Quando criança, em Nova Cruz-RN, criei um lindo cachorro de nome Lassie, presente de meus pais que o trouxeram do Recife. Ele veio em viagem de trem, pois, no passado, Nova Cruz se ligava por via férrea a Natal, a João Pessoa e a Recife.
Foram muitos avanços que o trem proporcionou à maioria das cidades do Nordeste, um progresso que, por descaso ou inépcia, deixaram definhar.
Para mim, em particular, e para meus irmãos, o trem era uma festa, não somente pelo burburinho alegre da estação de Nova Cruz, mas também pelas viagens para João Pessoa, cidade dos meus avós paternos. Ainda hoje, ressoam na minha mente o apito da máquina Maria Fumaça, a voz dos vendedores de rolete de cana e o badalar dos sinos das estações.
Mas há uma outra benesse: o trem tornou viável a vinda do Recife do meu cãozinho Lassie, talvez uma mistura de vira-lata com collie. Tinha pelos amarelo-ouro, era dócil, brincalhão e encheu de alegrias nossa casa de Nova Cruz, no meu tempo de menino.
Pouco depois de casar e de ter minha casa, tratei logo de criar um cachorro pequinês, todo pretinho, de nome Bug. Ele iniciou uma sequência de 12 cães, machos e fêmeas, que adotei e criei, sob constantes cuidados e carinhos de toda a família.
Devo dizer que sempre optei por cachorros que fossem nascidos de cruzamento de raças, melhor dizendo, que mostrassem algum sinal de origem vira-lata, pois muito me prendem a atenção esses cãezinhos tão espertos, leais e resistentes.
Ah! Houve uma exceção, uma cadela de raça pura, a mais inteligente e a mais bonita que já passou pela minha casa, onde viveu por 18 anos. De fato, ela era de raça pura, vira-lata pura, magrinha, esbelta, rápida, atenta, cor amarelo-mel, de porte médio-pequeno. Veio da praia de Pirangi do Norte, e sua mãe chamava-se Catita, uma cadela de rua muito conhecida naquela praia, ainda no tempo em que o local era calmo e sem barulho. Para evocar o nome da mãe, talvez, ela pegava qualquer catita errante que tentasse entrar em casa. Ganhava dos gatos.
Respeito todos quantos preferem criar cachorros de raça pura, bem como os profissionais que recomendam essa opção.
Hoje, fico pasmo com as histórias que escuto dos gastos e das atenções que esses bichinhos de estimação exigem de seus donos. Não são eles propriamente dito, mas as circunstâncias que envolvem a decisão de criar em casa um animal de raças tão variadas, para com ele ou com ela partilhar afeto e bem querer, prática recomendada pela psicologia.
Nos dias atuais, tenho em casa um belo exemplar de cão, talvez uma mistura de vira-lata com pastor. É robusto, tamanho médio, e atende pelo nome de Forte.
O dono dele mesmo é meu neto Gabriel, que vem sempre vê-lo, e repete uma expressão muito em voga nos dias atuais: “Vô, é guarda compartilhada”.
Fui comprar ração para Forte em uma loja do ramo. A mocinha que me atendeu perguntou qual era a raça do cachorro. Respondi: “Ele tem cerca de 10 kg, ainda é filhote, e é uma mistura, talvez de vira-lata e pastor”. A mocinha, com desdém, disse que para esse “tipo” não tinha ração. Pedi para falar, então, com alguém que entendesse de cachorro, e não só de raças. Perdoei a ingênua mocinha, e o rapaz que veio atender – já veio rindo – foi atencioso e me ajudou na escolha do produto certo.
que essa mulher permaneça em mi vida
como o sol permanece em certas manhãs de inverno
…….
que venha naquele andar vaginal
que se alonga na música antiga
e faz estancar a vida
…….
…….
“Oração de certas manhã de inverno”
in Porra de Poemas
Ruben G Nunes
Não sei quem são vocês Elas-de-mi-vida. Até hoje não sei direito. Anjas? Demônias? Deusas?… anjasdemôniasdeusas?
Quem são vocês mujeres de mi vida?
Filhas de Gea? Sim, certamente filhas de Gea – a misteriosa deusa mítica que segundo Hesíodo, o grande poeta épico grego, em sua Teogonia, séc. VIII aC, foi dela que surgiu a energia da VidaViva ordenada, e todos nós.
Existimos todos graças à vaginaça parideira de Gea.
Pois antes só existia o Cáos,, esse NadaInfinito, essa energia, morgadona, sem eira, nem beira, sem identidade, nem entidade, impessoal. Essa energia estranha, bagunçada que nem bolsa de mulher.
Quem sabe não seria o Cáos, em ente-não-ente. Talvez um trans-trans? Talvez um malandro cósmico?
Ou então um traficante de sonhos, pura energia-vagabunda, eternamente dançando a macabra Dança da SolidãoInfinita?
E depois, dançando a Dança da Vida, com Gea, sua outro-outra, misteriosamente surgida dele mesmo, do Cáos, um ser-sem-ser?
Cáos e Gea… como os bíblicos Adão e Eva, sem umbigos…
Gea, a deusa inaugural-vaginal. Entidade de misterioso passado sem História. Primeiríssima entidade, fêmea-parideira, sem pai, nem mãe. Simplesmente surgida do Cáos, sem quê nem pra quê.
“No princípio era o Cáos, depois Gea de amplos seios…
… em seguida Eros que excele entre os deuses imortais…”
Teogonia, Hesíodo
Quem sabe seja Gea uma cigana cósmica, sem origem como os ciganos, que se dizem surgidos das Estrelas e, deste então, estão nas estradas, djobidjobando sua Dança da Vida?
Eis que a própria deusa Gea, já surge crivada de mistérios e bagunçarias. Como surgiu? Como fez surgir – solita, solita, nas burakeras infinitas – o resto das gerações, i.é, nós? Como engravidou só, único ente, na solidão cósmica?
Que self-preliminares? Que self-curruchios? Masturbation? Partenogênese? E depois? Incestos? Chifres? Bolo de japona?
Qual o papel de Eros, o deusinho-sacaninha do Amor, com suas flechadas aleatórias? Ou foi – e é – tudo-todos um bunga-bunga cósmico daporra, defenestrado da divina-misteriosa-xana de Gea? Uma espécie de doideira histórica.
Sei lá, meu rei… esse é o eterno mistério dos buracos vivos…
Sei que cada Ela-de-mi-vida tem um nome único, um jeito de ser único, um toque de amor único, que… usch!… vai ficar tudinho cravado-forever, aqui, nesse coração-vagueba de velho-marujo de sangue cigano.
Talvez vocês, Elas-de-mi-vida, sejam imagens de gaivotas esvoaçantes, lentiriscando bolhas de sonhos, sobre esse mar-imenso-profundo, chamado Amor, que manso ou brabo, mas inescapável, vai-e-vem na Prainha do Coração de cada um. E é sempre-sempre “perigoso demais”, como canta o mago Djavan.
Sejam vocês talvez folhas de outono esvoando emoções antigas, em sua esplêndida leveza ferrugem-dourada.
Sejam talvez uma música colorindo as dobras do tempo. Um talvez bolero indançado nas noites só-nossas. Talvez sejam vocês só corações abertos e partidos, de espanto e saudade, junto com o meu.
Quem são vocês, Elas-de-mi-vida? Que tão de repente se instalaram de mala e cuia em mim, cada uma com um choque de zentsvolts-d’amores?
E que, através dos sentires e lembrares estão aqui comigo, na Prainha do Coração. Para sempre… forever… foreverzinho… como eternos e silentes portos seguros, onde fundeio meus navios piratas, vez em quando… vez em quando…
Mas, quem são vocês afinal, mujeres de mi vida?????? Que sei de vocês?
Diz aí Riobaldo-velho, de Guimarães Rosa! Diz aí que a gente não sabe de nada das mulhas!
Arranca de minha lembrança teu tranquilão papo socrático de sábio sertanejo velho-de-guerra – e que li no Grande Sertão:Veredas: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”.
Pois é, princesas. Desconfio que vocês vieram das quebradas cármicas-cósmicas, lá depois das estrelas-perdidas-e-achadas, lá pela quina oeste do universo, lá no zúltimo bar dos subúrbios do Infinitaço, bem depois… porrilhão de anos-luz depois… muito depois do AlecrimTotal e da divisa da Av.8 com as Quintas Profundas-e-Tenebrosas, Natal/RN, Brasil-Esquina.
Também desconfio que, ou de repente ou sem repente, ou na convivência ou na desconvivência, ou à primeira vista ou à segunda vista ou de bandinha ou de frentinha, vieram cada uma a seu tempo certo.
Mas que diabo é “tempo certo”, meu jovem?
Por vezes, o Tempo dá uns rodopios, estica-encolhe num nó-de-Elas. Daí nos enreda nas magias perigosas dum tempo “certo-incerto”. Tempos embaralhadas no mesmo tempo.
Um enrôsco de sintonias tranversais. Um nó-de-nós dos diabos. Encrencalhada pura.
É mole? Nenão-sinhora! Pra ninguno. E repito: pra ninguno! Tem que coçar as cabeças e dar um jeitinho de paz e “bolar” um organograma dos enroscos.
A gente quer mais é a SantaPaz de xanas, xifres, bengas e corações, nesse vasto condomínio de amorâncias e desejâncias travadas e destravadas, desde que Gea pariu todos os “nós-de-nós” que é a Vida.
Mas qual a saída quando o tal do “tempo certo” de cada pas-de-deux, corcoveia, desanda, e estrambelha tudo?
Qual a saída do torvelinho, ou romântico ou só-erótico, do outro da outra do outro da outra do outro da outra… que nos envolve desde as cavernas?
Quem manda-des-manda no tempo curruchiado do coração, minha senhora?
Esse danadinho aplicativo-pulsante, num tic-tac de Eros traquinas, erótico-romântico, que nos move vida afora, puxado a sonhos, emoções e trapalhadas.
Esse ente sacaninha, tiquetaqueando autônomo, que nem um Banco Central controlando dentro-fora de nós os juros e juras dos amores-perdidos-e-achados. Num jogo de pago-pra-ver, de quero-mais, e de forever-and-ever.
Tempo certo…
Má-qui-porra-é, afinal, o tal do “tempo certo” de cada um com cada um? O “tempo certo” de amar na zorra social humana? Um amor de cada vez… um amor de cada vez… com hora e dose marcada que nem bula de remédio…
Que diferença faz?
Desconfio que seja o tempo certo do coração de cada um, manas.
Desconfio, minhas-amigas-mais-que-amigas, que é o tempo certo que bate num velho coração-marujo, navegador a miúdo de porto a porto, dos sete mares, bares, luas, esquinas, motéis… e sonhos…
“We are such stuff as dreams are made on.” (“Somos da mesma substância que os sonhos.”) é o que diz o mago Próspero, na obra-prima The Tempest, de Shakespeare.
Trama onde se misturam todos os instintos sonháticos humanos – leves e pesados, voadores e andadores, de liberdade e libertinagem, de força e poder, de animalidades e espiritualidades, d’amores e desamores… espichando-se-chocando, como nuvens, chovendo chuva fina ou chovendo tempestades.
Afinal somos, todos e cada um, simples erráticos humanos zanzando pelas esquinas do Tempo, Destino, Amores, Paixões;.
O coração é feito de bolhas de sonhos… desse mix shakespeariano de ser-não-ser Cáos e Gea, tempestades e ternuras, ritmias e arritmias, amordesamor… mix que move a flutuante leveza dos sonhos fazendo pulsar mais rápido o coração…
O coração é feito de bolhas de sonhos… e como reprimir sonhos?
Como reprimir em qualquer tempoespaçoenrosco certo-incerto as bolhas de sonhos que são vocês Elas-de-mí-Vida…
… vamos, vamos amar, sonhar, dançar, vidaviver… vamos Djobi Djoba…
O guitarrista Carlos Santana descreve a única música que ocupa todo o lado b do disco Bitches Brew, lançado em 1969 pelo trompetista americano Miles Davis, dizendo que é possível ouvir o trompete de Davis ecoando pelos prédios de Nova York às 3 da manhã, como se a cidade formasse um “imenso cânion de edifícios”. Essa cena poética descrita por Santana dá as dimensões não apenas do que é a música de Miles Davis, mas também o que é a ideia imensa que se esconde por trás das cidades.
Andar pelas ruas de um lugar é como ouvir Bitches Brew, seja em Nova York, São Paulo, Natal, Currais Novos ou Santa Cruz. Fotografar essas cidades é sempre a esperança de fazer ecoar o trompete de Davis através de imagens que o olho do fotógrafo vê e sua câmera tenta tornar perene. Claro que essa é sempre uma tentativa frustrada, afinal aquelas notas iniciais do sopro de Miles se sobrepondo ao som do prato de Lenny White não podem ser repetidas por ninguém, em nenhuma expressão artística.
Bitches Brew é uma utopia de 26 minutos, tocada em sua maior parte de improviso, que ecoa por todas as cidades do mundo, inclusive pelas que fotografo. E, como utopia, seu papel não é encontrar um lugar, mas provar que outros lugares são possíveis. Por isso, cada cena cotidiana, inesperada tem a chance de acontecer como as notas alongadas do trompete improvável que tira a cidade de seu sono.
Perdi a conta de quantas vezes saí para fotografar cidades ouvindo Bitches Brew e, mesmo sabendo que nunca repetirei Miles Davis numa fotografia, gosto de sincronizar os passos, os movimentos, os desenhos e temas de quem fotografo entre uma nota e outra, entre respiros e penso que as cenas mais comuns das cidades sempre ecoarão em meus olhos às 3 da manhã de uma madrugada qualquer, como esta em que escolho fotos e arranjo estas palavras.
O Portal Cultura Natal foi criado para abrigar playlists de artistas das mais variadas vertentes culturais de Natal. A ideia é montar um mosaico da arte natalense em uma mesma mídia.
O canal, recém criado pelo produtor cultural André Maia, já possui sete playlists (cinema potiguar, webséries potiguar, instrumental natal, teatro natal, palhaço natal, clássicos natalenses e pop natal) e 70 vídeos disponibilizados.
Para participar, basta o artista enviar o link do seu vídeo já postado no youtube ao email portalculturanatal@gmail.com. Não é o arquivo do vídeo, pois o objetivo é que a visualização do material seja contabilizada para o canal do artista.
“O Portal Cultura Natal é um repositório para divulgação. Um veículo onde o internauta pode encontrar uma variedade de artistas e segmentos culturais. Tudo gratuito e com monetização revertida ao próprio artista”, explicou André Maia.
A ideia do canal partiu de discussão travada no grupo de whatsapp Cultura RN. Vários membros criticaram uma convocatória da Prefeitura de Natal para artistas divulgarem seus trabalhos no canal da própria Prefeitura.
Artistas cederiam todos os direitos autorais e o produto audiovisual pertenceria à Prefeitura, como um canal de divulgação em tempos de quarentena. Uma desvalorização à obra artística e seus autores.
Embora tenha idealizado o Portal Cultura Natal como alternativa à ação municipal, o produtor André Maia se prontificou a ajudar a Secretaria de Cultura de Natal a modernizar o conteúdo da convocatória, mas não obteve êxito, segundo afirma.
“Mas as portas estão abertas ao diálogo para construção de uma cultura mais inclusiva e participativa junto aos artistas”, conclui o produtor. Uma live está programada para logo mais às 22h no instagram de André (@andremaialima) para tirar dúvidas sobre o novo portal de cultura de Natal.
E nosso canal Papo Cultura TV fará parte da lista de canais do portal, que irá disponibilizar, em breve, outros canais de cultura do Estado.
Um vídeo de apresentação foi montado com alguns artistas potiguares, editado pela produtora audiovisual Babi Baralho a partir de texto do ator Rodrigo Bico. A identidade visual do portal é assinada por Filipe Marcus, também de forma colaborativa.
Sabe aquela famosa canção de Beto Guedes que alerta: “Quando eu falava/ Dessas cores mórbidas/ Quando eu falava/ Desses homens sórdidos/ Quando eu falava/ Deste temporal/ Você não escutou…”
Não foram poucas as recomendações para Regina Duarte manter sua imagem de “namoradinha do Brasil”. Mas sem qualquer experiência na máquina pública, resolveu se enamorar do presidente. E foi traída.
Até tentou a imparcialidade. Assim me parece. Encaixar projetos de gêneros e quetais, sem privilégios a partidos. Mas encarou a sordidez e o pensamento conservador em cada porta que bateu.
Foram pouco mais de dois meses praticamente conhecendo a pasta, se ambientando em uma cova de leões da esquerda tradicionais e novos capirotos da direita. E a imagem de uma entrevista atabalhoada.
Segundo disse Bolsonaro ao G1, a atriz assumirá a Cinemateca, em São Paulo, “para continuar contribuindo com o Governo e a Cultura Brasileira”. Que pelo menos dessa vez Regina Duarte assuma o pulso da viúva Porcina.
Foto: Andre Borges/NurPhoto via Getty Images
As expectativas raramente são benéficas quando se trata de cinema. Há sempre que se deixar levar por uma obra para que ela tenha a oportunidade de provar seu valor. O cinema de gênero vem exatamente ao encontro das expectativas, abraçando-as com carinho. Isso porque o funcionamento interno de um filme que venha a se encaixar nessa definição é uma leitura específica do seu gênero. Tais filmes criam suas próprias galáxias, mas sempre dentro de um universo corajoso, este que enfrenta as expectativas.
Pensando nisso, preparamos uma lista com alguns dos melhores filmes de ficção científica disponíveis no streaming do Telecine. A ideia é que a lista funcione para muitos gostos diferentes, tanto para assistir quanto para reassistir. Os filmes citados e brevemente resenhados mais abaixo são somente indicações. Porque toda a apreciação depende de questões subjetivas do imaginário e, claro, do gosto pessoal (até por isso a lista é bem diversa).
Sem mais demora e, como sempre, dentro de uma abordagem sem verdades absolutas, vamos à lista de 10 dos melhores filmes de ficção científica disponíveis no streaming do Telecine (em ordem alfabética e desconsiderando os artigos):
Entrou na lista de filmes cults e não poderia deixar de entrar nesta. 2001: Uma Odisseia no Espaço influenciou praticamente tudo do gênero que veio na sequência. Então, indicar o filme que, talvez, seja uma das maiores obras-primas do cinema é mais fácil do que escrever sobre ele.
A sinopse oficial simples (bem simplificada mesmo) diz: “Depois de descobrir um artefato misterioso enterrado sob a superfície lunar, a humanidade parte em uma busca de suas origens com a ajuda do supercomputador HAL”.
Aeon Flux pode não ser um filmaço, mas talvez precise de uma apreciação um tanto quanto descompromissada para embarcar na história de uma assassina misteriosa (interpretada por Charlize Theron) que trabalha para um grupo de rebeldes que tenta derrubar o governo. Pode ter uma avaliação bem negativa da crítica especializada em geral, mas, por outro lado, tem algum potencial para divertir e ser redescoberto.
Entrou na lista a título de curiosidade… e é um filme bem curioso – para o próprio bem ou para próprio mal.
