Saudações, cervejeiros!
Vamos começar o texto de hoje com um MEGA SPOILER : o texto de hoje é polêmico !
Então, tirem as crianças da sala, se você é cardíaco ou tem alguma sensibilidade exacerbada a temas polêmicos feche a aba do seu navegador imediatamente !
Brincadeiras à parte, vamos falar hoje de um tema… sensível! O uso de canecas térmicas para se beber cerveja (artesanal)! Tais utensílios cervejeiros se popularizaram nos últimos tempos pelo nome da sua marca mais famosa, assim como ocorre com a esponja de aço (comumente nomeada de Bombril ) e com a lâmina de barbear (mais conhecida popularmente como Gillete ), algo comum em um segmento mais específico dominado por um grande player . As canecas em apreço se tornaram mais conhecidas como Copo Stanley , em suas mais diversas variações (com tampa, sem tampa, com alça, sem alça, com tampa e alça, sem tampa com alça, etc, etc…).
O ponto central do debate de hoje se focará na premissa básica: por que não se deve utilizar tal utensílio em detrimento de um copo de vidro? Talvez o título do texto devesse ser: em defesa do copo americano (ou lagoinha, dependendo da sua localidade, ele pode ser conhecido por essa alcunha), mas, a polêmica vende mais do que um título mais comedido. Então, soa mais bombástico usar um título mais chocante: daí o manifesto em apreço.
(Claro, o tal do Carlos Marques[1] sempre me inspira…).
Então, vamos ao debate!
Copo ou Caneca para Cerveja não precisa ser térmico
Para quem não conhece, vou providenciar uma breve descrição do Copo Stanley. Ele é um copo (uma caneca, a depender do modelo), térmico, concebido em 1993 e depois tornado popular e bastante conhecido por ser o recipiente de armazenamento térmico utilizado pelo exército norte-americano em incursões e missões militares. Basicamente, um utensílio de guerra, mas, hoje, fartamente utilizado por neófitos cervejeiros para bebericar seus líquidos lupulados preferidos (ainda que indevidamente, ressalte-se ).
O Copo Stanley padece de alguns pecados, e vamos elencá-los um a um. O primeiro deles é a desnecessidade de se beber uma cerveja em um copo que tenha como premissa básica manter a temperatura constante/mente (gelada). Isso é algo totalmente fora de propósito para quem se propõe a beber uma cerveja artesanal e apreciar todas as suas nuances de aroma e de sabor. Colocar o líquido sagrado das multidões dentro de um recipiente que tem como premissa básica não deixar a cerveja esquentar equivale a matar a alma da própria bebida, retirar-lhe seu propósito de ser uma bebida alcoólica propriamente dita.
Talvez se você estivesse em uma expedição no meio da mata selvagem totalmente fechada, fosse necessário manter um líquido (no caso, a cerveja) por baixas temperaturas para conservá-lo por mais tempo. Mas, supondo que ninguém vai degustar uma cerveja artesanal no meio da floresta amazônica longe de qualquer refrigerador ou geladeira, o uso do Copo Stanley como meio de conservação da bebida por longos períodos de tempo (acima de 8 horas, por exemplo), é algo totalmente desnecessário e descabido .
Outro ponto acerca da temperatura que deve ser ponderado é que o seu acréscimo faz parte do processo de degustação da cerveja. O aumento da temperatura tende a volatilizar compostos que não podem (ou não tendem a) ser percebidos em temperaturas mais baixas. Faz parte da evolução sensorial da cerveja no copo que ela esquente . Todavia, a mitologia popular brasileira diz que cerveja só presta se for servida (e mantida) estupidamente gelada . A única coisa estúpida em tal premissa mitológica é o adjetivo “gelada”. Nesse ponto em apreço, certamente, o Copo Stanley cumpre o que promete, ele vai manter sua cerveja (ou qualquer outro líquido que você colocar dentro dele) gelado por bastante tempo, quiçá horas. O problema é que isso é algo totalmente desnecessário para quem almeja ter uma experiência sensorial mais profunda ao degustar sua cerveja.
