato, alcançou um novo estágio na produção nacional.

Com base nesse significante avanço, escolhi alguns exemplos para demonstrar a evolução alcançada com o trabalho de barril em alguns exemplares nacionais. Em virtude de restrições de espaço (e também didáticos e de consumação – infelizmente, não pude degustar todas elas, apenas a maioria) não haverá uma descrição pormenorizada de todas, em específico. O intuito será, portanto, trazer um panorama mais geral.

O trabalho da Spartacus: III e Areté Tomos: I e II

Inegavelmente, a cervejaria Spartacus, de Minas Gerais, vem fazendo um trabalho muito consistente e de grande diferencial dentro do mercado cervejeiro há algum tempo.

Ela ganhou muita fama e projeção com suas IPA’s, principalmente no ano passado. Todavia, arrisco-me a dizer que, o ápice de sua criatividade e de suas boas produções, somente foi alcançado esse ano com seus lançamentos de cervejas envelhecidas em barris, algo ainda não testado por eles até então.

O que há em comum entre todas elas é que são Russian Imperial Stout’s com adjuntos. Não chamaria de Pastries RIS.

Contudo, a própria Spartacus indica que elas não devam ser armazenadas por longos períodos com o intuito de envelhecer a cerveja em garrafa. Não concordo com o não envelhecimento em garrafa, mas, é esse outro debate, que foge do tema de hoje.

Então, vamos ver o que eles trouxeram de bom.

Areté Tomo I

A palavra Areté, do grego (ἀρετή), significa virtude (ou excelência)! Essa cerveja combina bem esses dois elementos etimológicos, sendo, a excelência da grande virtude do envelhecimento cervejeiro. (Tomo significa “parte” ou “volume”).

A Areté Tomo I, similarmente à BCBS, também é parcialmente envelhecida em barris oriundos da destilaria Buffalo Trace, sendo dedicados 15 meses a essa tarefa.

Além de ser blendada com mais dois resultados de envelhecimento em barricas ex-Bourbon diversas (Four Roses e Woodford Reserve Rye Whiskey), tem adição de café e baunilha.

Esse último adjunto complementa ainda mais as camadas terciárias vindas dos barris, dando um perfil levemente picante, em função do barril de whiskey de centeio usado.

Ela abriu um caminho para que a Spartacus se solidificasse como uma cervejaria também dedicada a esse tipo de cervejas mais complexas.

III (ou Three)

A III (ou Three), como o nome alude, foi feita em homenagem aos 3 anos de fundação da cervejaria. Ela também passou por barricas da Buffalo Trace e noutro, de uma destilaria americana chamada Rittenhouse, barris que continham um Rye Whiskey (destilado de centeio).

Ela possui a incorporação de vários adjuntos em sua receita, tais como Maple (xarope de Bordo), canela, avelãs e coco tostado.

Assim, além das camadas de aroma e sabor advindas do barril, muitas outras são adicionadas a partir dos elementos citados, conferindo uma complexidade, e nesse caso, também, um dulçor, maior.

Areté Tomo II

Provavelmente, a melhor cerveja nacional do ano (ainda pende certa análise comparativa). A Areté Tomo II veio trazer muita complexidade em um corpo lindamente denso e pesado.

Diferentemente das duas anteriores da Spartacus, ela não foi envelhecida em barris ex-Bourbon da Buffalo Trace. Nela, foram utilizados os barris da Weller, da Woodford e da Pikesville. Além de um trabalho primoroso de barril, ela foi enriquecida com baunilha e duas variedades de cacau, guianês e amazônico.

Um deleite para todos que gostam de uma Barrel Aged Stout!

Suas muitas camadas de aroma e de sabor combinam perfeitamente com seu corpo licoroso, pesado, negro, lembrando petróleo por sua viscosidade. Ademais, a base é sustentada por um alto teor alcoólico (15%!), fazendo com que sua degustação se prolongue por muitas horas (sem que seja necessário usar um copo Stanley).

O Avanço da Croma com Cervejas Barrel Aged

A cervejaria Croma, de São Paulo, já tinha feito alguns bons trabalhos em 2020 com suas cervejas Barrel Aged.

Em 2021, ela prosseguiu no bom caminho, inovando com o lançamento da linha How Many Bites/Blends? e repetindo um sucesso de 2020, a Ynfynyty, além da Wowl (que se difere das demais por não ser uma RIS, e sim uma Barley Wine).

A Croma conseguiu acumular boas experiências em 2020 (como a própria Ynfynyty, que data desse ano) e conseguiu se superar, colocando belos trabalhos envelhecidos em barris no ano posterior.

Nas subseções seguintes, vamos focar na Ynfynyty 2021 e na Wowl, já que ambas eu degustei e sou capaz de apresentá-las com maior propriedade.