Bumblebee é, sem dúvida alguma, um filme de roteiro simples, talvez requentado e até clichê, mas cheio de intenções sinceras, que se posiciona a léguas de distância dos cinco que fizeram a pentalogia antecessora – especialmente em seus propósitos. A proporção é a mesma às vezes, mas invertida: se em Transformers (2007) e em Transformers: A Vingança dos Derrotados (2009) Michael Bay (de Esquadrão 6, 2019) explora o corpo de Megan Fox (e nos seguintes os de Rosie Huntington-Whiteley e Nicola Peltz), aqui a direção de Travis Knight parece responder, recobrindo Hailee Steinfeld com um respeito absoluto.
Entrou na lista porque Bumblebee (o robô) é a dama de honra de um blockbuster que traz a década de 1980 para bem perto do público, mas que entende o seu tempo, a sua voz e que é a sua vez.
Confiante, libertina, ultraviolenta e com atitude (muita!), a direção de Pete Travis sabia que a sua fonte não foi escrita para crianças (apesar de algumas lerem) e, portanto, criou um filme para quem consegue enfrentar alguns instantes brutais. Uma história de crise, decadência, tribos, rituais, sangue e verdade.
A história é centrada em uma cidade futurista distópica onde a polícia tem autoridade para agir como juiz, júri e carrasco. E é uma readaptação: o primeiro filme, protagonizado por Sylvester Stallone (também no streaming do Telecine com o título nacional O Juiz) passou bem morno por público e crítica, talvez pela necessidade de Stallone mostrar o rosto. Mas aqui, em Dredd (no original e como está no catálogo), é tudo isso sem precisar tirar o capacete. E é insano.
Um clássico da ficção científica direto da década de 1970, Os Invasores de Corpos tem como protagonista Donald Sutherland e conta ainda com o até hoje quase onipresente em filmes do gênero Jeff Goldblum. Na história, várias pessoas começam a agir estranho, a ponto de Matthew Bennell (Sutherland) chegar a conclusões surreais. A direção é de Philip Kaufman, que, mais tarde, dirigiria o excelente A Insustentável Leveza do Ser (de 1988).
A atuação de Scarlett Johansson, os efeitos visuais e as cenas de ação são, de fato, pontos fortes de Lucy. Mas, apesar de o filme ter recebido críticas às vezes bem pesadas sobre suas inverdades, a questão é que, no final das contas, trata-se de um filme. Como tal, Luc Besson (de O Quinto Elemento, de 1997), que escreveu e dirigiu, usou toda a sua liberdade para criar um universo possível enquanto cinema, independente de fatos da realidade. O universo próprio de Lucy, a construção de Besson para que o conjunto funcione e a utilização da ciência muito mais como um suporte para a ficção do que como uma aliada de peso igual, faz do filme algo único, autoral.
A sinopse diz: Ameaçada, Lucy (Scarlett Johansson) aceita trabalhar como mula para a máfia chinesa, transportando drogas dentro do seu estômago. Mas, quando o seu corpo acaba absorvendo as drogas, ela ganha poderes sobre-humanos, incluindo a telecinesia, a ausência de dor e a capacidade de adquirir conhecimento infinito.
Provavelmente, é o filme com mais fãs fervorosos da lista. Matrix vale assistir independente do gosto pelo gênero. E reassistir também é algo que, a cada vez, tem poder de fazer novas revelações. A trama segue Neo (Keanu Reaves) um homem que aprende com rebeldes misteriosos sobre a verdadeira natureza de sua realidade e seu papel na guerra contra seus controladores. Mas nenhuma sinopse, curta ou longa, substitui a experiência de assistir ao filme. Um filmaço de um ano que marcou o cinema para sempre.
Entrou como bônus mudo na lista de filmes cults, mas não poderia deixar de estar aqui, sendo a mãe e o pai das ficções científicas.
Em uma cidade futurista fortemente dividida entre a classe trabalhadora e os planejadores da cidade, uma profecia que prediz a vinda de um salvador para mediar as diferenças é entrecortada por uma paixão.
Metrópolis é uma das maiores obras-primas da história do cinema, influenciando a ficção científica para sempre e elevando o cinema mudo ao seu máximo. Fritz Lang, diretor do filme, ainda tem Os Conquistadores (que não é da era do cinema mudo) no catálogo do streaming do Telecine.
Três amigos ganham superpoderes após fazer uma descoberta incrível no subsolo. Logo, suas vidas passam a estar fora de controle e, aos poucos, despertam lados sombrios da existência.
Produzido como um falso documentário, o filme de John Trank é uma fábula que flerta com o terror sobre amizade e destino e sobre a influência das nossas decisões tanto para um mundo particular quanto para todos que nos cercam.
Poder sem Limites ainda conta com Michael B. Jordan (o Erik Killmonger de Pantera Negra) sendo apresentado em grande escala como um dos protagonistas do filme.
A versão mais recente dirigida pelo brasileiro José Padilha (que também consta no catálogo do streaming do Telecine) até consegue trazer algum frescor à história, mas, perto desse clássico da ação e ficção científica capitaneado por Paul Verhoeven, tudo pode parecer sem peso.
No futuro, a cidade de Detroit é dominada pelo crime. Quando Murphy, o melhor policial da corporação, é assassinado, ele é revivido e transformado em uma mistura de máquina e homem a serviço da justiça: o RoboCop.
Agora, ficam aí os comentários para que, em um momento tão delicado, possamos trocar indicações e ir criando uma corrente de filmes cada vez maior. Tenho certeza que vocês podem complementar e enriquecer tudo. Vamos conversando, debatendo…
Este texto foi publicado originalmente no Canaltech
pelos rios da Vida navegamos, véi… através correntezas, jacarés, serpentes, tartarugas, piranhas, mutretas e barganhas… enquanto um estranho coronapolítico, enloucados olhos, sorriso irônico, voz esganiçada, circula pelas multidões, abraçando o povão, pegando mãos aqui-ali… e ponto final…
tamufu, meu velho camarada, tamufu!…
o Grande Mar da Vida nos espera… maré picada, tempestades… e só temos uma chalana furada… há louqueira política de todo lado pra cima de nós, cumpadi… nós… animais políticos sim, como diz voinho Aristóteles, mas também somos human’amantes sim… e também desfilósofos sim… eleitores sim… nós seres de carneossoenergia sim… mas vaidosos de nossas próprias merdas… e caminhamos na Vida ao lado da Morte o tempo todo… somos zumbis de nós mesmos…
seja como for a vida rala, rola e desenrola, se esparrama pelas esquinas das cidades, por entre os brilhos das estrelas, por entreolhares d’amantes, por entre as pernas das doidinhas afim, por entre o voo de gaivotas… e lá longe e cá dentro, no infinito de cada um, rola sempre um som… sacumé véi… a musiquinha dos momentos… temposdestinosaudades… sempre serão movidos por trilha sonora… cada um tem suas músicas… ouça velho, ouça as músicas da vida, que acalenta, enleva, engancha corações…
todavia, de nossa finitude politiqueira vem um batuque escracho, atravessando nossos sonhos processos e projetos…
tamufu, meu velho camarada, tamufu!…
rala e rola a Vida pelas bordas-sem-bordas desse Infinitaço sem sentido que nos atravessa e onde vidamorremos… de repente, sem que nem pra que, um olho fechado outro aberto, o mago Arabatasha – gênio dos profundos silêncios do Infinito e dos barulhentos panelaços da rapaziada – lança sobre nosso planeta a maldição do coronaporra…
daí lança porrilhões de viróticos e humanóticos vírus, invisíveis, cavernosos, canibais, medíocres, politicalhos, populistas… tudo bicho ruim, magovéi!…
sursum corda, manos!… corações ao alto!… Pixa e empixa!… vamos à luta pela Vida e contra o coronaporra, manos!
ali e alá, em todas as esquinas, a multidão s’enrosca, s’engata, incha e s’aglomera… a multidão quer apertar a demagógica mão do coronaporra...
A multidão abraça o coronaporra que abraça a multidão que abraça o coronaporra que… abraça a morte. Infecção geral. Zorra total.
Arabatasha sorri e ri do fumacê… respinga irresponsas vaidades ideopatas nas salivas, nos espirros, nos sorrisos e máscaras… alguém grita pelos malditos 600 reais… palmas e risos nas sacadas dos condomínios, panelaços batendo… um bundalelê daporra, negovéio…
o rio da Vida ralaroladesenrola… caminhamos nosso caminho… todavia, nessa quarentena doméstica, um horrorismo nos olha da TV. São os zôios embagulhados do Ministro da Pandemia… olhos de coronavírus chapado, o dele… tá viajando… parece movido a tapas e barrufos… ministro sinistro, sô!
“Foi nos bailes da vida ou num bar
Em troca de pão
que muita gente boa pôs o pé na profissão
De tocar um instrumento e de cantar
Não importando se quem pagou quis ouvir!
Foi assim!”
(“Bailes da Vida” – Fernando Brant/Milton Nascimento)
Um saxofone ecoa ante aos condomínios e casas natalenses em ruas que neste momento deveriam estar desertas, mas que ainda assistem automóveis e pessoas circulando, apesar do grave perigo da Covid 19.
Os tempos se tornaram nebulosos para aquele que sobrevive da arte. Mas um jovem músico decidiu trabalhar pelas vias da capital, atirando melodias às janelas e sacadas onde vivem pessoas em quarentena. Soprando das calçadas emoção aos corações confinados.
Joedson Regis da Silva, 29 anos, foi ao mundo para ganhar o sustento da família diante da interrupção das apresentações que realizava em hotéis, casamentos, recepções e festas particulares a partir dos contratos da sua empresa musical.
Natural do município de Cruzeta, Seridó, região berço de grandes instrumentistas, desde cedo aprendeu os caminhos da música a partir da formação nas bandas filarmônicas, percorrido no curso técnico, na graduação em bacharelado em saxofone e na licenciatura em Música pela UFRN.
Vieram posteriormente os grupos musicais que integrou como profissional e a ideia de montar um negócio artístico que manteve ativo até o início deste ano.
A partir de março os compromissos estagnaram, incluindo as aulas que o instrumentista dava a seus alunos.
“Tive que ficar em casa sobrevivendo apenas das economias tiradas de cachês anteriores”, conta. Situação agravada pelo trabalho da esposa Alana, fisioterapeuta que viu diminuir o atendimento aos seus pacientes.
No início do período de isolamento social surgiu um solitário convite para que o músico tocasse no aniversário de filho de uma cliente diante do prédio em que a família mora. “Fiz uns vídeos para o meu instagram e as pessoas começaram a me elogiar”, relembra.
O saxofonista decidiu homenagear amigos e clientes que reconheciam seu talento e que sempre o contratavam. “Escolhi pessoas próximas e levei meu sax sem nenhum compromisso para a frente dos apartamentos, tocando canções que eles gostam como “Como é Grande o Meu Amor por Você”, “Eu sei que vou te amar”, “Ave Maria”, “Yesterday”, entre outras.
Para a surpresa do músico, o que se iniciou como uma simples lembrança aos amigos logo se transformou em sucessivos convites para que ele tocasse em vários locais. Só que agora seria distante do público, em frente a apartamentos e casas, devido as recomendações de isolamento social.
“As pessoas em quarentena adoraram e começaram a me chamar e a me indicar para amigos e familiares desde então”, explica.
Durante a pandemia, Joedson e seu sax já realizaram perto de cem apresentações por quase todos os bairros de Natal, incluindo municípios próximos como Macaíba e Parnamirim, por cachês em média de R$ 100 para tocar em torno de dez canções.
“Mas muitas pessoas se sensibilizam e colocam algum valor no meu ‘chapéu’, fazem transferência bancária e até dão cestas básicas. Já recebi ajuda até de mercadinhos que trazem alimentos quando estou tocando perto deles.”
Apesar do caráter profissional, o saxofonista relata que nesse período já fez algumas apresentações gratuitas. “Muitas vezes há pessoas que não têm condições de pagar o cachê, mas mesmo assim eu vou lá para levar a minha música, sabendo que serão portas abertas ao meu trabalho”.
O repertório, vasto e eclético, inclui clássicos do cancioneiro brasileiro de autores como Luiz Gonzaga, Pixinguinha, Waldir Azevedo,Tom Jobim,além de peças de compositores estrangeiros como Maurice Ravel, Louis Armstrong e Lennon & McCartney.
Joedson se emociona quando percebe o efeito que sua música causa nas pessoas neste momento de pandemia. Foi o caso de um aniversário em que foi contratado para tocar:
“Pedi a todas as pessoas que estavam nas janelas dos apartamentos que cantassem parabéns para aquela senhora e ela, bastante emocionada, me disse que foi a melhor homenagem da sua vida. Em um momento como este que estamos vivendo me tocou muito uma pessoa declarar que a minha música lhe causou um grande momento da sua existência”, reflete.
Seu saxofone toca sem poder adentrar os lares, mantendo sempre a distância necessária, mas o suficiente para que as melodias cheguem às plateias agora confinadas. O músico é consciente dos perigos do contagio e se preserva para não entrar nas estatísticas da infecção.
“Eu tomo todos os cuidados necessários: tenho álcool gel e três máscaras feitas pelas minha mãe e uma outra que eu desenvolvi para poder tocar”, descreveu.
Nestes duríssimos tempos em que são vitais os atos pela sobrevivência humana, Joedson Silva manda uma força acalentadora e poderosa a uma gente que agora vive reclusa a esperar dias melhores: a arte.
E renova os versos de Milton Nascimento e Fernando Brant de que “todo artista deve ir aonde o povo está. Se for assim, assim será!”
Contato: (84) 99116 8603
Instagram:joedsonsilvasax
Pelo menos oito artistas da cidade lançaram músicas no último mês e apostam em um conteúdo educativo e transformador
A cultura hip-hop em Mossoró está em constante crescimento. Alguns artistas novatos somam-se a outros já veteranos na cena e, com isso, são lançadas várias músicas e clipes na cidade.
Ao contrário de uma tendência mainstream e voltada para industrialização que acompanha essa cultura a nível global, os artistas de Mossoró têm apostado nas raízes do movimento.
O hip-hop surgiu na década de 1970 no bairro do Bronx, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, local que vivia momento de grande crise social e constantes casos de violência.
O movimento surgiu com o tema “Paz, Amor, União e Diversão” colocando as disputas entre grupos apenas para o campo artístico, reconfigurando o bairro e promovendo rap, grafite, break dance, com festas promovidas pelos DJ´s, os criadores da cena.
Em Mossoró, uma das cidades mais violentas do Brasil, os rappers locais também buscam contrapor as estatísticas sociais e promover a união, levando reflexões às pessoas da periferia de que o crime não compensa.
“Respeito muito os princípios dessa cultura. Procuro mostrar que o crime, a violência e as rixas não são caminhos para nós. Temos que acreditar nos elementos fundacionais do hip-hop. O meu intuito é educar através do rap”, disse Prisma MC, artista selecionado para realizar uma live promovida pelo Sindicato dos Profissionais de Educação (Sinte/RN), com data ainda não definida.
Além dos clipes e músicas, os artistas de Mossoró também participaram do desafios Barras Maning Arretadas, em que foram desafiados a rimarem em um mesmo instrumental, com rimas improvisadas ou pré-produzidas.
O desafio chegou a 10 países e o artista Caboco foi um dos selecionados para apresentar um dos instrumentais. Na batida produzida por ele, foi colocado o tema “Como ajudar alguém?”.
Bebéquera MC
– Em seu primeiro clipe, denominado “Saudade Ficou”, Bebéquera MC faz uma mensagem direta na luta contra a criminalidade, apontando a educação como a solução: “Mais escola pra ensinar pro menor que bala mata e crime não compensa”.
Prisma MC
– Com um histórico de bullying sofrido, Prisma MC aposta em mensagens motivacionais como caminho para que as pessoas sigam acreditando em seus sonhos: “Disseram que tem que ter calma pra se aprender a viver, que o foco te faz ter respeito para assim sonhar e fazer tudo que você quis um dia”, disse na música Objetive 2, que tem parceria com Anderson Gabriel.
Cabocla de Jurema
– Eva Rocha, a Cabocla de Jurema, é uma artista que compõe o grupo Soul Negra e tem produções em vários gêneros musicais dentro da cultura negra, como soul, reggae e projetos de percussão.
Ela fez a estreia no rap com a música “Guerreira de Dandara”, que enfatiza o combate ao racismo e ao machismo: “Canto a voz dos meus irmãos, canto a voz das minhas irmãs. E ainda vejo a escravidão no racismo estruturado. É, nós vai derrubar, é. Não vou aceitar, não vou aturar. Não vou suportar, não vou silenciar. Minha arma é minha luta, luto pela minha vida. Aqui quem fala pra tú é uma preta feminista”.
Caboco
– O rapper Caboco atua como produtor cultural, beatmaker (criador de instrumentais de rap), rapper e dançarino. Na música “O Século do Ego”, ele foca sobre a prioridade dada ao tempo em nossas ações: “O tempo é uma escolha e eu acho que o tempo está correndo”.
Comedor de Camarão
– Comedor de Camarão lançou um EP com quatro músicas chamado de Resistência, em que realiza críticas ao racismo e à política mossoroense. Na música Mossoró 40 graus, ele faz um trocadilho entre a alta temperatura da cidade e a passividade do povo, acostumado a se calar diante das dificuldades: “Mossoró 40 graus, a gente é acostumado ao calor (calou), mas a realidade despertador (desperta a dor).
@vittopoeta e Jongozú
– @vittopoeta e Jongozú lançaram o EP “AfroPotyguar” com sete músicas. Uma delas é a música ‘Maracatu de Camarão’, em que Jongo afirma “Eu serei resistência” e faz referências ao legado da cultura negra, linkando a cidade de Areia Branca, no Rio Grande do Norte à Luanda, capital de Angola.
Enquanto isso, @vittopoeta afirma que a sua música é uma mistura entre a cultura potiguar e o hip-hop, fazendo uma interação única dessa identidade: “Eu vim do mato do Rio Grande do Norte, fazendo maracatu, embolada com hip-hop. Mando a rima rasteira, capoeira na levada. Comprei macaxeira na feira pra vender na estrada”.
A idolatria é a superação individual do fanatismo. A necessidade de transferir para o ídolo todas as frustrações, deficiências e carências. E nessa transferência, o idólatra se purga. É uma catarse de purificação. Um passeio pelo purgatório.
É do nosso tempo? Não, não. É de todos os tempos. A idolatria sustenta o déspota, e o iconoclasta quebra o mito. Quando esse fenômeno, conhecido de tempos da incultura mais vertical, da mais brutal dominação das mentes, seja nos templos do paganismo ou nos mosteiros cristãos, na violência mais inominável da intolerância, da cobrança que exige a abolição do pensamento livre ou individual, aí você vai encontrar a idolatria nas suas mais variadas formas. E quem se opuser será o iconoclasta a ser expurgado.
Exemplificar enfraquece a força abstrata do pensamento filosófico. Por isso, em respeito a este texto, não exemplifico. Taí o Brasil.
Se escrever uma lista já é uma tarefa pessoal e quase que totalmente subjetiva, taxar se um filme é subestimado eleva esse sintoma. Na verdade, superestimar ou subestimar algo é muito abstrato. Essas colocações acabam criando uma noção de verdades absolutas, quando não passam de ponderações pessoais e particulares, que dependem exclusivamente de quem as escreve.