Ver o líquido faz parte da apreciação sensorial da cerveja
O segundo pecado que se comete ao se beber uma cerveja artesanal em um Copo Stanley diz respeito à perda sensorial causada pela estrutura do próprio recipiente térmico. Isto é, em virtude do material que o compõe (aço, através do qual não se pode ver), o Copo Stanley não permite que o líquido das multidões seja visto, simplesmente porque ele não é translúcido.
Há quem pense que é besteira não poder ver a cerveja enquanto ela é bebida. Todavia, ao se degustar apropriadamente uma cerveja artesanal o que se faz é uma análise sensorial do líquido sagrado. Como o próprio nome alude, a análise leva em conta todos os sentidos humanos. Certamente, alguns sentidos são mais exigidos que outros durante a degustação, enquanto o paladar e o olfato são mais destacados para poder apreciar uma cerveja, o tato, factualmente, é o sentido menos explorado nessa empreitada, servindo mais como medidor direto/táctil da temperatura. A audição você poderá utilizar na última seção do texto, utilizando a dica de música para harmonização.
Ainda que a visão não seja o sentido mais exigido em uma análise sensorial, sendo o terceiro em escala de intensidade , ela ainda ocupa um bom destaque para que se possa analisar a cerveja que está sendo degustada. Através de um medidor de EBC (European Brewery Convention ou SRM – Standard Reference Method , que são duas escalas para medição da cor das cervejas) pode-se classificar melhor o estilo da cerveja em degustação. A legislação brasileira utiliza a EBC como padrão. Exemplificativamente, pela EBC , uma cerveja é considerada clara quando apresenta um índice de até 20 EBC . Utilizando-se um Copo Stanley é bem difícil sequer categorizar uma cerveja como clara ou escura, algo simplório e deveras básico, embora uma qualidade que esse utensílio é capaz de subtrair a quem está degustando a cerveja.
Ao se consumir uma cerveja em um Copo Stanley se perde boa parte do sensorial da visão, afetando claramente o julgamento a respeito da cor do líquido. Assim, exemplificativamente, não é possível aferir a qual estilo a cerveja pertence. Outra coisa que pode passar despercebida (ou ser encoberta) através do uso do Copo Stanley é a questão da retenção da espuma ao servir a cerveja. O copo em referência pode fazer com que a espuma se dissipe com mais rapidez, em virtude do seu material térmico, bem como pode encobrir alguns defeitos da própria cerveja, pois ela pode estar flat (ou seja, sem carbonatação e/ou espuma alguma) e se fazer pensar que esse foi um resultado do uso do Copo Stanley ao se apreciar a cerveja.
Ver a cerveja é algo essencial para uma degustação mais detida e aprofundada da cerveja. Quando o Copo Stanley tolhe essa possibilidade ele retira uma boa parte da experiência que se pode ter ao apreciar uma cerveja artesanal, fazendo com que o ato de beber a cerveja se torne trivial e inexpressivo. Ver a cor da cerveja é fundamental para enquadrá-la em seu estilo e assim poder ter uma análise sensorial mais aprazível.
Copo Stanley é modinha!
A popularização do Copo Stanley nem é feita necessariamente em virtude de suas qualidades técnicas como um bom recipiente térmico, já que existem alguns outros concorrentes (na categoria Copo de Aço Inox 18/8 com parede dupla e isolamento a vácuo), como, por exemplo, os da marca 360° ou da CamelBak , que são mais eficientes em seu mister, mas pouco conhecidos e/ou utilizados para se beber cerveja. Sua popularização é advinda de outros predicados menos técnicos, por assim dizer.
O Copo Stanley acabou por adquirir certo status de ser um produto elitizado para se consumir cervejas. Sua popularidade se espraiou de maneira a dar entender que beber cerveja em um Copo Stanley é sinônimo de prestígio e de ostentação , embora, de fato, ele não sinalize ser o recipiente mais indicado para se consumir sua cerveja, ou melhor, para se degustar sua cerveja artesanal com vistas a se ter uma análise sensorial mais apurada.