Ynfynyty 2021: A BCBS Tupiniquim

Se um dia Greg Hall, criador da BCBS, decidisse produzir sua Opus Magnum em terras de Pindorama, o resultado mais próximo seria a Ynfinity.

Trata-se de uma Straight RIS (ou seja, sem adjuntos, tal e qual a BCBS e, portanto, diferente das cervejas faladas da Spartacus), que tem no trabalho do barril seu ponto alto, altíssimo, eu diria!

A cerveja repousou por absurdos 20 meses, em duas barricas diversas, uma ex-WoodFord Reserve e outra ex-Four Roses, para depois ser blindada e arredondada nas garrafas ceradas.

Ainda que não seja envelhecida nos barris mitológicos (no bom sentido, talkei? Eles não apertaram 17 em 2018…) da Buffalo Trace, a Ynfinyty exibe um perfil terciário de aromas e sabores muito similar à BCBS.

Dotada de uma complexidade ímpar, de um amadeirado fino, notas achocolatadas muito arredondas, bastante baunilha e aquela pegada de destilado (Bourbon) que agrada aos fãs mais exigentes do benchmark cervejeiro em termos de Barrel Aged RIS, a estupenda BCBS.

Concorre fortemente com a Areté Tomo II ao posto de melhor cerveja do ano. Essa disputa está muito acirrada, vamos conhecer a vencedora em um texto dedicado à retrospectiva do ano de 2021.

Wowl

A Wowl está incluída nessa singela lista de trabalhos excepcionais de barril no ano de 2021 por dois motivos.

Primeiramente, porque diferente de todas as demais cervejas citadas até agora, ela não é uma Russian Imperial Stout (seja com ou sem adjuntos).

Secundariamente, ela também não foi envelhecida em barris ex-Bourbon, ela foi envelhecida em barris que um dia contiveram nosso destilado nacional: a cachaça.

A combinação desses dois fatores (estilo mais barril de cachaça) já criam expectativas altíssimas sobre a cerveja Wowl.

O resultado é simplesmente magnífico. Uma cerveja complexa, com muitas notas de baunilha e canela, com um corpo mediano (o barril deu uma secada no corpo), com muitas notas de melaço, que agregam bastante a sua base bem robusta.

As notas maltadas são dotadas de muitas camadas, caramelo, calda doce, toffee são postas em muitas dimensões de aroma e de sabor, sobrelevadas ainda pelo toque que o barril de cachaça é capaz de conferir.

Uma cerveja que representa bem o estilo Barley Wine, com um ligeiro toque nacional no envelhecimento do barril utilizado.

Saideira

Não seria errado, muito menos desmerecedor de um ponto de vista imparcial, dizer que em termos gerais, de cultura cervejeira, o Brasil ainda engatinha.

Não possuímos uma escola cervejeira propriamente dita, e creio que jamais iremos ter. Todavia, o texto de hoje não é para criticar, algo que eu já faço bastante ao logo do ano, eis o meu mea culpa, e sim, para reconhecer o avanço obtido no ano de 2021 (eu sempre fico saudoso em “dezembros”…).

O salto qualitativo obtido em cervejas de alta complexidade por cervejarias brasileiras é salutar! Algo que não pode ser negado nem pelo maior dos críticos, nem pelos mais exigentes!

Claro, estamos falando de cervejas que demandam um alto investimento, mas se você parar para pensar: melhor deixar de tomar 3 latões de IPA’s chinfrins e investir em uma Barrel Aged Top das galáxias, com certeza!

Ademais, trabalhar com envelhecimentos em barris não é algo simples, exige esmero, dedicação, muito estudo, e muito afinco. Tampouco, basta ter um bom barril para se obter um resultado esplêndido. Ainda que, por muitas vezes, um ótimo barril seja capaz de salvar (ou encobrir) uma base de cerveja ruim, essa não é sua missão primordial.

Trabalhar com todos os aromas e sabores terciários (que são os advindos do envelhecimento) requer um esmero altíssimo, muita paixão pelo que se faz e o resultado vem em forma de aclamação e reconhecimento em cervejas complexas e fantásticas!

Recomendação musical para degustação

O texto de hoje inaugura uma série de textos reminiscentes. São os textos de dezembro. Os quais, de uma forma ou de outra, trazem um panorama retrospectivo.

Por causa dessa temática, a música escolhida é Dezembros, uma composição de Fagner, Zeca Baleiro e Fausto Nilo, interpretada ao vivo pelos dois primeiros monstros sagrados da MPB! Uma canção que sintetiza o mês.

Saúde!!

Que venham muitos Dezembros!


CRÉDITO DA FOTO DE CAPA: Carlos Donizete Parra

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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