Por outro lado, há filmes que passam realmente despercebidos – seja pela crítica, seja pelo público –, permanecem em alguma espécie de limbo ou são inferiorizados em sua época e ganham corpo com o passar dos anos. Alguns ficam, justamente, esperando para serem descobertos ou para terem o reconhecimento merecido.
Lembrando que o que é subestimado para mim pode não ser para você; o que é bom para mim, pode ser ruim para você. Não há regras. E a lista não é de filmes taxativamente excepcionais. Escolhi 10 filmes do catálogo do streaming do Telecine que merecem uma luz, um novo olhar, um carinho a mais.
Sem mais demora e dentro dessa abordagem subjetiva, sem verdades absolutas e muito pessoal, vamos à lista de 10 dos filmes mais subestimados para assistir no streaming do Telecine.
O primeiro filme da lista é um dos que mais passaram despercebidos nos últimos anos. Nele, uma mulher depressiva e traumatizada interpretada por Jennifer Aniston fica obcecada pela história do suicídio de uma colega. Claire (Aniston), após alguns acontecimentos, decide investigar a vida de Nina (a colega, que é interpretada por Anna Kendrick).
Por mais que a direção de Daniel Barnz, do também subestimado A Luta por um Ideal (de 2010), seja sensível e muito consciente em sua abordagem – procurando não ser expositiva demais nos planos e, ao mesmo tempo, construindo uma relação muito próxima com a protagonista –, o destaque maior é Aniston. A atriz acaba se entregando ao drama de uma forma tão competente e crua que dificilmente deixará ligação entre Claire e a Rachel da sitcom Friends.
Cake: Uma Razão para Viver merece uma visita de peito aberto, deixando-se levar pela experiência de um filme que está disposto a ser muito recíproco nessa entrega.
Cheio de metáforas e subtextos, Horton e o Mundo dos Quem! Trata da história de um elefante (o Horton) que luta para proteger uma comunidade microscópica que se recusa a acreditar que ele existe.
Deixando muito visível a linha que divide a percepção infantil da adulta – podendo ficar muito clara a aventura com intenção de fazer graça para as crianças e, ao mesmo tempo, as sutilezas interpretativas mais profundas a serem compreendidas –, cada minuto dessa animação baseada em uma obra de Dr. Seuss pode passar sem qualquer esforço.
É uma pena que, em seu ano de lançamento, tenha sido engolido pelo também ótimo Kung Fu Panda e pela obra-prima WALL·E.
Histórias reais, especialmente de desastre, são sempre complicadas de se contar. Se parte do público já sabe o final, o filme nasce sabendo que praticamente tudo que for exibido já terá existido algum tipo de spoiler. A questão então, precisa ser a forma e não para o conteúdo.
O Impossível não só é um filme subestimado como é dirigido por um dos diretores mais subestimados de sua geração. O espanhol J.A. Bayona (de Jurassic World: Reino Ameaçado) impõe profundidade aos seus personagens desde o início, quando fundamenta com planos quase aconchegantes a família protagonista. A ação que se inicia devido ao tsunami é conduzida com uma visão muito próxima, quase sufocante, e o trabalho com o elenco mirim – inclusive com o adolescente Tom Holland – é muito acima da média.
Panos Cosmatos e Casper Kelly, diretores de Mandy: Sede de Vingança, não se perdem em suas referências e transformam tudo ao seu estilo, criando uma espécie de terror exploitation põem. Cheio de referências, o filme ainda remete a outros clássicos do gênero, como Uma Noite Alucinante 2 (de Sam Raimi, 1987), O Massacre da Serra-Elétrica 2 (de Tobe Hooper, 1986), Raça das Trevas (de Barker, 1990) e, especialmente em sua morte final, Sexta-Feira 13, Parte 3 (de Steve Miner, 1982).
Se, no final das contas, trata-se de terror em sua camada mais visível, a verdade é que o filme é um romance dos mais sensíveis. Psicodélico talvez, mas cheio de verdade e de uma competência técnica exuberante. É um clássico-cult instantâneo.
Na história, a vida encantada de um casal é brutalmente destruída por um culto hippie. A partir de então, inicia-se uma onda vingativa surreal de Red (Nicolas Cage) contra adoradores, motoqueiros demoníacos e seu líder Jeremiah (Linus Roache).
Se Hollywood tem tantos filmes com zumbis celebrados (e séries), A Noite Devorou o Mundo é um exemplar que carrega toda a identidade do cinema francês para o subgênero. Com mais respiros do que o normal para um filme de terror, o filme de Dominique Rocher é uma pérola para os amantes dos dois mundos: tem toda a proximidade e linguagem francesa e, ao mesmo tempo, o melhor do terror pós-apocalíptico.
Talvez tenha passado despercebido pela falta de abertura que se tem, aqui, para a comercialização de filmes mais diferentes e sem o apelo comercial hollywoodiano, mas a história de um jovem que acorda após uma festa e encontra Paris invadida por zumbis pode valer muito a pena e merecer ter sobrevida.
Operação Overlord diverte sem ter pretensões de ser grandioso. Perceber essa ausência de pretensão faz com que qualquer arte seja vista com outros olhos. E é esse olhar, justamente, que torna os verdadeiros filmes B (aqueles das décadas de 1930 e 1940) tão cultuados hoje e tão importantes para se entender o cinema em um contexto histórico.
É provável que, em pouco tempo, Operação Overlord seja esquecido (talvez já tenha sido por muita gente), mas ele deixa mais uma sementinha plantada: nem sempre o cinema precisa ter um mundo de conteúdos para ser relevante; nem sempre o cinema precisa ter uma importância social exuberante; nem sempre o cinema precisa ser cabeça, culto e enraizado em conceitos filosóficos. Cinema é arte e, por mais que a arte não tenha a obrigação de entreter, ela pode entreter. Operação Overlord é o cinema (a arte, portanto) em uma pura, divertida e louca procura por entretenimento.
O Quarto do Pânico é um dos filmes menos lembrados de David Fincher e, ao mesmo tempo, um dos que ele trabalha com mais intensidade a relação entre duas personagens… porque ambas estão trancadas em uma espécie de bunker que dá título ao filme. Fincher, então, trabalha com uma precisão cirúrgica na construção e manutenção da tensão, utilizando planos detalhes à la Hitchcock e um ritmo intenso, apesar de extremamente cadenciado. Toda a habilidade do diretor, já demonstrada antes, por exemplo, em Seven: Os Sete Crimes Capitais e Clube da Luta, fica restrita a um ambiente fechado, prestes a implodir.
Para completar, as protagonistas são interpretadas por Jodie Foster e por Kristen Stewart bem no início de carreira e o roteiro é de David Koepp, que deu luz a Missão: Impossível, Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros, Homem-Aranha…
Um filmaço.
Rio Grande não é somente subestimado. É um filme que foi renegado em seu tempo dirigido por um dos maiores diretores da história do cinema (John Ford). Ford, à época, recebeu um obituário artístico pelo filme, sendo taxado de mumificado, preso ao passado.
A verdade é que o filme é um faroeste clássico que finaliza a Trilogia da Cavalaria sem deixar sua força cair e que prova uma questão: Não existe a necessidade de inovação em uma arte se aquilo que você faz é feito com perfeição.
A história acompanha um oficial da cavalaria que deve lidar com um ataque assassino, com seu filho e com sua esposa – de quem ele está separado há muitos anos.
Talvez não seja exatamente subestimado. É um filme cultuado. A questão é que a força com que o cinema atual é imposto acaba ofuscando obras-primas como essa, que ficam taxadas de antigas ou algo do tipo.
Se Meu Apartamento Falasse é a mãe e o pai das comédias românticas, um filme dirigido com todo o talento do lendário Billy Wilder e protagonizado por um dos atores mais incríveis que já passaram pelo mundo: Jack Lemmon.
Na história, um homem que tenta se destacar em sua empresa deixa executivos utilizarem seu apartamento para encontros… o resto só assistindo. Mas, de todo modo, o que vale aqui é como Wilder conduz tudo e não o que acontece. É uma aula de direção.
Esse pode ter passado totalmente despercebido pela maioria. É um filme bem diferente: um musical pop original sobre seis estranhos que ficam presos no metrô de Nova York e, ali mesmo, compartilham suas vidas de maneiras inesperadas.
Para quem gosta de musicais, é dos mais interessantes que surgiram e ficaram no limbo da existência.
Agora, ficam aí os comentários. Foi difícil fazer uma lista tão subjetiva, mas tenho certeza que vocês podem complementar e enriquecer tudo. Vamos conversando, debatendo… E, de repente, aumentando a lista.
Texto originalmente publicado no Canaltech
O tempo parou, não porque os relógios tenham tramando em conspiração de não mais mexer seus ponteiros, mas por consequência do cessar dos movimentos frenéticos das cidades, do vai e vem dos automóveis, das idas e vindas aos shoppings e às academias. Como que a um retiro forçado, fomos enviados para casa para proteger a si mesmos e aos outros da entrada do invisível invasor, o covid-19, nos nossos corpos. Desde então, a realidade como a conhecemos foi interrompida e neste contexto, nos restou exclusivamente estar face-a-face com a inescapável incerteza de como se configurará o futuro quando tudo passar.
Neste tempo de suspensão, do fundo de si desafios vieram à tona: começamos a ser visitados por angústias, ansiedades, depressões, raiva… enfim, tantos sentimentos comuns ao luto por, de repente, ter perdido o senso de controle da realidade e o sentido de orientação. Além disso, os problemas se multiplicaram e se agravaram para os menos privilegiados devido à necessidade de sobreviver em meio às dificuldades sanitárias e de escassez financeira. Insistentemente, a crise continua a se alastrar com seus tentáculos e prematuramente já somos convidados a deixar o nosso casulo apesar de tudo indicar que o recolhimento ainda é preciso.
Não é de hoje que uma mudança profunda de estilo de vida se faz necessária. Se formos honestos consigo mesmos, perceberemos que o mundo há muito está doente. Com uma ganância desenfreada e uma compulsão por produção e consumo, nós nos tornamos, em muitos aspectos, os vilões da Terra e temos intoxicado o planeta com nosso desejo desenfreado por bens e por excessos de conforto.
Além disso, não temos sido muito hábeis em dividir o nosso espaço, a nossa casa terrestre, e criamos um sistema de cohabitação humana gerador de mazelas sociais e procriador de injustiças e violências. Há longa data que as crises globais intensificam seus clamores por melhores maneiras de lidar com outras formas de vida, com a poluição, com o excesso de plástico e lixo, com a distribuição de renda e com as nossas diferenças no geral.
Mas eis que de repente e por um momento ainda indeterminado, os motores das máquinas pararam… e no silêncio das ruas podemos ouvir os pássaros antes abafados por buzinas e burburinhos humanos. No habitar deste silêncio, eis que se apresenta a oportunidade de refletir sobre a realidade na qual desejamos habitar de agora por diante.
Gostaríamos de recomeçar a engrenagem social recriando a mesma existência anterior, ou escolheremos reinventar, reimaginar uma nova realidade mais harmônica e de caráter desconhecido? E dentre deste contexto, cabem várias perguntas de natureza similar: ao fim desta crise, aceleraremos ainda mais os aparatos econômicos nos apressando ainda mais em busca do dinheiro e da “prosperidade” numa corrida desenfreada pelo tempo perdido? Ou honraremos a morte de tantos em favor de uma possível nova humanidade menos consumista, mais equalitária e mais respeitosa com as formas de vida? Continuaremos aumentando o desnivelamento de grupos sociais onde uns têm mais oportunidades e privilégios do que outros? Continuaremos nosso caminho de autodestruição poluindo e sufocando ainda mais a natureza e assim aumentando a temperatura climática planetária?
Em vidas agitadas de compromissos e aparentes propósitos, adrenalizados pela correria do dia-a-dia em busca do pão, de prestígio e do sucesso, o mais difícil é parar, pois já nos acostumamos demasiadamente a correr e a seguir a mesma direção, pelo simples fato da rota nos ser familiar.
Porém cabe lembrar que parar, nós já paramos – o que significa que o primeiro obstáculo já foi vencido. E neste cenário inusitado, agora então, o que se apresenta diante de nós?
Presentemente, o grande desafio se passa no íntimo de cada um em se permitir uma reflexão sobre seus valores e a importância das suas ações para o todo. O mundo é um reflexo do que somos, se mudarmos o mundo mudará. E neste momento, o local de controle é sobre si. Se quisermos mudar o mundo, comecemos em nós mesmos, e deixemos que esta mudança se irradie pelas escolhas e ações das nossas vidas: seja pela forma como escolhemos candidatos políticos, seja pelas causas que abraçamos, seja pela forma como tratamos as diferenças, seja pelo grau de consciência em escolhemos consumir, seja pela escolha em interagir com compaixão no nosso pequeno círculo. Cada ação conta.
Precisamos criar um novo mundo, certamente. Para isso precisamos nos aprofundar, nos conhecer, estar com nossos conflitos, escutar nossos valores, e assim descobrir o que realmente importa para nós.
No embate com os desejos egóicos (do melhor para mim, do consumismo e seus prazeres) muitas vezes permitimos que a voz do coração permaneça abafada por tantos desejos de natureza egoísta e até mesmo, descaradamente fingimos não ouvir a voz do bom senso.
A crise sanitária, provocada pelo coronavirus, e tantas outras crises globais, incluindo a climática, parecem nos relembrar que precisamos urgentemente cuidar do nosso elo com a vida.
O grande desafio é tornar realidade os desejos mais profundos e elevados dos nossos corações. Para isso é preciso escutar atentamente os anseios profundos. Para isso, é preciso resolver a matemática interior: no findar das contas, quem é você e quais são seus valores?
E com esta perspectiva em mente, que pequeno passo podemos dar para uma vida que reflita o mais profundo de si e assim contribuir para uma nova realidade coletiva. Se assim o fizermos mesmo que em mínimas doses, teremos honrado esta oportunidade que nos foi dada para nos reinventar e recriar nossa convivência mútua e nosso impacto no planeta.
Porém, para tudo isso precisamos de tempo. No momento, e por enquanto ainda temos tempo.
Uma nuvem cinzenta ainda encobre os quase 25 anos do regime ditatorial brasileiro. Corrupção nos quartéis. Corpos desaparecidos. Wladimir Herzog… O livro A Pátria Não é Ninguém, do escritor François Silvestre joga luzes nos escuros bastidores desses tempos nefastos a partir de uma visão apartidária, anarquista e deliciosamente real. Um livro para os dias de hoje.
A obra teve a segunda edição lançada pela editora mossoroense Sarau das Letras. São 358 páginas conduzidas pelo narrador personagem Paulo Inácio.
Paulo é um interiorano que, já na capital Recife para cursar o científico, se envolve no movimento estudantil de resistência à ditadura. Daí para um assalto a banco em São Paulo e um mergulho na clandestinidade e em toda a atmosfera cultural e ditatorial que cercou os anos 60 e 70 no Brasil.
Quem conhece a história e, principalmente, o pensamento e a intelectualidade de François Silvestre enxerga em Paulo Inácio uma espécie de alter ego do autor.
François vivenciou muitos dos lugares e situações tratadas no livro, considerado por críticos um dos melhores romances já publicados no Rio Grande do Norte.
Bom, não serei eu a contradizer o próprio autor. Em diversas passagens do livro, François questiona essa categorização. Na página 126, por exemplo, ele (Paulo Inácio), diz: “Nem que eu quisesse, os críticos iriam permitir que esse relato fosse chamado de romance”.
E, claro, também está longe de uma autobiografia. (spoiler a seguir) O autor, por exemplo, nunca foi torturado, por mais minuciosamente descrita a tortura no livro.
Também fica evidente que Paulo Inácio funciona mais como um Forrest Gump dos quadrantes da ditadura e também do pensamento anárquico-ideológico de François.
O título da obra escancara isso. François nega a pátria ao movimento estudantil, à clandestinidade, à esquerda trotskista, marxista, stalinista… E muito menos à polícia política.
A Pátria, não sendo ninguém, é de todos. É anárquica. Do homem sem partido. Da mulher trabalhadora. Do brasileiro que um dia Cascudo disse ser a melhor coisa deste país corrupto (o “país corrupto” ponha na minha conta).
E François impõe uma narrativa anarquista em toda a trama. Seja estereotipando a esquerda. Seja condenando a direita. Ou tirando um sarro elegante a todo tipo de organização, seja partidária, militar ou religiosa.
Para traçar todo o panorama da época e das ideias do autor, o forrest Paulo Inácio assalta o Banco Nacional, conversa com Jango, assiste o nascer das igrejas evangélicas e do Comando Vermelho, é torturado, se encontra com Lamarca…
Todos os personagens reais cabíveis em um livro ambientado nos anos de chumbo estão lá: Dom Helder Câmara, Geraldo Vandré, os presidentes da época, Marighella…
Tudo com mesclas de história, tensão e até humor, com ótimas tiradas do personagem Valdomiro, um funcionário aposentado, religioso, meio conservadorzão. Os papos no Bar do Ramón, um boteco que reunia jornalistas, artistas… as madrugadas no Redondo…
E também muita teoria filosófica típica de François. E aí vem uma das duas únicas críticas que faço ao livro. E são críticas que não diminuem um centavo do valor da obra.
Pensem comigo: Paulo Inácio é um interiorano que vai estudar o científico no Recife e logo cai no movimento estudantil e na clandestinidade. Em São Paulo, trabalha em subempregos.
No entanto ele possui um conhecimento histórico e filosófico muito acima da média para um personagem com essa trajetória, esse currículo. Nada impossível, também. O próprio François é natural de Martins, interior potiguar. Salvo engano estudou em Recife, também participou do movimento estudantil…
Mas é formado em Direito e Jornalismo. É um leitor voraz de filósofos, como Ortega Y Gasset, para citar um. Tem um conhecimento que a própria idade lapidou e um jovem como Paulo Inácio dificilmente o teria. Será que o próprio Fraçois, na idade de Paulo Inácio, seria capaz de escrever um livro como esse?
Minha segunda observação são algumas passagens que nada contribuem para o caminhar da trama. Por outro lado, são histórias tão deliciosas, que em vez de crítica são bônus ao livro.
As páginas que trazem Nhô Quinquin, um exímio contador de estórias de trancoso, como se diz no interior, são deleites. E tudo bem, esses quase contos à parte, são inseridos em capítulos intitulados “interseções”, como se estivessem mesmo fora do contexto, mas há interseções inseridas na trama e outras, maravilhosamente fora.
A Pátria Não é Ninguém é François Silvestre, o jornalista, o boêmio, o pensador, o anarquista. É também um livro obrigatório aos tempos de hoje, de um Brasil bestamente antagônico, maniqueísta. A Pátria não é Ninguém é um livro direcionado ao povo. Aliás, povo? Bom, termino com um trecho do livro, que resume a filosofia da obra, de sua necessidade e de sua ideologia:
“Diferentemente de povo, multidão existe. Povo, não. Povo não existe, é uma abstração. Povo não é formado por pessoas, mas pelo discurso e retórica do poder. Povo é uma artimanha da demagogia. Até nos textos filosóficos a palavra povo agasalha-se em manta esfarrapada, lençol roto.