Assim, acaba sendo mais interessante mostrar e se exibir com um Copo Stanley na mão do que efetivamente saber qual o líquido que está dentro dele. O Copo Stanley simboliza muito mais do que um simples acessório cervejeiro, ele acaba virando uma representação totêmica (e fálica, diria Freud) da ostentação de quem está bebendo a sua cerveja dentro de um copo que sequer se permite saber qual a cor do líquido em questão.
Exibir um Copo Stanley é mais importante do que mostrar qual cerveja está sendo degustada, se ela está na temperatura correta de serviço ou se de fato ela não apresenta nenhum defeito de carbonatação ou de retenção de espuma. É como se o Copo Stanley fosse capaz de extirpar todos esses detalhes em prol da atomização cervejeira. É desimportante o líquido cervejeiro, mais importante é mostrar que o copo é um Copo Stanley!
O Copo Stanley é a simplificação extrema do ato de degustar uma cerveja (artesanal) em prol de uma (pseudo) ostentação . Tal fato é impulsionado pelos valores cobrados por um desses produtos térmicos, já que não é incomum que ele seja vendido por pelo menos duas centenas de reais – ao passo que um copo americano custa uns 5% do valor de um Stanley . Um verdadeiro opróbrio, uma bazófia cervejeira desmedida, já que a premissa da conservação térmica é irrelevante, e sua vedação e conservação são irrisórias para fins de análise sensorial da cerveja a ser bebida.
Saideira
Inexiste um fundamento sequer que seja válido para que se troque o famoso copo americano ou copo lagoinha para se beber uma cerveja artesanal por um famigerado Copo Stanley (ainda que o mais apropriado seja um copo para cada estilo de cerveja, uma taça de Weiss para uma Weiss , por exemplo). Afinal, todos que preferem o Copo Stanley não o fazem porque ele é capaz de oferecer algo melhor , algo que favoreça uma degustação mais aprofundada da cerveja que está sendo apreciada, pelo contrário, usar esse copo para bebê-la apenas traz decréscimos.
Como já pontuado, o Copo Stanley adquiriu um status de produto diferenciado e de ostentação , e talvez esse seja o único “fundamento” para que ele seja usado, já que sua conservação térmica é algo totalmente improcedente, quando se fala de análise sensorial de cervejas. Derradeiramente, podemos notar que a fama do Copo Stanley já se espalhou, e a cotação do seu preço segue o burburinho, retroalimentando a premissa da ostentação (pseudo) cervejeira em torno do acessório térmico.
Os detratores do Copo Stanley alegam que é uma grande frescura utilizá-lo. Não diria que é frescura , apenas digo que é desnecessário e supérfluo . Fica a fica, troquem seu Copo Stanley por um copo de vidro qualquer, só por ser de vidro já faz com que seja melhor e mais adequado para apreciar melhor sua cerveja que qualquer recipiente térmico da moda.
Recomendação musical para degustação
É impossível não reconhecer que o texto é polêmico , já que existem muitos defensores e apreciadores do uso do Copo Stanley para beber cerveja.
Em virtude do teor polêmico do texto, e de suas repercussões, a música escolhida é o clássico do Megadeth : Peace Sells do álbum Peace Sells… But Who’s Buying?
Traduzida diretamente como: “A Paz vende… Mas quem está comprando?” Fica a rebatida: Copo Stanley vende, mas quem está comprando?
(Resposta: seu amigo ostentador que acha Heineken amarga).
Ademais, o clássico álbum do Megadeth completou no último domingo (19/09/2021) 35 anos de seu lançamento, constando, portanto, o registro da minha homenagem a esse hino oitentista do thrash metal americano.
Então, pegue seu copo de vidro, abra uma cerveja, e apreciem! Saúde!
VIDEO
[1] Ou melhor dizendo: Karl Marx , famoso pela sua obra: Manifesto do Partido Comunista , em parceria com Friedrich Engels.