O mesmo não acontece com a multidão. Ela empolga quem a mobiliza e assusta a quem se opõe. A multidão é real, mas não é abstração. E também é diferente de massa. A massa se junta pela curiosidade, é passiva. A multidão se forma pela opinião, é opinativa. Mas é, por isso mesmo, soma de deficiências. Por ser real, sensível e humana, a multidão oscila entre a beleza e a fragilidade. Ela tem o caráter dos seus componentes, numa mistura heterogênea e desmontável. Mas é real e assusta. Mas é bela e empolga. Mas é viva e morre.”
(Paulo Inácio, alter ego de François Silvestre)
O Rio Grande do Norte tem uma dívida de gratidão para com uma de suas mais ilustres filhas, a cantora Ademilde Fonseca. Decorridos cerca de sete anos do seu falecimento, não se registrou nenhuma homenagem significativa à sua memória, nem sequer um nome de rua lhe foi dado. Lamentável omissão.
Ainda bem que o seu nome não ficou totalmente esquecido. Em 2015, a pesquisadora Leide Câmara publicou, pela 8 editora, em parceria com o Selo Cultural Caravela, “Ademilde Fonseca – A potiguar no choro brasileiro”, livro bem documentado, em que aborda aspectos da vida e da obra dessa que é considerada, por muitos, a maior das cantoras que o Rio Grande do Norte já doou ao Brasil.
Ademilde Ferreira Fonseca nasceu na localidade Pirituba, município de Macaíba, a 4 de março de 1921. Ainda criança veio para Natal, onde sua família fixou residência; aqui se casou e daqui se lançou no mundo musical. Uma de suas primeiras apresentações ao público deu-se através da famosa rede de amplificadoras de Luiz Romão, com sede no bairro da Ribeira.
Mudando-se, com a família, para o Rio de Janeiro, então capital da República, Ademilde tornou-se, ao longo das décadas de 40 e 50, uma das mais prestigiosas cantoras brasileiras. É verdade que não chegou a ter a fama de uma Emilinha Borba ou de uma Dalva de Oliveira, tampouco mereceu o prestigio junto à crítica, que desfrutava Elizeth Cardoso, por exemplo.
No entanto, nada ficava a dever a estas, como cantora dotada de extraordinários dotes vocais. Seu repertório, sempre de alta qualidade, contribuiu, sem dúvidas, para o sucesso que obteve. Ademilde quando cantava, deixava-se possuir pela música. Era da estirpe de Carmem Miranda: natural, espontânea, vibrante.
Dona de estilo especialíssimo, foi uma das primeiras senão a primeira intérprete do choro cantado. A seu respeito, Herminio Bello de Carvalho, autoridade em matéria de MPB, afirma:
“Rainha inconteste de um gênero predominantemente instrumental, ela se impôs através dos anos como intérprete, única e inigualável. Afinação irrepreensível, articulação precisa, senso rítmico incomum e timbre inconfundível” (Nota na contracapa do Lp “A Rainha Ademilde e seus Chorões Maravilhosos”).
Note-se que as interpretações de Ademilde eram valorizadas, quase sempre, por excelente acompanhamento orquestral, do qual faziam parte verdadeiros ases do choro.
Dentre os sucessos da Rainha do Choro destacam-se “Tico-tico no Fubá” (Zequinha de Abreu\ Eurico Barreiros), “Apanhei-te Cavaquinho” ( Ernesto Nazareth\ Darci de Oliveira\ Benedito Lacerda), “Brasileirinho” ( Waldir Azevedo\ Pereira da Costa), “Delicado” ( Waldir Azevedo\ Ari Vieira), “Galo Garnizé” ( Miguel Lima\ Antonio Almeida\ Luiz Gonzaga), “Pinicadinho” (Jararaca e Ratinho\ Severino Rangel), “Meu Cariri” (Rosil Cavalcanti\ Dilu Melo).
Embora tenha se notabilizado com chorinhos, polcas e baiões, como estes, também soube afirmar-se em composições nada trepidantes, tipo “Doce Melodia” (Abel Ferreira\ Luiz Antonio), “Sonoroso” (K-Chimbinho\ Del Loro) e outras de viés romântico ou sentimental.
Entre parêntesis, diga-se que o autor da melodia do choro citado por último, K-Chimbinho (pseudônimo de Sebastião Barros) é norte-rio-grandense, natural de Taipu, figura de primeira plana na história do choro, não só compositor, mas também instrumentista.
Referindo-se ao itinerário artístico da Rainha do Choro, Leide Câmara observa, com justeza:
“O fato de ser respeitada como mestra do chorinho, por um lado ajudou, e por outro, prejudicou a carreira da cantora, pois com ‘a decadência’ do choro, ela passou alguns anos no esquecimento” (Dicionário da Música no Rio Grande do Norte, 2001).
Em meado da década de 70, Ademilde voltou à crista da onda com a ressurgência do chorinho. E em plena forma. Recebeu várias homenagens, entre as quais destaque-se o chorinho ‘Títulos de Nobreza’ (João Bosco\ Aldir Blanc), cuja letra, citando os nomes de choros famosos, termina por declinar, como que em apoteose, “Ademilde no Choro”.
A convite do Governador Cortez Pereira, Admilde, já com 53 anos de idade, mas ainda no fio, apresentou-se em Natal, 1975, dentro do evento “Reencontro”, que reuniu vários artistas norte-rio-grandenses, de projeção nacional: cantores, músicos e compositores. Brilhou, como sempre.
Em 1977, lançou o Lp “A Rainha Ademilde e Seus Chorões Maravilhosos”, pela gravadora Copacabana, em parceria com o Museu da Imagem e do Som (RJ). Ótimo disco, esse. Foi o seu canto de cisne. Daí em diante somente apareceu em coletâneas musicais, e fez alguns shows, Brasil afora.
Ademilde faleceu no Rio de Janeiro, a 27 de março de 2012, com 91 anos de idade. Um dia antes apresentara-se num programa televisivo, no Rio, ao lado de sua filha Eymar Fonseca, também cantora.
É de babar! Meu mano-velho Enoch Domingos, de mais de 30 anos de boa amizade, músico, escritor, poeta, pintor, especialista nos mistérios de criar o belo, me envia um vídeo com uma dessas coroas de fechar comércios, Bolsas e Commoditties.
Tem que fechar tudo, velhão. Tem que baixar MedidaProvisória de feriadão em homenagem às SuperBarangas. Quarentena geral!
Ô corôa boa, sô! De uma boazura carnespiritual! Tanto que cutucou bregas bagas poeteiras desse velho desfilósofo nerudiano:
bela
velha
mulha
que mistérios escondes
nas tuas ancas nuas?
Mas pera lá!
A mensagem lá embaixo vem com um aviso moral caretóide: “discrição ao abrir”.
Como assim discrição ao abrir, cumpadi Enoch?
A “ôa-boa” nem nua está.
Tá de blusa, calcinha, colarzão, piercing no biguinho, sandalinha, cabelão pentecostal.
E mais a marca branquinha de fio dental cobrindo “suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.”, como escrevia Mestre Caminha em sua célebre Carta sobre o fashion-look das indiazinhas.
Quer dizer, tudo nos conformes da moral natural, desde o Descobrimento do Brasil. A portuguesada sabia da coisas. Ancas são ancas.
Sem essa de “discrição ao abrir”. Discrição o escambau, véi!
Abertura total! Não há nada de pornô nessa belezura maturada de mais de 50 anos.
Mas tem sempre a pseudomoralia que vem e diz:
“Mas as crianças! As crianças!”
As crianças? As crianças?
As crianças são diariamente encharcadas em suas libidos infantis pelos programas pôrno-apelativos das Tvs abertas e do mundo digital.
Aquela enxurrada de BBBs se esfregando, de Panicats sapudas, de bundas, melancias, abóboras, morango, dançando o kuduro, etc.
Ora, a criançada já está a cada dia sendo conscientizada na marra, pelos admiráveis avanços tecnológicos da TV e do mundo digital.
Cujos programas e aplicativos, para além de qualquer moralia teórica engessada, trazem em si a prática de abertura total e irrestrita: “indiscrição ao abrir”. E sempre trazem um mundo novo.
O mundo está em eterno trabalho de parto, mizifio. Desde as primitivas cópulas das cavernas, Tempo, História e relações sociais estão sempre em trabalho de parto. Gestando o novo com antigos espermas, sementes, culturas, contradições e absurdos.
Mas não é isso a Vida? Vida sustentando a Vida.
Para além da pornográfica Libertinagem de sites de nudez e sexo, não haverá a dignidade da Liberdade humana, em seu trabalho diuturno de superação de si e de autorenascer?
É preciso, pois, um papo franco e cuidadoso, com a criançada, sobre as diferenças, as contradições – sobre os absurdos – que movem a vida humana.
Lembro as eternas palavras do velho Camus, em “O Mito de Sísifo”, 1942: “Viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver é, antes de tudo, encará-lo”.
Daí então é que não precisa mesmo da tal “discrição ao abrir” as belas imagens do vídeo que mostra uma ainda sedutora mulher madura. Essa mulha cinquentona precisa ser vista em toda sua pujança, cujança e vulvança!!!
Há certas belezas naturais, mesmo velhuscas, que precisam ser focadas primeiro com os olhos d’alma.
Depois, mas só nos depois, vem os amassos. Osso no osso. Enquanto as gaivotas drapejam desejos.
Há nelas, nas belezas maturadas e envelhadas, uma nudez moral-imoral curtida na experiência de vida. Que nos enleva pelo sentimento do belo, das rugas e dos longos cabelos brancos ao vento.
A “moçavéia” do vídeo de Enoch abre suas indiscrições num corposorriso que ilumina romantismos, vadiagens, burakeras e pecados subjacentes.
Se liga, mago-véio, nela o Tempo estancou admirado!
Arteviva, mano! Ato de dignificação da idade.
Até penso que a corôa-boa do vídeo ainda está num padrão muito certinho de super-mulha.
Explico: há também “ôas-boas” cheias de lindas ruguinhas sensuais e camadas de pneus pra lá de fascinantes em suas dobras misteriosas. E até fatais…
Ora, pois, gajo!.. é preciso ter olhos encharcados de imaginação pra sentir a belezura daquelas fartas carnaduras esculpidas nas estrias dos tempos.
Como diria compadre Lavoisier, na natura nada se perde, tudo se transforma… e se come. Ou quase tudo.
Vai cinquentaça-velha-de-guerra!
Abre discrições e indiscrições!
Abre ancas e pelancas!
Abre tudo!
Mostra os mistérios, mostra os enganchos, mostra os xabadás sexi-enrugados das “ôas boas”!!!
Mais, ein!?
FOTO de capa: Damon Dahlen/Huffington Post
O que faço é tentar pintar com palavras as
minhas fantasias diante do assombro que é a vida.
Rubem Alves
Rosycleide é dessas mulheres que exalam sensualidade. E seu trabalho exige que ela seja assim, que exiba seu corpo e desperte o desejo dos que pagam caro para desfrutar de algumas horas de prazer.
É bem verdade que alguns pagam, também, somente para vê-la se exibindo e receber alguns carinhos, digamos assim. Foi o caso de um homem com disfunção erétil, mas que não resistiu aos apelos da rapariga mais cortejada do cabaré de Beth Cuscuz.
Outros, mais exigentes e endinheirados, pagam por um final de semana com a moça em outra cidade, longe dos olhares curiosos que poderiam, por exemplo, abominar um ménage à trois.
É o caso de um certo governador que vai a Teresina conferir de perto os dotes dessa mulher sedutora que tem enlouquecido os homens das redondezas e propõe à dona do cabaré um final de semana com Rosycleide por uma nota alta (detalhe: a esposa dele vai junto). A cafetina faz um certo charme no começo porque sabe que o negócio será lucrativo. O trajeto é feito de helicóptero, na calada da noite, para evitar mexericos.
A história de Rosycleide, cujo nome de batismo é Geralda, começa em Acari, no interior do Rio Grande do Norte. De origem pobre, filha única de uma viúva, ainda menina começa a exibir seu corpo para os moleques da cidade. As exibições geralmente acontecem nas paredes do açude Itans. Em troca, pede feijão, arroz, farinha… Não queria ver a mãe passando necessidade e essa foi a única maneira que encontrou de poder ajudá-la.
Já adolescente, difamada entre os moleques do lugar, foi defendida por Dagoberto, o rapaz mais rico da cidade, filho do dono da farmácia e do armazém e estudante de odontologia na capital. O episódio me fez lembrar Geni, personagem da canção-crônica “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque.
Essa é uma das muitas histórias do romance A vingança (Z Editora, 2018), de Antônio Melo, que estreou na literatura de forma auspiciosa, no dizer do seu amigo e também jornalista Osair Vasconcelos, que assina as orelhas e é responsável pelo selo de publicação da obra.
As histórias são ambientadas no sertão da Paraíba, no Ceará, no Piauí, no Maranhão e no Rio Grande do Norte, lá pelos idos da década de 1970. Tempos de seca, coronelismo, ditadura, pistolagem, machismo… Impossível ficar indiferente às histórias de Chico, Dudé, Rosycleide, Valentão e tantos outros personagens que compõem a narrativa ágil e assombrosa de “A vingança”.
São mais de 300 páginas de aventuras e desventuras pelos rincões de um Nordeste castigado pela seca e vítima dos mandos e desmandos de políticos corruptos que pregam um progresso enganoso, em nome de muitos privilégios e da manutenção dos seus currais eleitorais, sustentados, sobretudo, pela miséria e ignorância do povo.
Gente que é enganada de diversas maneiras. Gente que muitas vezes enxerga seus patrões como “homens bons”, e até como “homens santos”, porque estes lhes “concedem” terra para plantar, um pouco da farinha que produzem ali, alguns litros de leite, tudo à custa de muita exploração. Gente que é devota de Padre Cícero, São José, Santa Rita de Cássia, Santa Luzia, devoção que os mantém esperançosos de que dias melhores virão, mesmo que nunca cheguem.
Jornalista experiente e observador arguto, Antônio Melo assina um texto enxuto, objetivo, privilegiando os diálogos e abrindo mão de longas descrições de cenários, ambientes e personagens. “Poupei-me de descrever a região: acho que Euclides da Cunha e Graciliano Ramos roubaram-me a ideia que eu já tinha, antes mesmo de ter nascido”, diz o autor, na contracapa do livro, dando mais uma prova de sua originalidade e ousadia.
Aliás, acho que alguns personagens são muito bem caracterizados tanto pelas descrições certeiras do autor como pelos diálogos sem meias-palavras, tão característicos do povo nordestino, uma gente espontânea, acolhedora, resiliente…
Talvez uma máxima de Rousseau possa sintetizar a essência desses personagens, tão calejados pelo sofrimento da seca e pelas injustiças sociais: “o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe”. Ou, quem sabe, estivesse com a razão o filósofo francês Jean-Paul Sartre quando afirmou que “o homem não é nada mais do que ele faz de si mesmo”.
A ideia inicial era escrever um livro de contos, que acabou se transformando nesse romance baseado “em verdades que viraram ficção”, como ele mesmo define a obra na dedicatória do exemplar com que me presenteou durante o trabalho de revisão do seu segundo romance, que está no prelo. A personagem central ganhou tamanha força que ele não teve outra opção a não ser não escrever um romance. Mistérios do mundo da ficção…
E por falar em protagonista, algo que me chamou atenção nos personagens é que eles não se encaixam em certos padrões e não podem ser descritos/compreendidos sob um único ponto de vista. A ausência de uma visão maniqueísta, como tantas vezes observamos na literatura, nos aproxima mais dos personagens (e de suas idiossincrasias) e nos faz compreender melhor os caminhos que decidem(?) percorrer ao longo da narrativa. Afinal, como diz Drummond, “todo ser humano é um estranho ímpar”.
Para Chico Mendonça, escritor e jornalista, que assina o prefácio da obra, Antônio Melo apresenta “[…] não uma visão romântica, mas um olhar afetuoso sobre as pessoas e, portanto, revelador de suas essências. Seus personagens, pelo mesmo viés, ganham vida, vida real”.
Coincidentemente, também observei isso no seu “Diário das folhas mortas”, que traz personagens cheios de conflitos/dilemas, mas certos de que precisam lutar pelos seus ideais, independentemente do julgamento alheio.
“Antônio Melo gosta de gente porque olha para elas e as aceita como são, não exige aperfeiçoamentos para caberem no seu afeto, no seu olhar”, arremata Chico.
Talvez o segredo seja o que ensina o poeta Manoel de Barros: dá “respeito às coisas desimportantes / e aos seres desimportantes”. Afinal, como diz o poeta mato-grossense, no seu “Tratado geral das grandezas do ínfimo”, poderoso não é aquele que descobre ouro, mas aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Há mais de quinze dias estamos em quarentena. Não saberia dizer ao certo quantos dias são, mas os suponho mais de quinze e menos de dez mil. Precisar o número de dias em tempos assim não é das tarefas mais simples. Fato é que há mais de duas semanas não ando pelas ruas nem saio de casa para o trabalho ou vejo as pessoas de meu convívio fora de casa.
Estar entre estas paredes sempre foi um de meus desejos mais constantes: entregar-me por dias inteiros ao dolce far niente, à ociosidade dos dias, agrupar as horas pela vontade de comer ou dormir. No entanto, estar-me obrigado à casa, confinado entre a sala e a varanda dá o componente de aflição que não esperava para meu retiro.
Imaginei que seriam dias para ler, escrever, ver filmes e ouvir os discos que eu tanto esperava. Cheguei a acreditar que poria a andar a fila de livros que esperavam por dias mais livres já havia tanto. Listei obras de toda uma vida de diversos diretores e atores para minhas sessões de cinema. E, passados mais de quinze dias, os livros ainda esperam em fila, os discos seguem em silêncio e os filmes dormem sob efeito de remédios. Os livros que pensei em escrever são agora menos livros do que eram antes, porque nem ideias são mais.
Nada tem andado nestes tempos de quarentena. O teletrabalho ainda organiza um tanto de minha rotina, mas o cumpro desorganizadamente e mesmo as horas de sono espalham-se pelos dias e fogem das noites com frequência. A quarentena não nos silencia, mas entope a garganta de uma angústia que – em mim, neste momento – ainda não serve para coisa alguma.
Ao contrário. Chego a me arrepender, por exemplo, dos livros que li. Imagino que se tivesse me atido a quatro ou cinco títulos – algo entre Borges, Cervantes, Machado de Assis e Gide – e os tivesse relido inúmeras vezes a ponto de citá-los de cor e dizer em que páginas estavam marcados estes ou aqueles pensamentos, relendo-os sem precisar abri-los outra vez, talvez me angustiasse menos agora. Não sentiria a necessidade de ler algo pela primeira vez e repassaria, de memória, as façanhas de Brás Cubas enquanto mantenho fixos os olhos à janela. A urgência seria menor. A angústia seria menor. E a sensação de que o tempo segue inutilmente não me traria comoções.
Mais uma vez volto a desejar jamais ter escrito uma única linha. Cogito não ter escrito como uma saída à ansiedade: satisfazer-me com os livros muito mais bem feitos por outros. Usar um verso de Borges para dizer o que sinto em lugar de tentar escrever um verso meu, que serve muito mais aos outros que a mim. Se nunca tivesse escrito em meio à correria dos dias, nos pequenos intervalos em que tudo é morto menos o verso, eu não pensaria em escrever agora – como o faço nesta croniqueta, que de quase nada serve.
A verdade é que esta quarentena nos dá tanto a dizer, mas não deixa que muito seja dito.
Trata-se da segunda edição refundida do primeiro livro do autor – “Saudades”, 2005 – com um novo e sugestivo título.
Memorialista experiente, Francisco Rodrigues da Costa (Chico de Neco Carteiro, como gosta de ser chamado) parte mais uma vez em busca do seu tempo de menino e adolescente na cidade de Areia Branca, a amada terra de nascença. Figuras do seu convívio e fatos, que o marcaram, revivem na prosa simples, despojada, boa de se ler.
Este livro vem se somar a cinco outros do mesmo autor, compondo uma das obras memorialísticas mais importantes já surgidas em solo potiguar, digna de alinhar-se junto a outras duas igualmente notáveis, do gênero: “Viva Getúlio – As Areias Brancas da Memória”, de Francisco Fausto Paula de Medeiros e “Rastros nas Areias Brancas”, de José Nicodemos.
Reflexão, poesia, ficção, humor, tudo isto de forma fragmentária, numa linguagem sutil, plena de metáforas – eis, em suma, o conteúdo desse “caderno”, misto de diário íntimo e jornal literário. Um livro para se ler e reler.
Atente o leitor, de modo especial, para os vaticínios, presentes não só no espaço que lhes é dado, mas também dispersos em toda a obra. Veja-se, por exemplo:
“Deus e a solidão”: Se o universo é só uma matéria pedregosa e a vida, um privilégio da Terra, então Deus corre um grande risco de se tornar supérfluo se não se apressar a replicar a Terra, planeta agonizante, em outras partes do universo. De que valeria que Deus existisse num universo sem vida? Sua solidão seria de tal modo previsível e insuportável como nem um deus a suportaria”.
Médico, escritor nas horas vagas, o autor reuniu nesse livro 40 crônicas de sua autoria sobre música popular brasileira, já publicadas na revista “Papangu”, exceto uma que saiu na Revista do Instituto Cultural do Oeste Potiguar.
O subtítulo dessa coletânea – “Conversa de Música” – deixa entrever o tom descontraído da prosa, que enleia o leitor em sua malha.
Trazendo revelações interessantes, começa por dizer da pouca importância da música potiguar no cenário nacional, ontem e hoje. A certa altura afirma: “Não se deve dissociar o desenvolvimento cultural da atividade e do poder econômico e, num Estado pequeno e pobre como o nosso, seria um milagre se tivesse surgido um João Gilberto, um Chico Buarque, um Milton Nascimento”.
Segundo Damião Nobre, o primeiro grande nome surgido no Rio Grande do Norte e com projeção nacional foi o Trio Irakitan. Cita e comenta, a seguir, outros intérpretes do mesmo nível: Ademilde Fonseca, a rainha do chorinho, Núbia Lafayete, “uma espécie de Nelson Gonçalves de saias”; Elino Julião, “o Luiz Gonzaga do Rio Grande do Norte”, e Leno “que foi o nosso representante da Jovem Guarda”.
No gênero brega – adianta o autor – “tivemos alguns cantores com bastante projeção, como Carlos André, Carlos Alexandre e Evaldo Freire e na modalidade da música dita romântica, Gilliard foi outro nome de sucesso”.
Entre parêntesis: Quando Damião Nobre escreveu essa crônica, duas cantoras potiguares, que vieram a ter sucesso além dos muros provincianos – Roberta Sá e Marina Elali – ainda se achavam no início da carreira.
Numerosos outros escritos, enfeixados na coletânea em foco, abordam múltiplos aspectos da MPB. Alguns destes, bastante curiosos (“Apelidos e Pseudônimos”, “Ilustres Desconhecidos”, “Listas”, etc. – conferem ao livro um certo ar de almanaque.
Leitura imperdível.
Uma biografia intelectual – é como se poderia definir este livro, que relata e explica as ideias e a arte poética do “Papa do Modernismo”, mas deixa de lado quase tudo de sua vida privada. Nenhuma revelação sobre o lado humano.
Alguns aspectos da obra andradiana, como, por exemplo, o conto, também passam em brancas nuvens. Prefere o biógrafo enfocar o poeta, o ensaísta, o pensador e o animador cultural.
Um bom trabalho, embora parcial.
Várias novelas, reunidas nesta coletânea, constituem momentos altos da obra ficcional de Stefan Zweig, escritor multifacetado, também grande em outros gêneros literários, como a biografia, o ensaio, a memorialística e a crônica.
“Confusão dos sentimentos”, integrante da coletânea, é uma obra-prima. Aspecto merecedor de especial atenção, nesta novela, a maneira como o autor aborda a temática homossexual. Sem preconceito e profundamente humano. É comovente a história do professor, já idoso, e seu jovem aluno, que se consomem numa paixão proibida. Imagine o impacto que esse livro deve ter causado quando do seu lançamento por volta dos anos 1930.
Para quem não sabe: o austríaco de origem judaica, Stefan Zweig (1881-1942) foi expulso do seu país pelos nazistas, em 1930, e terminou radicando-se no Brasil, onde viveu até morrer. Ele e a sua segunda esposa, alarmados com a perspectiva de vitória nazista, na segunda guerra mundial, cometeram suicídio.
Para onde vão os sonhos perdidos? Sim, nossos sonhos perdidos – para onde vão?
Aqueles sonhos que acariciamos durante anos e anos. Num horizonte de afeto e esperança. Sonhos que pulsam em sintonia prazerosa com coisas, paisagens, seres, relações. Sonhos em sua leveza fugidia. Como espuma de música fluindo em nós. Como emoções fervilhando nos suspiros da alma. Como pétalas de amor desfolhadas no coração.
Que sonhos sonham nossos desejos?
Que sonhos do sonho-do-outro fazem a vida Vidar prenhe de sentido?
Posto que: Vidar é amar a vida através do sonho do outro!
De repente, num encontro casual, o sonho de amor acontece. Sonho do outro sonho. Apenas num dia, apenas em 3, 5 anos… apenas num olhar, num gesto, num toque de mãos, num beijo leve, num beijo louco, na certeza da sintonia.
Então, alma e coração se esticam ao infinito. Impossível vira possível. Cada um quer se respirar no respirar do outro. O terreno baldio de nossa solidão se torna Paraíso, Apocalipse, Carnaval. Que nunca, nunca, pode terminar! É absolutamente preciso que vá além de todos os prazos de validade. Que tenha certificado de garantia, mesmo nos nós-de-nós sociais.
Que seja conversa aconchegante e intimista do acontecer cotidiano. Que seja uma dança eterna do teu sonho com meu sonho. Num rodopio estonteante de valsa e tango dançado nas estrelas.
Até que se torne saliva, olhar e gozo, se esvaindo nas dobras do próprio sonho e de nossos corpos. Sonho do sonho do sonho. Eterno para sempre eterno.
Posto que: por cada amor todo sonho quer eternidade!
Mas que chance há de um sonho aqui-agora ser para-sempre – se a VidaViva é fluxo? Se há sempre um processo de desencanto lento, longo, milimétrico. Se num belo dia de céu azulvermelhando, numa calçada, numa praia, num barzinho, numa simples conversa, na conjunção de Libra e Marte, com ou sem tarô cigano – os passos do destino te alcançam.
E, de repente, na tardemansa, como um tiro inesperado de bala perdida, os sonhos são mortos. Estancam. Se desmancham como sonhos perdidos. Como bolhas de sabão explodindo, em sua última flutuação de beleza e cores. Num inesperado esperado.
Para cada sonho de amor que se perdeu de si mesmo para-sempre há tanto perrengue. Sem solução. Ou só mesmo um novo sonho se rebuscando na ilusão de outra eternidade.
Posto que: por cada sonho todo amor quer eternidade!
Mas, se é verdade que Grandes Amores não morrem. Se é verdade que são só desligados que nem um interruptor ou então tiram férias. Todavia podem ser esfrangalhados.
E nesse caso é como um tiro mortal que arranca pedaços d’alma e do coração. Desejos se estilhaçando. Sonhos perdidos se esvaindo em ciúmes e enganos. Almas envenenadas. Não mais pelo doce veneno do amor inaugural. Mas pela amargura do amor envenenado dia-pós-dia.
Para onde vão esse sonhos perdidos?
Em que navio, caturrando lento, embarcam e somem ao longe, entre nuvens e gaivotas, na linha do horizonte. Em que estação das galáxias se aglomeram os sonhos perdidos?
Posto que: cada estrela cintilante é um sonho perdido em sua solidão.
Até aqui falei de sonhos d’amores. Sonhos do coração. Que se perdem ou são mortos talvez pela própria grandeza absurda. Que viram estrelas piscando saudades.
Mas, e os outros sonhos perdidos, para onde vão?
Numa noitemansa, uiskmeditando no Botecodo(IN)FINITO, reli crônica de meu amigo Vicente Serejo, um dos maiores jornalistas e cronistas dessas plagas potiguares. A crônica é de 1981 publicada no Jornal de Hoje.
A matéria descreve as peripécias do cidadão Marcolino, lutando por seus desejos e sonhos. Seu sonho dependia de sua profissão: subtrair-e–privatizar bens do alheio. Profissão, aliás, descrita em sua crueza jurídica nos Artigos 155 e 157 do Código Penal. Sem as nuances dos desejos e sonhos que movem o cidadão.
Daí que Marcolino foi flagrado num Vuco-Vuco, do Alecrim-Total, furtando bujões de gás. Marcolino, que queria vender bujões pra comprar uísque “que é a bebida que satisfaz a minha vontade”, justificou-se diante do delegado e repórteres.
Marcolino, cujo sonho era tão só um pequeno sonho: privatizar subprodutos do petróleo. Coisa pouca. Só um bujãozinho de gás aqui, outro ali – pra uískar, seguindo o impulso de sua vontade, and by appointment of her majesty, of course.
Uma gota de sonho pois. Um nadica de nada, comparado com os sonhos delirantes das zelite política pós-moderna que, nos conchavos do Petrolão, privatizou a Petrobras entre “cumpanheiros, camaradas, aliados, doleiros e empreiteiras”. Tudo em nome da governabilidade, do social, da democracia, do povão, e sei lá o que mais.
Sonhos avançados. Pós-ideológicos. Nem de esquerda, nem de direita, nem de bandinha, mano. Numa palavra: sonhos de paraísosfiscais-impunidade-poder. Sonho grande, sô!
Mas os sonhos de Marcolino não tinham esse pedigree todo.
Sem força política, nem foro privilegiado, Marcola, ladrão-sonhador, foi autuado e preso em flagrante no 8º Distrito Policial. E lá ficaram, ele e seu sonho. Sem uísk nem ressaca. Até a manhã seguinte.
Em época de quarentena, em meio a livros e filmes, volto a reler Carlos Drummond de Andrade. Fixo meu pensamento em “Especulações em torno da palavra homem”, reflexão em torno do sentido da vida. E a partir desse pensamento, sobretudo quando o escritor pondera – “Quanto vale o homem? / Menos, mais que o peso? / Hoje mais que ontem?” – fico sabendo da demissão de vários funcionários do maior jornal do Estado: Tribuna do Norte, e a notícia que me sensibiliza, com certeza, pelo fato de conhecer um pouco da área cultural do Estado, é a demissão de jornalista Cinthia Lopes.
A cultura potiguar fica de alguma forma órfã de alguém que durante muitos anos foi uma das principais divulgadoras dos eventos, projetos e artistas potiguares. Já existe toda uma geração de artistas que foram apresentados e divulgados por Cinthia Lopes, no Caderno Viver, do qual ela era competente editora.
Evidentemente fica também a tristeza pela demissão do jovem repórter de cultura Ramon Ribeiro. Todavia, existia entre nós uma espécie de memória afetiva, em relação a Cinthia Lopes.
Qualquer artista, seja de que área for, que tenha surgido nesses últimos vinte anos, e tenha participado da vida cultural na cidade, já havia precisado ou ido às escadarias do jornal, atrás dessa jovem, porém experiente jornalista, que como todos sabem, gosta muito de música, cultura e literatura, e na capital era uma das principais divulgadoras da cultura norte-rio-grandense, ao lado de nomes como Sérgio Vilar, Tácito Costa, Conrado Carlos e outros poucos.
A história haverá de contar: não tem, pelo menos nesse início de século, como falar em jornalismo cultural no Rio Grande do Norte e não citar Cinthia Lopes, que foi durante anos, um dos pilares da divulgação da nossa cultura em seus diversos gêneros.
Filha do reconhecido jornalista esportivo Everaldo Lopes, Cinthia Lopes Cardoso Outeda nasceu aqui mesmo em Natal, formou-se em jornalismo na UFRN, ainda bem jovem, lá em meados dos anos 90, e desde então passou a se dedicar ao jornalismo cultural, destacando-se nos últimos anos, sobretudo, por ser editora de cultura e variedades do jornal Tribuna do Norte.
Ao longo dos seus mais de vinte cinco anos de jornalismo, Cinthia Lopes recebeu diversos prêmios e homenagens.
Em 2012, foi homenageada com o Troféu Imprensa do Festival de Cinema de Natal; em 2017, recebeu da Academia Norte-rio-grandense de Letras a Medalha do Mérito Acadêmico Agnelo Alves – Categoria Jornalismo Impresso; em 2018, recebeu a medalha de mérito cultural Câmara Cascudo da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte.
Enfim, fica a nossa gratidão, a você Cinthia Lopes, por tudo que fez, e sei que continuará fazendo pela cultura do nosso Estado.
Voltando ao poema de Drummond, todos sabemos que o ser humano sempre valerá muito, independentemente de sua raça, cor, posição política/ideológica, ou religião; tem o seu valor, uma importância única, um significado que transcende a sua existência, com relevância para os demais homens e mulheres.
Estamos num período muito propicio para se refletir sobre reinvenção das nossas vidas, seja pelo fato do isolamento social em que estamos passando, ou até mesmo diante das incertezas da atual conjuntura política brasileira.
Talvez, essa reclusão sirva também para dar novos significados a nossa existência. Façamos uma reflexão no sentido de compreender onde e como estamos agindo e aonde queremos chegar.
E que saibamos o nosso verdadeiro valor no mundo.
Querida jornalista Cinthia Lopes, obrigado por tudo.
O rebolado de Elvis naqueles meados da década de 50 era censurado na TV norte-americana. O Rei do Rock mexia com os quadris e com a moral da família conservadora. Mas não tardou para ganhar o mundo. Era impossível frear aquela onda.
Depois vieram quatro cabeludos de Liverpool. A maior banda de todos os tempos habitou a mágica década de 60, ainda tensa pela Guerra Fria e um possível conflito que acabaria com o mundo. Era preciso viver intensamente.
Em 1969, dream is over? Talvez. E talvez por isso tantos reunidos em um festival despretensioso. E ali, no meio da lama, a história, a contracultura, a paz e o amor. E a voz rasgada de Joe Cocker… “I get high with a little help from my friends” (Eu vou longe com uma pequena ajuda dos meus amigos).
Sim, os Beatles ainda estavam ali, na interpretação épica do blueseiro britânico. With a Little Help From My Friends foi a voz ecoada de Woodstock. Ajuda mútua para ir longe, para ir além do conservadorismo, além da Guerra Fria, além de Nixon, além do Vietnã.
Por aqui, em 1975, aconteceu um Woodstock brazuca. O Festival de Águas Claras, numa fazenda em Iacanga, interior de Sampa. Outras tentativas falharam em reproduzir o desbunde de Woodstock. Precisava ser espontâneo. E assim, Águas Claras assistiu milhares de pessoas sedentas por liberdade em plena Ditadura Geisel.
Dez anos depois, em 1985, Diretas Já, Rock in Rio. Um Brasil unido na volta democrática. Um Brasil apartidário e em sintonia com o mundo. Triste com a morte de Tancredo. Todos de chiclete ploc na boca e entoando Ursinho Blau Blau ou “Não se reprima” e em coro perguntavam Que País É Esse?
E Sarney inicia a história da redemocratização. Imagine um prédio com base frouxa, com tijolos mal colocados. E assim, ano após ano, andar por andar, construímos a história da nossa Republiqueta como um prédio insustentável, prestes a cair.
O país unido no Iê, Iê, Iê da Jovem Guarda, no nacionalismo do Tropicalismo, na luta pela Nova República nos anos 80, começou a rachar já ali. Brizola nunca trocou seu chimarrão e sua representação política. Tínhamos ainda o barbudo sindical e o caçador de marajás. E mais uma vez colocamos um tijolaço fora de ordem na construção.
Os marajás continuam aí. Ganhamos uma nova moeda em seguida e um reinado petista que, a custa de uma corrupção sempre presente e naquele momento, escancarada, dividiu o país. E assim o próprio PT elegeu um atleta trapalhão “imune ao coronavírus”, um novo milico.
E nem uma pandemia que tem reconfigurado o mundo em uma união talvez sem precedentes, consegue unir o país tropical abençoado por Deus. A quem culpar? Cada país tem o governo que merece? A derrocada realmente começou lá atrás, no primeiro tijolo?
Pergunto: tem como demolir esse prédio Verde e Amarelo e recomeçar do zero uma construção com bases sólidas? Esse cimento teria a cor do liberalismo ou do socialismo?
Que tal uma cor cinza, própria da argamassa, apropriada ao empreendimento? Temos um motivo de âmbito mundial para nos unir sem pensar em cores, bandeiras ou no próprio umbigo. O isolamento social é pura globalização. Gesto sem fronteiras, como idealizou Lennon, ainda em 1971.
“Imagine all the people living for today. Imagine there’s no countries (…) I hope someday you’ll join us. And the world will live as one”. (Imagine todas as pessoas vivendo o presente. Imagine que não houvesse nenhum país (…) Espero que um dia você junte-se a nós. E o mundo viverá como um só).
The dream not is over!
Quando se trata da dramaturgia produzida no Rio Grande do Norte, um nome surge, com destaque: Racine Santos. Na verdade, parece-me justo considerá-lo o maior dramaturgo norte-rio-grandense de todos os tempos. E não é favor dizer isto. Qualquer pessoa medianamente informada sobre a história da nossa arte cênica, concordará comigo.
Nosso Estado não teve um Ariano Suassuna, glória de Pernambuco, embora nascido na Paraíba; não teve um Nelson Rodrigues, um Dias Gomes, ambos, por sinal, também nordestinos da gema – para citar apenas três expoentes.
Dentre os nossos dramaturgos e comediógrafos, podemos mencionar, afora Racine Santos, uns poucos: Segundo Wanderley (patrono da cadeira nº 16 da ANRL), Meira Pires, Sandoval Wanderley; nenhum, porém, mais importante do que Racine Santos, em termos de criatividade e renovação estética. Sandoval e Meira Pires foram, principalmente, homens de teatro, isto é, animadores do movimento teatral em nossa província.
Se Racine vivesse em São Paulo ou no Rio, seu nome teria, sem dúvidas, projeção nacional, mas, ele não quis e não quer outro lugar para morar e amar senão a sua Natal de nascença. E Natal, como já disse outro “provinciano incurável”, não consagra nem desconsagra ninguém. No entanto, o reconhecimento da sua obra é questão de tempo. E já começa a se fazer sentir, até mesmo fora do Brasil.
Autor de várias peças – dramas, sátiras, comédias -, baseadas, em grande parte, no populário nordestino, com alto teor de crítica social, dentre outros atributos, Racine Santos conhece a fundo os segredos da arte cênica, como dá mostras, em “À luz da lua, os punhais” (1990), traduzida para o espanhol e “A Farsa do Poder” (2010), por exemplo.
Não se pense que a sua atividade intelectual restringe-se à dramaturgia. Ele é tão bom ficcionista quanto dramaturgo. (Mas, todos teimam em chamá-lo de teatrólogo).
Em 2017, estreou no romance com “Macaíba em Alvoroço”. Não é o seu primeiro trabalho de ficção, mas, sem dúvidas, é aquele com que se firma nessa difícil arte.
A narrativa bem urdida recria o pequeno mundo de uma cidade do interior, com sua gente simples e pitoresca. Personagens como Xexéu, o poeta popular; Cancão, soldado de polícia; o cabeceiro Sérgio e sua mulher Anjinha, tipos populares admiráveis pela grandeza humana, contrastam com o farisaísmo de outros personagens, estes secundários – o Prefeito, o Padre e o Delegado de Polícia. Alguns lances de suspense, beirando a literatura policial, e numerosas referências à cultura popular tornam a leitura extremamente interessante.
Sob o prisma da forma ressalte-se a linguagem valorizadora do coloquial nordestino.
Como numa peça de Ariano Suassuna, esse romance contém uma mensagem de sentido moral, bem expressa no final pelas sábias palavras de um personagem, que o leitor logo adivinha ter sido moldado na pessoa do escritor Câmara Cascudo.
Não tenho receio de afirmar que o livro “Macaíba em Alvoroço” nasceu fadado a tornar-se um marco na ficção potiguar (e brasileira, claro).
Racine também romancista
Voltando-se mais uma vez para a prosa de ficção, já um tanto deslembrado do teatro, Racine Santos lançou, em 2019, “… De susto, de bala ou vício”, título que remete à letra de uma famosa canção de Caetano Veloso.
Trata-se de um romance (ou novela), cuja ação transcorre em Natal, nos turbulentos anos sessenta. A cidade ainda provinciana serve de pano de fundo a um drama amoroso cheio de peripécias. Nas estrelinhas, fatos reais, característicos dos “anos de chumbo”, conferem à narrativa um sabor memorial, valendo, inclusive, como testemunho e denúncia.
De modo especial, dois aspectos ressaltam deste romance: o monólogo interior, inicial, à maneira de James Joyce- – experiência inédita na literatura potiguar – , e o excelente perfil do teatrólogo Sandoval Wanderley, tornado personagem de primeira plana.
Como bem observa François Silvestre, no posfácio, esse novo romance de Racine é a denúncia de que pra onde ele for leva o teatro. Na forma é prosa no papel; na plástica é fala do teatro. Falas do teatro épico. De onde Racine é semente e fruto. Criador e criatura. O épico mais discursivo do que heroico. Mas – adverte o escritor – “sem perder as vestes talares do romance”.
Eis aí a prova de que o romancista Racine Santos veio para ficar.
Resta dizer que, além de dramaturgo, teatrólogo e ficcionista, ele também é poeta, ensaísta (autor do livro “Natal em Cena”, 1996) e jornalista, com vasta experiência como editor cultural de jornais e revistas natalenses. Em suma, um escritor consumado, que só a miopia intelectual da província não consegue enxergar.
O jornal Tribuna do Norte, o maior em atividade no Estado potiguar, demitiu mais uma leva de funcionários após a demissão em massa de 2016. Dessa vez foram 20 do corpo funcional do jornal, sendo sete jornalistas da redação.
Para o setor cultural a perda foi a pior. O caderno de cultura Viver foi extinto. O espaço destinado à cultura será de apenas uma página inserida dentro do caderno Natal, provavelmente escrita pelo decano jornalista Tádzio França.
Além do caderno, a experiente Cinthia Lopes, editora do Viver por mais de duas décadas, foi demitida. Ela e o repórter Ramon Ribeiro, que nos últimos anos foram a resistência da Cultura no jornalismo impresso.
O caderno Fim de Semana, editado por Cinthia e escrito por Tádzio, por enquanto está suspenso pelas férias do repórter, mas vai voltar em tamanho bem menor, talvez com um texto de lazer.
E assim, após o saudoso “Muito” do Diário de Natal, o setor cultural perde mais um importante espaço. O último no jornalismo impresso. Sobram os blogs? Qual? Quantos? Com qual apoio? Com qual ritmo de atualização? Com qual linha editorial?
Analisem bem, queridos leitores, a situação. Praticamente não temos mais jornal impresso. Em Natal, apenas o Agora RN, sem uma linha de jornalismo cultural, e agora uma página na Tribuna do Norte. Portais se dedicam praticamente à reprodução de releases e em mínima quantidade.
Dos blogs com foco na cena independente, me perdoem alguma falta, lembro do Brechando, que mescla curiosidades de Natal, sempre interessantes, e alguma agenda cultural, o Apartamento 702, e este Papo Cultura, que sem apoio, diminuiu o ritmo à espera de novo incentivo.
Não seria hora de uma parceria conjunta? Será que entidades culturais não podem apoiar essas mídias independentes que sobrevivem a duras penas e há tanto tempo? Ou os artistas ficarão à mercê da divulgação na bolha das suas redes sociais?
O Papo Cultura existe há 3 anos. Este editor divulga a arte potiguar no ambiente virtual há 13 anos! Primeiro no Diário do Tempo (pioneiro neste segmento), depois no Substantivo Plural e agora com este Papo, que em ritmo normal contabiliza mínimo de 800 visualizações ao dia.
Será que um blog com público consumidor de cultura e 800 views ao dia, e por valores módicos, não dá retorno a uma Casa com shows constantes? Ou a uma empresa ou instituição cultural ou que apoia a cultura?
Cultura gera renda e emprego. Tam participação importante no PIB. Mas como a própria época sugere, vamos analisar além da economia. Cultura gera autoestima, identificação e, mais do que tudo, leveza à alma e à vida.
E para tudo isso se sustentar, claro, precisa de divulgação. Nosso RN está cada vez mais combalido nesse sentido. Então, artistas, lembrem de nós. Empresas, “cheguem junto”. Vamos nos ajudar. A hora é essa!
Desde que foi anunciado o período de quarentena, para evitar o aumento de casos da Covid-19 (causada pelo novo coronavírus), voltei a me exercitar, algo que, aliás, deveria ter feito há mais tempo. É sempre assim, aquela velha culpa por ter uma vida sedentária quando se pode fazer algum exercício físico diariamente e, de quebra, ter mais disposição e qualidade de vida. Bem, vou tentar não parar dessa vez. Prometo. Tenho realizado minhas caminhadas no final da tarde, mas estou pensando em alternar os horários e sair alguns dias pela manhã. Geralmente acordo cedo e gosto de sentir a brisa matutina, especialmente antes de o sol ficar muito quente, como se diz por aqui.
Hoje fui caminhar pela manhã, aqui mesmo onde moro, no bairro de Neópolis, mas confesso que desejei estar em outros lugares mais adequados (e inspiradores) para se exercitar, digamos assim: o Parque das Dunas, a praia de Ponta Negra… Bem, mas esse é um outro assunto sobre o qual é melhor não pensar agora, pois não sabemos quanto tempo durará nosso isolamento social. O mais importante (e urgente) agora é preservar a saúde da população e evitar que mais pessoas se contaminem pelo coronavírus, especialmente os que fazem parte do grupo de risco – idosos, hipertensos, diabéticos, asmáticos, pessoas em tratamento contra o câncer, transplantados etc.
A doença já vitimou mais de 24.000 pessoas no mundo e 92 no Brasil, que soma mais de 3.000 infectados (detalhe: esses dados, que sofrem atualização diária, estão disponibilizados na edição de hoje, 28 de março, do jornal “El País”). Lembrando que o isolamento social é uma medida importante, mas a constante higiene das mãos e dos objetos/superfícies usados com frequência é outro aliado poderoso para evitar a contaminação. Água e sabão e álcool em gel são recomendados.
Voltando à caminhada matinal. Ao mesmo tempo que idealizava as caminhadas no parque e na praia, fiquei imaginando como seria bom se tivéssemos mais ciclovias na cidade e as pessoas pudessem se locomover mais a pé ou de bicicleta, com a necessária segurança, claro.
Eu mesma tenho esse sonho de comprar uma bicicleta e poder me locomover para locais próximos de casa, por exemplo, pedalar nos finais de semana… Confesso que o reduzido número de veículos nas ruas nesse período me faz pensar nisso como uma possibilidade real, como uma forma de melhorar significativamente minha qualidade de vida. E o que isso significa? Um ambiente menos poluído e menos estressante com o barulho ensurdecedor dos veículos. Agora mesmo, enquanto escrevo esta crônica, desfruto de um raro momento em casa, não estou escutando barulho de carro e de ônibus a todo momento (quatro linhas de ônibus circulam no meu bairro diariamente e o número de veículos que passam por aqui é incontável).
Ao mesmo tempo que pensei nas ciclovias, também imaginei um bairro, uma cidade, na verdade, com mais espaço para nos exercitarmos, com mais praças, quadras de esporte ao ar livre. (Isso me fez lembrar a cidade de Sorocaba/SP, onde estive há dois anos, toda rodeada de ciclovias. Uma beleza). Locais onde a população possa conviver de forma mais saudável, crianças e idosos especialmente. Locais onde a prefeitura pode realizar, por exemplo, eventos voltados para promover a qualidade de vida da comunidade e incentivá-la a praticar exercício físico, se alimentar de forma mais saudável, privilegiando o consumo de frutas e verduras e evitando o consumo de alimentos industrializados, campanhas educativas sobre temas diversos – descarte correto do lixo, doação de sangue, educação sexual, consumo de água, preservação do meio ambiente, normas de trânsito etc.
Tudo isso implicaria numa população mais saudável e menos confinada em suas casas e seus empregos, como se a vida se resumisse ao trabalho/obrigações e a natureza não fosse algo que devêssemos usufruir para o nosso próprio bem-estar. Lembrando que usufruir também significa preservar. Essas campanhas educativas poderiam ser realizadas, por exemplo, por bibliotecas escolares/públicas. Afinal, essa é uma das inúmeras atividades realizadas por esse profissional multitarefa chamado bibliotecário.
Espero que depois dessa crise que o país e o mundo atravessam nossos governantes pensem um pouco mais na qualidade de vida da população e nós, cidadãos, possamos continuar lutando por uma cidade melhor, menos poluída, com mais verde e mais espaço para convivência ao ar livre, e, principalmente, que cuidemos mais do meio ambiente, tendo a consciência de que nossa qualidade de vida disso também depende.
Uma cidade com mais ciclovias e menos poluição. Uma cidade mais segura para os seus cidadãos, onde se possa andar a pé sem medo de ser assaltado a todo momento. Uma cidade mais humana, colorida, limpa, sem tanta poluição ambiental/visual. Aliás, a Lei da Cidade Limpa (2006), de São Paulo, bem que poderia ser copiada por aqui e as propagandas em outdoors serem proibidas de uma vez por todas. É muita poluição visual.
Também desejo ser mais atuante nessa luta e não ficar de braços cruzados, só reclamando, sem nada fazer para mudar a realidade. Aliás, se tem uma coisa que os momentos de crise nos ensinam é que sempre é possível fazer algo para modificar a realidade em que estamos inseridos.
Em um período que estamos todos necessitando de cuidados especiais contra uma pandemia, é provável que assistir a bons filmes durante o tempo a mais em casa seja uma das melhores saídas. Pensando nisso e partindo primeiramente da Netflix, preparei uma lista com filmes de gêneros variados, mas sem pensar exatamente em uma espécie de melhores filmes do catálogo. A ideia é indicar filmes bacanas para muitos gostos diferentes, tanto para assistir quanto para reassistir.
Sem mais demora e, como sempre, dentro de uma abordagem sem verdades absolutas, vamos à lista de 10 filmes para assistir na Netflix durante a quarentena – a disposição só não é aleatória porque está em ordem alfabética (desconsiderando os artigos).
O cinema argentino tem produzido filmes relevantes ano após ano (desde muito tempo). E, felizmente, não está restrito a Ricardo Darín. O ator, que encabeçou aquele que, para muitos (entre os quais me incluo), é o melhor filme do seu país em muitos anos (O Segredo dos Seus Olhos, de 2009) e é sinônimo de talento e, acima de tudo, competência, parece ter “somente” aberto alas em um novo período para nossos hermanos. Se, em 1986, A História Oficial (1985) já havia recebido um Oscar, foi com a mais fácil difusão das produções (especialmente com o advento da internet e, mais recentemente, dos streamings) que houve uma merecida repercussão e grande reconhecimento público.
O Cidadão Ilustre trata de inspiração e criação como poucos filmes conseguem. De uma sutileza sem tamanho ao tratar o comportamento de um escritor com muito humor, o filme ainda consegue revelar os abismos culturais que cercam nossas vidas… ainda mais em um mundo globalizado. No fim, a maneira como discorre sobre as diferenças entre realidade e ficção é das mais originais do cinema e, se fosse somente esse encerramento, ainda assim mereceria ser visto.
Um Contratempo parece beber de algumas das melhores fontes que retratam crimes perfeitos, como o Alfred Hitchcock e Agatha Christie, além de ter uma evolução progressiva que traz muito dos melhores suspenses de Brian De Palma e uma dinamicidade fácil que se assemelha aos bons textos de Sidney Sheldon.
É um filme construído com muita racionalidade, amarrado com cuidado e tem uma tensão crescente constante. Cheio de reviravoltas, o filme espanhol do diretor Oriol Paulo, conscientemente, engana, reengana e engana novamente. Ele faz o coração do espectador acelerar e, sabiamente, tem uma leve despretensão, no sentido de que precisa que o público deixe de lado o que tem como verdades possíveis e aceite se submeter a uma história construída para entreter.
Como finalizei a crítica sobre o ele: É um filme excepcional, que depende, sim, do grau de aceitação de quem estiver o assistindo. Pode ser, também, um exercício cardíaco bem interessante, porque, aceitando-o, o coração vai acelerar. E vai ser sem piedade.
Se o subgênero filme-de-tubarão sempre merece uma atenção em listas despretensiosas nas questões qualitativas, esse filme tem o direito de ser redescoberto. Nada é muito diferente ou novo, mas são tubarões com os cérebros vitaminados, mais inteligentes e espertos, que antagonizam esse filme de Renny Harlin.
Por mais que Harlin seja um nome pouco conhecido no meio mainstream, já foi festejado por amantes do terror com filmes razoavelmente bem sucedidos como A Hora do Pesadelo 4: O Mestre dos Sonhos (1988) e Condenação do Além (1987). Aqui, o diretor faz com que a história morna e os personagens caricatos – como o herói Carter Blake (Thomas Jane) – sejam contornados por um processo imponente. Tudo é engrandecido: das expressões e reações overs do protagonista ao alívio cômico sem noção do cozinheiro Preacher (LL Cool J).
Do Fundo do Mar é, essencialmente, uma grande sequência de ação, com cenas sem sutilezas estéticas executadas uma após a outra e com todas as situações comuns de filmes do tipo, com criaturas perseguindo as pessoas dentro de um ambiente fechado. Seja Alien, o Oitavo Passageiro (de Ridley Scott, 1979) ou até Tentáculos (de Stephen Sommers, 1998), encontram eco nesse filme curioso.
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Um bilionário forja a própria morte e, a partir de então, torna-se um fantasma para o mundo. Reunindo uma equipe de profissionais tão invisíveis para o sistema quanto ele, parte para a missão de derrubar um ditador em um país ao leste. Esse país fictício, o Turgistão, funciona como uma fusão de países reais que supostamente esperam pela libertação (a salvação americana diluída em uma equipe aparentemente cosmopolita). E não importa o nome do lugar – nem mesmo para algum personagem que não consegue pronunciá-lo –, o que importa é cumprir a missão, a meta.
Em Esquadrão 6, o que menos importa é a política envolvida. A força da linguagem literalmente explosiva de Michael Bay está em conseguir retirar toda a atenção do tema, fazendo do resultado uma espécie de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) para todos – apostando na força estética – e insere a hiperatividade como ferramenta-chave. Assim, uma mãe-figurante com um bebê no colo e dois cachorrinhos ganham mais destaque – claro que para fazer comédia – do que os tantos que poderiam morrer com a ameaça de gás sarin exposta pelo roteiro.
Trata-se de um filme completamente ligado na ação e desligado do planeta (como seu diretor). Pode ser considerado irresponsável por isso, mas se a procura é por entretenimento, explosões, diálogos fáceis e espertos, perseguições e artifícios non sense, Esquadrão 6 pode ser um filme que venha a suprir essas necessidades. Bay assina o que é seu como se estivesse sendo eletrocutado enquanto segura a caneta, mas isso tem sua legitimidade saudável quando se busca algo mais forte do que uma lata de energético ou uma xícara grande de café expresso.
Escrito e dirigido pela jovem italiana de 36 anos de idade Alice Rohrwacher (que já tem na bagagem o Grande Prêmio do Júri em Cannes por As Maravilhas, de 2014), Feliz como Lázaro é um acontecimento em 2018. Longe de causar burburinho ou ser utilizado em alguma campanha de mercado (como o foi o tão recente quanto Caixa de Pássaros – ou Bird Box –, de 2018), o filme é genuinamente puro no seu modo de lidar com o mundo contemporâneo e as bizarras relações de trabalho e escravidão moderna.
Ao mesmo tempo em que parte de um princípio de pureza – da direção de arte ao comportamento do personagem título –, Lazzaro Felice (no original) também é perturbador ao deixar vazar, em suas entrelinhas, o quão desumana pode ser a humanidade, o que é reforçado pelo lirismo de sua mise-en-scène (em uma síntese já bem resumida: tudo aquilo que aparece nas cenas e a forma com a qual cada detalhe é montado e posicionado na intenção de criar uma unidade estilística).
Ainda, a atuação de Adriano Tardiolo (o Lazzaro) exala uma bondade, um desconhecimento de qualquer mal, que as adversidades impostas pelo roteiro são desconcertantes.
Feliz como Lázaro é daqueles filmes para guardar no coração.
Em 2001, o Afeganistão está sob o controle do Talibã. No meio desse contexto, uma jovem determinada se disfarça de menino para sustentar sua família quando seu pai é capturado.
A Ganha-Pão não é somente uma animação dolorosa e assustadoramente real. Ela é daquelas que tocam tão fundo na gente que, por mais de um motivo, pode despertar a nossa empatia – algo tão necessário nos dias de hoje.
Dirigido por Nora Twomey, que havia realizado antes os lindíssimos curtas-metragens From Darkness (de 2002) e Cúilín Dualach (de 2004), a história é, talvez, a que tem a maior possibilidade de fazer chorar desta lista, tamanha a sensibilidade de Twomey e do roteiro da ucraniana Anita Doron (roteirista e diretora do ótimo The Lesser Blessed, de 2012)
Sendo um filme menos badalado do seu diretor – Christopher Nolan (de Dunkirk, 2017) –, O Grande Truque é meio drama e meio ficção científica recheado de mistério. Assim, com esse mistério tomando conta da atmosfera, o suspense ganha contornos bem interessantes. Há uma magia na condução desse filme que Nolan parece ter escondido em boa parte dos seus demais. Toda a sua racionalidade e uma certa pretensa exposição, aqui, jamais deixam o resultado cruzar a linha da frieza. É, sim, tudo muito calculado, mas há uma compaixão que torna as camadas mais intensas. Eu, pessoalmente, gosto de Nolan (com um ou outro questionamento pelo caminho) e tenho O Grande Truque como o filme de sua carreira que mais me toca.
O filme ainda conta com Christian Bale, Hugh Jackman, Scarlett Johansson, Rebecca Hall e Michael Caine e foi indicado a dois Oscars (Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte). E, apesar do elenco, tudo gira em torno do roteiro – como boa parte dos filmes de Nolan. É um trabalho que merece ser visto com atenção.
Além de ter a direção de Bong Joon Ho (de Parasita, 2019), O Hospedeiro já carrega tudo o que o diretor sul-coreano exponenciaria no filme que fez história no Oscar 2020: luta de classes, debates sociais, fusão de gêneros e um roteiro (coescrito pelo próprio Joon Ho) que progride com uma elegância enorme.
É interessante perceber como o público americano e a própria crítica receberam o filme e, ao mesmo tempo, levar em conta que se trata de uma obra sul-coreana – cultura diferente, formas de ver o mundo diferentes, jeitos de agir diferentes e até humor diferente. Assim sendo, pode parecer que o filme desperdiça alguns momentos dramáticos na construção de alívios cômicos, mas a questão é que tudo vai se emaranhando e construindo uma enorme bola de sentimentos.
O Hospedeiro, no final das contas, é uma das redefinições do horror no século XXI e já mostra o diretor enorme que é Joon Ho.
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Eis um filme que foi muito comentado em sua estreia, mas que começou a cair no esquecimento rapidamente. Não por sua qualidade – é o mais premiado desta lista –, mas talvez por misturar dois universos do cinema de gênero: terror e ação… levando tudo a uma esquisitice quântica.
Invasão Zumbi subverte o subgênero dos zumbis, o próprio terror e constrói e quebra em pedaços caricaturas de filmes de ação. E vai muito além: à medida que os zumbis se multiplicam e uma variedade de pessoas comuns os enfrenta, há uma alusão certeira e uma avaliação sobre a insensibilidade corporativa.
É um filmaço que tem poder de adrenalina e que pode chocar com suas quebras de expectativas.
Repleto de diálogos realistas e, ao mesmo tempo, estranhos, Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe é de uma precisão cirúrgica na concepção da relação entre um pai e seus filhos. Muito bem alicerçado nas atuações de Dustin Hoffmann (Harold), Ben Stiller (Matthew) e Adam Sandler (Danny), o diretor e roteirista Noah Baumbach (do oscarizado História de um Casamento, de 2019) fundamenta um filme cheio de humanidade, capaz de causar confusão, felicidade, acessos de raiva… sempre de uma maneira muito genuína e por meio da criação de sintonia entre filme e espectador.
Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe é, também, uma prova dupla: para os fãs e para os não-adeptos da carreira de Adam Sandler. Aqui, eles podem encontrar o ator em uma das suas atuações mais relevantes (ao lado de Reine Sobre Mim, Embriagado de Amor e Joias Brutas), tanto que o ator, merecidamente, foi ovacionado no Festival de Cannes de 2017. Apesar do humor meio amargo do personagem coincidir com muito do que Sandler já fez, há detalhes que o levam muito além: são camadas e mais camadas de um homem que jamais desistiu de ser feliz, mas, mesmo assim, sente-se fracassado.
Provavelmente um dos menos conhecidos da lista, Sing Street: Música e Sonho é uma pequena obra-prima dirigida por John Carney (do já ótimo Mesmo Se Nada Der Certo, 2013). A partir de uma premissa aparentemente genérica, que diz sobre um rapaz que foge de uma conturbada vida familiar ao se tornar integrante de uma banda para impressionar uma moça misteriosa, o filme – escrito também por Carney – constrói conexões tanto dentro do seu próprio desenrolar quanto entre os personagens que parecem refletir em um nível subcutâneo: não arrepia somente, mas faz vibrar.
Tudo tão íntimo, com barreiras sinceras, triunfos satisfatórios e frustrações quase palpáveis que tudo pode ir além da identificação. É a vida em metáforas. São alegorias simples, mas passíveis de interpretações intensas… resta somente estar disponível e aberto para elas.
Eu havia pausado, deixado de lado mesmo, o bônus Adam Sandler em minhas últimas listas. Mas é bom retornar com um filme completamente diferente em sua carreira, dirigido por Benny e Josh Safdie… mesmo que já tenha um Sandler na lista.
A ideia do cinema realizado pelos irmãos Safdie é, por um lado, semelhante à do franco-argentino Gaspar Noé (de Clímax, 2019). Há uma intensa busca pelo sensorial do público, uma procura pela desestabilização proposital deste, que acaba por se sentir engolido por sensações e, de tão imerso, pode absorver o que assiste como se estivesse em um provável efeito alucinógeno. Isso, no caso de Joias Brutas, leva a um prazer de pouco mais de duas horas ou a uma bad trip – claro que tudo totalmente lícito.
Mas as semelhanças entre o que Benny e Josh Safdie fazem e o trabalho de Noé terminam nas questões sensoriais. Isso porque, tanto no filme protagonizado por Adam Sandler quanto nos anteriores da dupla, há uma absoluta inserção da história e dos acontecimentos na construção de um todo muito coeso – frenético sim, talvez nauseante, mas não é somente uma escolha que leva a qualquer sensação, é o conjunto, a união da totalidade.
Joias Brutas, com toda essa agonia, mais parece um quadro único, renascentista, pintado como uma releitura por um artista contemporâneo que decidiu mergulhar as mãos em tinta e pintar socando a tela. É genuíno, raivoso e intenso; é uma mistura das construções de personagens e de naturalidade de um gênio como John Cassavetes e a desordem psíquica recorrente nas obras de Brian De Palma.
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Texto originalmente publicado no Canaltech
Antes de começar a assistir a Prescrição Fatal (disponível na Netflix), o que mais me chamou a atenção foi o título nacional. Isso porque ele mais parece forçar a barra na caça por audiência, afinal, às vezes, é muito mais fácil e chamativo o título indicar algo sério do que ressaltar a eficiência – talvez metafórica – do original. Então, quando terminei de assistir ao quarto e último episódio da minissérie, eu percebi que estava em um dilema, quase um paradoxo: O título brasileiro realmente funciona, mas, na soma do todo, The Pharmacist (O Farmacêutico) faria mais justiça ao material exposto.
Eduardo Coutinho, o maior dos nossos documentaristas, uma vez disse que o documentário chega a se tornar ficção quanto mais se aproxima de realidade. Talvez, por influência dele (de Coutinho), eu tenha percebido Prescrição Fatal por uma esfera um tanto quanto ficcional. Nesse sentido, Dan Schneider, aos poucos, foi se transformando em uma espécie de super-herói… e isso com direito a uma construção de personagem marcada inicialmente por um trauma (como Batman e outros) e por vilões que, mesmo obviamente humanos, são complexos a ponto de terem as maldades embasadas – mas nunca exatamente justificadas.
Se o primeiro episódio funciona, de fato, como a origem de um super-herói – O Farmacêutico –, é também a partir dessa primeira hora que um trauma pessoal, já combatido com uma perseverança sobre-humana, fundamenta a personalidade do protagonista. Sua busca incessante por alguém que possa depor a favor de sua causa, o embate com uma testemunha mentirosa que gera um dos plot twists mais interessantes de toda a minissérie (que tem como antagonista o vilão menor – Jeffery Hall) – e que pode levar a discussões profundas sobre a influência do meio na formação particular e sobre luta de classes –, as ameaças de morte sofridas tanto por ele quanto por aquela que é o seu maior achado…
O vilão menor, Jeffery Hall. (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
Tudo é construído como se fosse exatamente um monomito (a clássica Jornada do Herói). Dessa forma, a direção de Jenner Furst e Julia Willoughby Nason age como se, em primeiro plano, buscasse por essa base ficcional e, em segunda instância, encaixasse os acontecimentos. Enquanto Bruce Wayne passa a ser o Batman a partir dos seus medos e para causar medo, Dan Schneider deixa de ser um farmacêutico para inteirar-se como O Farmacêutico justamente a partir de sua maior dor, algo que o guiaria por toda a vida – ao menos pela vida exposta nas quatro partes da minissérie.
Essa dor, inclusive, é fundamental para entender o lado mais humano e compassivo do trabalho de Furst e Willoughby Nason. Há um entendimento fundamental aqui ao comparar – no melhor sentido – a dor do herói com a dor de uma comunidade e, mais à frente, de um país. É algo um tanto quanto scorsesiano, como bem lembrado por Bong Joon Ho durante a cerimônia do Oscar 2020: “O que é mais pessoal é mais criativo.”
Prescrição Fatal é, por essa perspectiva, algo que parte do extremo pessoal para abraçar um todo surpreendentemente homogêneo. Isso porque a empatia, por mais que possa estar em desuso, acaba por ser uma faculdade emocional extremamente humana. Mas, sabendo que nem só de empatia vive a humanidade, existe uma crescente carga dramática no documentário que influencia a sensação de que cada espectador foi lesado e que, de algum modo, Schneider é o porta-voz: Ele deixa de ser o homem que buscava justiça em nome do filho para ser um justiceiro que luta por todos… e ele faz isso tudo tentando (e conseguindo) permanecer dentro da lei.
Na luta incessante por justiça, O Farmacêutico ainda vê a onda de opiáceos ser alavancada por uma catástrofe natural (o furacão Katrina), o que reforça a importância de sua existência enquanto homem nada acomodado. Essa onda, por outro lado, que se inicia pela médica Jacqueline Cleggett (a vilã média), desencadeia descobertas que vão do micro ao macro: de Cleggett à indústria farmacêutica (especificamente à Purdue Pharma e ao seu bilionário presidente – Richard Sackler, o vilão mais poderoso); do mal causado a dezenas de pacientes ao vício imposto a quase meio milhão de pessoas.
A vilã média, Jacqueline Cleggett. (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
O vilão mais poderoso, Richard Sackler. (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
O vício em OxyContin, aliás, produz uma rima absurda (no melhor sentido) para a finalização de Prescrição Fatal: Se a minissérie é apresentada a partir da dor de uma família por ter perdido um ente querido, ela cresce a ponto de se transformar em um tratado sobre a degradação de uma nação à procura por um analgésico para dores severas. A metáfora está implícita (talvez explícita). O povo, doente, acaba cansado demais para lutar contra a causa da dor, buscando somente que ela (a dor) cesse.
Schneider é aquele que, mesmo dolorido pela morte do filho, acaba por se entregar à luta de buscar caminhos e não somente respostas. Ele não quer modificar o fim; ele quer consertar o meio – e, de repente, reconstruir o início. Tudo rima aqui. O último episódio é consciente ao extremo por esse ponto de vista: Voltando-se para a dor pessoal do protagonista e de sua família, há uma despedida quase melancólica e, ao mesmo tempo, pontualmente otimista. Algo relativo ao Túnel da Esperança que, com toda a realidade traumática do filme (o que não deixa de ser), serve como um respiro. Nada melhor do que finalizar com a mesma crença do herói para que, de alguma maneira, sua força encontre ecos.
Texto originalmente publicado no Canaltech
O herói, Dan Schneider, O Farmacêutico. (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
As expectativas raramente são benéficas quando se trata de cinema. Sempre há que se deixar levar por uma obra para que ela tenha a oportunidade de provar seu valor. Preconceber julgamentos antes de ter contato real com o objeto pode ser um gesto que desmerece ou enaltece o que, a partir de uma visão neutra, não passaria de merecedor de opiniões medianas, mornas.
O cinema de gênero vem exatamente ao encontro das expectativas, abraçando-as com carinho. Isso porque o funcionamento interno de um filme que venha a se encaixar nessa definição é uma leitura específica do seu gênero. Mantém-se uma estrutura narrativa base, reafirma-se convenções tradicionais e, ao seu modo, cada filme fica livre justamente para subverter o que é preestabelecido para si: eis o surgimento das quebras de expectativas. Tais filmes criam suas próprias galáxias, mas sempre dentro de um universo corajoso, este que enfrenta as expectativas. E mesmo que possam expandir esse universo ao subverter convenções e gestos tradicionais, jamais uma produção de gênero criará o seu próprio cosmo. Um filme de gênero real – raiz – está muito mais preocupado em fazer jus ao seu universo do que posar com alguma arrogância e se dizer mais do que é.
Filmes de terror encaixam-se exatamente em um universo próprio, consolidado. Ao longo dos últimos anos, tais filmes vêm recobrando espaço com competência absoluta. São, enfim, filmes que fazem jus ao pertencimento desse gênero que formam a lista mais abaixo.
E detalhe: existiam muitos outros que poderiam compor a seleção que o Canaltech preparou. A ideia de citar os melhores da nova geração é completamente subjetiva. Pode-se dizer que a tal “nova geração” foi iniciada por Jogos Mortais (de James Wan, 2004); daria para ir ao início do século e pescar a obra-prima Kairo (aka Pulse – de Kiyoshi Kurosawa, 2001) como uma virada para o gênero, mesmo descentralizado do que se está acostumado a assistir por aqui; ou, de repente, pegar Atividade Paranormal (de Oren Peli, 2007) e transformá-lo em um marco devido à opção pelo mockumentary, que remete ao aterrorizante A Bruxa de Blair (de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, 1999).
A opção aqui, porém, foi por Invocação do Mal (de James Wan, 2013), que, querendo ou não, foi o predecessor de uma leva de gênero forte, consciente de si e segura. Além disso, o filme de Wan abriu caminhos para que o terror pudesse ter mais espaço em rodas de discussões e até para a criação, posteriormente, do termo que merece uma matéria à parte: pós-terror – um rótulo preconceituoso dado pelo crítico Steven Rose (do Guardian) para filmes de terror “mais sofisticados”.
Mas, em ordem cronológica crescente e não de qualidade, vamos aos 10 melhores filmes de terror da nova geração.
Invocação do Mal (de James Wan, 2013), além de trazer uma combinação extremamente equilibrada de jump scare e tensão gradativa, tem um final mais do que satisfatório. Se dentro do gênero Hollywood costumava apostar em términos com algum gancho, a direção de James Wan, aqui, prefere dar um fim de fato. Nesse sentido, o sucesso da produção exigiu que a sequência fosse criativa na retomada, algo que, por si só, já coloca o filme como originário de algo que tenderia a crescer.
Sinfonia da Necrópole (de Juliana Rojas, 2014) talvez seja um dos filmes mais subestimados de nossa filmografia recente. O jovem aprendiz de coveiro (interpretado por Eduardo Gomes) parece ser uma alusão à sempre constante briga do bem contra o mal – disfarçados de pessimismo versus otimismo. Isso porque Deodato (Gomes) busca respiro e vida justamente em uma profissão que lida diretamente com os mortos. Juliana Rojas (que escreveu e dirigiu o filme) é habilidosa na condução desse equilíbrio, cedendo dor ao protagonista ao mesmo tempo em que tende a ressuscitá-lo com a vivacidade dos planos e, especialmente, dos inusitados números musicais. Um filme que precisa ser (re)descoberto com urgência.
Alguns dos melhores filmes de terror tornam o medo algo muito próximo de quem os assiste. Robert Eggers causa esse efeito a partir de elementos normalmente confiáveis. Tudo parece dentro de uma normalidade, mas nada está exatamente em seu lugar. Eggers permanece dentro da cabeça dos personagens, examinando-os – algo que voltou a fazer no recente O Farol. Em A Bruxa (2015), a questão do terror é nítida pela proximidade fervorosa que cada figura dramática tem com Deus e com o Diabo. Um estudo sobre a dualidade e, na falta do bom senso, o mergulho em um final inusitado. Para quem não está à procura de sustos e sim de atmosfera, deve ser a melhor pedida da lista. De brinde, ainda ganha a companhia de Black Phillip.
Não se trata de um exemplar Kurosawa tão perturbador quanto Pulse, mas enquanto vai desabrochando suas camadas, Creepy (de Kiyoshi Kurosawa, 2016) aproveita cada detalhe para alimentar um certo pavor. O todo planejado pela direção, inclusive, faz com que mínimos detalhes alimentem o desconforto, como a trilha sonora silenciosa que permite que simples passos sejam escutados como algo ameaçador. Kurosawa ainda permite que o espectador acabe por se sentir socialmente desconfortável e, por essa perspectiva, é dos filmes mais silenciosamente assustadores da lista.
Verônica: Jogo Sobrenatural (de Paco Plaza, 2017) é um terror carregado de suspense que sabe muito bem onde está pisando. Ao contrário de investir em quebras de expectativas, o corroteirista e diretor Paco Plaza (da trilogia iniciada por [REC] – fica a dica), doa-se completamente à construção delas. Há, sem dúvidas, subversões de gênero, mas o filme está mais disposto a construir um horror crescente, sem descanso, típico do cinema espanhol – algo como faz o ótimo Um Contratempo (indicação fora do gênero do terror).
O trabalho cuidadoso e consciente de Plaza edifica bases sólidas para o filme de uma forma única: é um terror, de fato, que traz o sempre revisitado tema da possessão demoníaca, mas é claramente realizado com muito carinho e naturalidade. Pode ser perceptível que, nem tão em segundo plano, Verônica: Jogo Sobrenatural é sobre os “monstros” que despertam durante a adolescência.
Hereditário (de Ari Aster, 2018) é um passeio retorcido pela consciência e também pela inconsciência, construindo uma cadeia sensorial que tem o poder de afetar a quem se deixar imergir (como o é Midsommar: O Mal Não Espera a Noite, também de Ari Aster). Desse modo, surgem motivos para repulsa, enjoar-se, rir, chorar e temer. Ao mesmo tempo que, para quem é adepto às dezenas de jump scares (aqueles sustos causados pelo som repentinamente forte da trilha sonora) do terror mais genérico e não se deixa levar pela atmosfera proposta, as pouco mais de duas horas podem ser difíceis e cansativas.
E é justamente aí que reside mais um mérito de Hereditário: essa dificuldade de assisti-lo não é à toa. Aster demonstra ter controle total sobre a sua história e sobre o poder que ela tem de causar desconforto. Se houver resistência em assisti-lo, haverá uma inevitável fadiga; se houver entrega, as duas horas parecerão curtas demais e a sensação também será de desconforto – mas um desconforto de quem está resistindo e prestes a experimentar um novo sabor favorito de suco. Por outro lado, é óbvio que Hereditário não se resume a um suco, mas é a questão sensorial, de envolver os cinco sentidos, que se reflete nessa metáfora. É um filme que (in)conscientemente se pode ver, escutar, tocar e sentir cheiro e gosto. Cada um ao seu jeito.
Escrito e dirigido por Leigh Whannel, de O Homem Invisível, Upgrade: Atualização (2018) deve ser, junto a Creepy, um dos filmes menos conhecidos da lista. É engraçado como essa obra de Whannel foi taxada por uma parcela da crítica americana de “estranha” e, por isso, “esquecível”. Talvez seja justamente por ser estranho que o filme precise de uma segunda ou terceira chance.
A verdade é que, aqui, exige-se um desprendimento saudável de qualquer realidade. A ideia é saborear o exagero, a extravagância (como em Mandy: Sede de Vingança – outra dica que poderia estar na lista facilmente). Pode não ser exatamente assustador, mas é uma narrativa homem-contra-tecnologia das mais divertidas. Computadores sádicos, bactérias nanotecnológicas, referências a David Cronenberg na caracterização de armas, lutas que parecem coreografadas por Michael Jackson. É, de fato, um filme a ser redescoberto e entendido dentro do seu próprio universo. Pode não ter a melhor das qualidades, mas, ao mesmo tempo, pode ser sensacional.
Se o caso é unir terror divertido com gore e reflexões político-sociais, nada melhor do A Mata Negra (de Rodrigo Aragão, 2018). Construindo toda a base da história através do folclore nacional, o diretor e roteirista insere elementos dos mais variados, que vão das garrafadas que fazem referência à lenda d’O Diabinho da Garrafa (também conhecida como Famaliá, Diabinho Familiar, Cramulhão, ou Capeta da Garrafa) ao próprio Livro de São Cipriano, que trouxe essa lenda do Famaliá de Portugal para o Brasil.
O ocultismo do Capeta da Garrafa, que envolve um ovo de galinha a ser fecundado pelo próprio demônio, serve como base para toda a trama, desaguando em um terceiro ato que é, além de sanguinolento, de uma consciência para a diversão do público que beira a genialidade. Destaque para a jovem galinha possuída que ataca os rostos dos personagens e parece uma referência (cômica) ao facehugger de Alien, o Oitavo Passageiro (de Ridley Scott, 1979).
Completamente desprezado pela Academia nas indicações para o Oscar 2020, especialmente a atuação de Lupita Nyong’o, Nós (de Jordan Peele, 2019) é construído sob a luz da realidade, e é nessa luz que está o seu maior terror. De qualquer forma, sua camada mais superficial, a da fantasia, é desenhada com um cuidado meticuloso. Essa junção tem força para dar a impressão (pretensiosa e acertada ao mesmo tempo) de que seu criador (Jordan Peele, que também está à frente de Corra! – outro que poderia compor a lista) tenta agradar a gregos e troianos. Mas, afinal, o filme consegue ser sobre nós e sobre “eles”… e é assustador o que está no subterrâneo das entrelinhas: o fato de que, socialmente, sempre há espaço para que sejamos eles e o “nós” sejam outros.
Talvez esteja na lista pelo fato de sua mais do que relevante força atual; talvez esteja por aqui como um aviso de: se puder, corra para assistir no cinema. O Homem Invisível (de Leigh Whannel, 2020) deixa claro que qualquer incapacidade de reação da vítima não precisa e não pode ser uma regra e que o fundamental é a extinção de todo tipo de abusador. No filme, como terror coerente que é, a retaliação vem pintada de vermelho e com a arma do inimigo. É somente uma metáfora sobre a certeza de uma mulher que, mesmo cansada, decide pôr fim ao seu sofrimento: a morte do fantasma – o extermínio do mal – como início de uma nova vida.
Agora, ficam aí os comentários. Foi difícil fazer uma lista tão subjetiva, mas tenho certeza que vocês podem complementar e enriquecer tudo. Ficaram muitos filmes de fora – como o excepcional e carpenteriano Corrente do Mal (de David Robert Mitchell, 2014) –, então vamos conversando, debatendo… de repente, aumentando a lista.
Bons e ruins filmes para nós!
A Academia Mossoroense de Letras deixou de eleger o poeta Antônio Francisco para uma das suas cadeiras vagas. Quem perdeu não foi Antônio Francisco, foi a Academia.
Homem simples, avesso a formalidades, ele se inscreveu já no final do prazo regimental e absteve-se de comunicar a sua candidatura aos acadêmicos. Esta a razão porque contou apenas com seis votos – alega-se. Mas, na verdade, procedeu certo.
Todos o conhecem em Mossoró, sabem do seu valor; não era preciso que fizesse comunicações, muito menos pedisse votos. Deveria ter sido eleito por aclamação, sob uma salva de palmas.
Antônio Francisco vale por uma academia.
Darcy Ribeiro já disse que Oscar Niemeyer é o único brasileiro a ser lembrado, no mundo todo, daqui a mil anos. Desnecessário ressaltar a autoridade, e o peso das palavras do mestre Darcy, especialista em brasilidade. Acho que toda pessoa medianamente informada concordará com o famoso escritor e antropólogo. Pode ser que alguém junte ao nome do arquiteto o do compositor e maestro Villa-Lobos. Seria razoável.
Mas, o que é fato é que ninguém contesta sua enorme importância. Niemeyer distingue-se, sobretudo pelos edifícios públicos, que projetou para Brasília, mas numerosas outras obras de sua autoria espalham-se por diversos países. Quase todas estas edificações, por serem verdadeiras joias arquitetônicas, são muito bem cuidadas, e não poucas tornaram-se atrações turísticas.
Há, no entanto, uma exceção. É triste dizer, caro leitor, mas esta se situa em nossa capital. Refiro-me ao monumento ao presépio, situado no bairro de Lagoa Nova. Desprezado pelos órgãos públicos ditos competentes, acha-se em lamentável estado de conservação. Dá pena vê-lo.
Qualquer outra cidade se orgulharia de contar com uma obra de arte admirável, como essa. Mas, Natal…
Destruiu-se quase tudo do monumento, inclusive o belíssimo mural de autoria de Dorian Gray Caldas. Urgem providências por quem de direito. É preciso dar um basta à desídia e à incultura.
Recuperado, o espaço poderá sediar os festejos natalinos e uma mostra permanente de presépios.
Leio pela primeira vez Anatole France – “As Sete Esposas do Barba Azul”, coletânea de contos muito interessantes, glosando histórias tradicionais, como a “Bela Adormecida”. Pena que o tradutor não seja bom, a julgar pelas cacofonias e frases desordenadas que comete, e pelo grande número de palavras estranhas. Anotei: gebo, enojosa, onusta, cinca, anosos, contemptor e outras preciosidades.
Para quem não sabe: Anatole France esteve na crista da onda lá pelas primeiras décadas do século XX, quando a literatura francesa ainda imperava, absoluta. O romancista de “Thaís” era reverenciado, em todo o mundo, como um semi-deus. Quando veio ao Brasil, em 1909, foi saudado por Rui Barbosa, na Academia Brasileira em meio a grandes festas. Marcel Proust, que muito o admirava, tornou-o personagem do seu famoso roman a clef, “Em Busca do Tempo Perdido”.
Hoje, a obra literária de Anatole France acha-se de tal modo esquecida, que, como todo enjeitado, deve ter sofrido alguma injustiça, por parte das novas gerações.
Encontrei nos meus “alfarrábios” um papel velho com anotações sobre patronímicos. Sou curioso do assunto.
Que vem a ser patronímico? Segundo o Dicionário Aurélio, é “o sobrenome derivado do nome do pai”. Assim: Fernandes de Fernando; Bernardes de Bernardo. Curiosamente, vários patronímicos encontráveis atualmente em Portugal e no Brasil (e nos demais países lusófonos, presumo) derivam de nomes arcaicos, há muito em desuso. Por exemplo: Lopes de Lopo; Gonçalves de Gonçalo; Mendes de Mendo; Martins de Martim; Fagundes de Fagundo; Paes de Paio; Soares de Suário; Teles de Telo; Dias de Dídico (!).
Ao contrário, há nomes comuns & patronímicos obsoletos: João (Joanes), Pedro (Peres), Bento (Bentes), Estevam (Esteves), Ramiro (Ramires).
É interessante observar que, em Portugal, proliferam Nunos, mas, ao que me consta, há poucos Nunes lá, enquanto que, no Brasil, sucede o inverso: muitos Nunes e quase nenhum Nuno. Isto se explica: Nuno é o nome de um herói nacional português, D. Nuno Álvares Pereira, guerreiro e santo, canonizado pelo Papa João Paulo II.
A título de curiosidade relaciono a seguir outros patronímicos: Álvares de Álvaro; Rodrigues de Rodrigo: Henriques de Henrique; Lins de Lino; Marques de Marcos; Simões de Simão, Vasques de Vasco.
Em seu livro “As Amargas, não…” – deliciosa mistura de memórias, diário íntimo, aforismos, notas de leitura e de viagens –, Álvaro Moreyra refere-se a um caricaturista mexicano de renome nas primeiras décadas do século XX, Figueiroa.
“Sempre que um pobre lhe estendia a mão, gritava – Não peças esmola. Proteste – Sentia, como o escritor Marteau, que a caridade é injuriosa e contrária à fraternidade humana. Não se trata de dar. Trata-se de restituir. Nada de enternecimentos por conta. O que é preciso é a justiça completa, a quitação. Não se cogita de melhorar a condição dos pobres, sim de suprimir a condição dos pobres”.
Eu também penso assim. Mas, reflito, como “suprimir a condição dos pobres”? Parece-me que isto só será possível num sistema econômico justo, equitativo. Não no capitalismo, não no comunismo. Qual, então? A História dirá.
A construção de um universo cinematográfico requer alguns sacrifícios. O maior e mais transparente deles é fazer com que vários filmes consigam, juntos, chegar a uma unidade, mesmo que existam mudanças na cadeira da direção. Nesse sentido, os filmes passam a ser uma obra mais da produção do que da direção. Suprime-se o artista individual para dar voz à individualidade do conjunto. O maior exemplo disso – na história do cinema – é Kevin Feige frente ao Universo Cinematográfico Marvel: por mais que os diretores tenham alguma liberdade, ela precisa ser exercida dentro de um contexto planejado e programado.
A Universal planejava algo parecido. A criação de um universo que interligasse seus monstros, o Dark Universe, parecia certa antes do lançamento do primeiro filme, A Múmia (de Alex Kutzman, 2017). O filme morno e o desempenho nas bilheterias bem abaixo do esperado acabou sabotando a ideia. Mas, talvez, o maior erro tenha sido imaginar que o terror e o suspense, sempre marcados pela genialidade dos seus diretores – Mario Bava, George A. Romero, Alfred Hitchcock, Dario Argento, José Mojica Marins, John Carpenter e, mais recentemente, Kiyoshi Kurosawa, Robert Eggers e Ari Aster (e tantos outros) –, iriam conseguir contornar a individualidade artística e as necessidades individuais de cada história.
O Homem Invisível é, assim, um recomeço, a tentativa da Universal de atualizar seus monstros de forma isolada. Por essa perspectiva, a escolha de Leigh Whannell para a direção é um tanto quanto simbólica, visto que ele é o roteirista e protagonista de Jogos Mortais (2004), filme que deu uma boa revigorada no gênero.
Whannell, que demonstra conhecer tanto o material literário original de H.G. Wells quanto as necessidades atuais – porque o cinema, como arte, pode moldar a sociedade assim como a própria sociedade pode moldar o cinema –, não parte pelo caminho do remake; ele não refaz O Homem Invisível (de James Whale, 1933) ou O Homem sem Sombra (de Paul Verhoeven). Seu trabalho é uma releitura por outra visão: a visão de uma vítima do protagonista. Enquanto os anteriores focam nas questões morais e na ética do personagem-título, a decisão aqui é por seguir Cecilia (Elizabeth Moss) e, pela ótica dela, chegar ao terror.
A abertura é de um simbolismo que, de algum modo, remete ao cinema de Kurosawa (Kiyoshi, não Akira). As ondas que ritmadamente e com violência chocam-se em uma rocha, perto de uma praia, somente introduzem a casa no alto da colina, onde a violência não é regida pelas fases da lua (como as marés), mas é praticada de uma maneira que pode ser muito mais devastadora.
As agressões físicas, aliás, são tratadas pelo roteiro (também de Whannell), como algo menor, o que fica claro em uma conversa em que Cecilia comenta superficialmente (impossibilitada pelo trauma) sobre como Adrian (Oliver Jackson-Cohen) ter batido nela enquanto estiveram juntos ser somente uma pequena parte de tudo.
A fuga de Cecilia. (Imagem: Universal Pictures)
Whannell aproveita (no melhor sentido) cada reflexão de Cecilia para ressaltar a grandeza de Moss. A atriz, que, em outra esfera – nas séries Mad Men e The Handmaid’s Tale –, já viveu algo parecido, é exposta a closes com uma constância fora do normal. Dificilmente, essa abordagem da direção seria tão eficiente com uma protagonista menos competente. O talento de Moss, inclusive, alimenta cada trecho de O Homem Invisível, também devido ao tratamento dado por Whannell, que, ao decidir seguir a visão da protagonista, em nenhum momento permite que o espectador duvide dela.
Dentro dessa lógica, o diretor coloca o público como uma terceira pessoa, como cúmplice dos tormentos passados por Cecilia. Em nenhum momento, ele (Whannell) investe em câmera subjetiva (na primeira pessoa de Cecilia). Embora seja possível, vez ou outra, olhar para onde ela está olhando, nunca a imagem assume os olhos da personagem de Moss. Há um cuidado milimétrico para que tudo o que é mostrado seja através de uma observação externa, que nunca tem espaço para duvidar dela (de Cecilia) ou para concordar com qualquer deficiência ou alteração mental sua.
Nós vemos o que Cecilia vê. (Imagem: Universal Pictures)
É tudo muito consciente na construção do filme. Whannell, que escreveu e dirigiu o recente e pouco comentado Upgrade: Atualização (2018) – terror que merece ser visto como um dos melhores dos últimos anos –, demonstra ter habilidade suficiente para que a unidade de O Homem Invisível esteja totalmente em harmonia. A música de Benjamin Wallfisch (de It: Capítulo Dois e Hellboy), por exemplo, não é nada sutil ao criar a atmosfera de terror. Wallfisch, sob a direção de Whannell, ressalta a presença do invisível com uma força sonora construída à base da repetição de ostinatos – como se ao lembrar que tudo não passa de uma repetição do que acontece na vida real constantemente – e com graves pesados, cordas sintetizadas, que parecem recair sobre os ombros de Cecilia.
Tudo isso para desenhar o poder destruidor do abuso sofrido por mulheres dentro de suas casas. Existem momentos que, de algum modo, fazem algumas facilidades do roteiro para que o filme continue serem notadas, o que, infelizmente, possibilita uma desconexão com o todo – o celular que é deixado com vibração no sótão e é completamente desprezado como prova; a caneta do hospital psiquiátrico que, suja de sangue, é igualmente menosprezada; o sangue no frasco de Diazepam; o policial que é deixado vivo no estacionamento; a gravidez… tudo para que, enfim, seja revelado que o personagem título está muito além de um traje óptico. Qualquer prova colhida com antecedência, no final das contas, reduziria essa produção da Blumhouse em, de repente, 30 minutos.
E é interessante, então, como até isso pode construir um paralelo fundamental para o tema: ainda que existam obviedades no caminho, livrar-se de uma relação abusiva pode não ser fácil. Um espectador como eu, na poltrona do cinema ou em casa, tranquilo (ou nem tanto), assiste a tudo, como dito, como uma terceira pessoa, mas é Cecilia que está sofrendo e só é possível entender a carga de sentimentos e sensações daquela mulher se você já passou por algo parecido. Claro, não com alguém com a capacidade de ficar literalmente invisível, mas com um indivíduo com poderes reais de invisibilizar o outro, devorando-o psicologicamente até restar somente o trauma de pisar na rua; alguém que, de um jeito invisível, vai adentrando em sua mente, devorando quem você foi, é, gostaria de ser… até sobrar somente o cansaço, a incapacidade de reação.
Quem vive tudo em primeira pessoa é Cecilia. (Imagem: Universal Pictures)
No fim, somente a vítima pode reagir e o agressor não irá se incriminar facilmente. O Homem Invisível deixa claro, com seu final que pode gerar alguma leitura controversa, que a dita incapacidade de reação não precisa e não pode ser uma regra e que o fundamental é a extinção de todo tipo de abusador. No filme, como terror coerente que é, a retaliação vem pintada de vermelho e com a arma do inimigo. É somente uma metáfora sobre a certeza de uma mulher que, mesmo cansada, decide pôr fim ao seu sofrimento: a morte do fantasma – o extermínio do mal – como início de uma nova vida.
Texto originalmente publicado no Canaltech
Sempre gostei de anotar fatos importantes e informações úteis em meus caderninhos.
Hoje, ao acordar, recebi uma mensagem do meu velho amigo Jorge, preocupado comigo porque tinha assistido na TV sobre a forte chuva de ontem em Mossoró; mais de 100 mm/m² de chuva, que causaram certo estrago na cidade.
Tranquilizado Jorge (aqui ontem choveu só 2,5 mm/m²), fui conferir em meus caderninhos as maiores chuvas no Sítio Araras*, ao longo dos anos que estou registrando isso.
Desde outubro de 2015, quando comecei a anotar sistematicamente cada chuva, as maiores precipitações foram registradas nesses dias:
10 mar 2017 ………….. 76 mm/m²
20 jul 2017 …………….. 72 mm/m²
1º mar 2017 …………… 70 mm/m²
16 abr 2018 …………… 70 mm/m²
Folheando os caderninhos, as memórias voltam à tona. Essa chuva gigante em julho de 2017 foi absolutamente inesperada, pela época e tamanho. Eu estava acampado com Cabeça, a cadela que me acompanha nessas peripécias, pouco distante da ponte de Alto do Rodrigues/RN, última noite de uma aventura de seis dias em canoa.
À tarde já tinha dado para ver que ia chover, assim preparei o acampamento para aguentar a chuva. No começo, principiou a cair uma chuvinha normal, mas com o passar do tempo engrossou muito e tive que guardar todo o equipamento, desarmar a rede e aguentar o pior. Com um arroz e batata já cozinhado e um café quente pronto, ficamos, eu e Cabeça, umas duas horas e meia por baixo da lona dobrada apenas por cima da gente; eu sentado no banquinho baixo e Cabeça num pedaço da lona seca, os dois pensando: será que vai parar quando?
Trovejou e relampejou muito, mas não caíram raios nas redondezas do Campo K naquela noite; isso creio que foi graças à pitada de boa sorte que a gente nunca deve esquecer de carregar no bolso, partindo por uma aventura.
Baixou de intensidade, afinal, e deu para voltar ao formato “acampamento de chuva” normal, para passar a noite dormindo ao seco na rede, mas só parou mesmo de chover quando deu as dez da manhã do dia seguinte.
Quando, nesse mesmo dia, terminada a aventura voltamos em casa, encontrei o registro da chuva no pluviômetro do quintal e me dei conta do tamanho da chuvarada que a gente aguentou lá no mato, à beira do rio. rss
* Sítio Araras é a vila de pescadores, no município de Itajá/RN, na qual moro desde outubro de 2015. Comprei minha casinha em junho de 2008, a utilizei por anos como base de partida para minhas aventuras em canoa e, em 2015, me mudei pra cá de vez.
E-mail: Sergiovilarjor@gmail.com
Celular / Zap: (84) 9 9929.6595 Fale Conosco Assessoria Papo Cultura