TERRA ESTRANGEIRA: Os ventos gelados da Sibéria

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Villingen-Schwenningen – Alemanha, 29 de Janeiro de 2017.

A neve já começou a derreter e a temperatura, desde ontem, subiu um pouco. Segundo os pais de Helena o inverno desse ano está sendo mais frio do que os dos anos anteriores. Tivemos sorte de chegar na Alemanha no tempo certo, um pouco depois que a poderosa onda de frio polar passou pelo continente no começo de Janeiro e antes que o calor da primavera derretesse toda a neve, enlameando o cenário.

No fim da tarde de ontem Victor, o pai de Helena, nos levou para passear e ensinar às crianças como se faz um boneco de neve. O boneco não ficou muito grande porque a consistência da neve não parecia boa o suficiente, mas, apesar da feiura evidente, recebeu elogios por parte do nosso simpático anfitrião.

Na verdade, Victor Deick, um senhor de mais de 80 anos, não nasceu na Alemanha, mas sim, na União Soviética, nos anos trinta do século passado. Sua ligação com o frio e a neve parece ser tão atávica quanto a minha ligação potiguar com a areia das dunas. Enquanto caminhávamos pela área ao redor do conjunto de apartamentos em que a família Deick vive, Victor me chamou atenção para os pés de um sujeito que passou por nós e nos cumprimentou. O cara, que aparentava ter mais de sessenta, estava, num frio de menos onze, passeando de sandálias (obviamente usando meias).

Não pude conter a cara de espanto.

___ Ele é da Sibéria – Victor me disse com um sorriso discreto –  passeia desse jeito para humilhar os alemães.

Pensei na hora que pisar na neve de sandálias pode ser como o polo invertido de se pisar na areia quente de uma duna ao meio dia com os pés descalços. Um tipo de desobediência anatômica contra os imperativos do clima.

Pude experimentar melhor isso à noite, quando, munidos de lanternas e bem aquecidos com casacos grossos, fomos passear em um pequeno bosque, um fragmento da Floresta Negra, que fica entre os blocos de apartamentos que se espalham pela vizinhança dos Deick.

Aquela região parece ser toda assim. Cheia de fragmentos da velha floresta entrecortados por bairros residenciais, campos congelados de feno, galpões de pequenas indústrias e estábulos com cavalos e bois.

Caminhando por aquele fragmento da velha natureza selvagem em meio a uma terra imersa na mais intensa civilização da técnica que eu já tive oportunidade de conhecer, pude perceber uma desconcertante simetria. Mesmo na escuridão e no silêncio, em meio às sombras das árvores ancestrais que se projetam rumo ao céu como colunas de madeira que emergem do chão gelado,  por entre um labirinto de galhos secos, hibernando letargicamente à espera da primavera, mesmo sobre esse céu estrangeiro do norte, havia, espantosamente, uma certa geometria, o que me fez pensar que na verdade alguém poderia ter plantado aquele bosque, tornando-o menos selvagem e mais artificial.

A cobertura florestal da região era toda composta de árvores grandes, provavelmente de uma mesma parentela vegetal. Essas árvores se afastam umas das outras formando um dispositivo geométrico curioso. Pelo meio da neve, entre uma clareira e outra, é possível caminhar por entre essas árvores, sem a necessidade de algum facão para abrir picadas. Curioso é que, ao contrário das caóticas muralhas verdes que compõem as matas da minha terra, a Floresta Negra parece se assemelhar ao povo alemão, fascinado pela ordem e pela harmonia geométrica. Pensei que essa disposição da floresta, parecia desdizer as especulações de Martin Heidegger: aqui a terra e a técnica parecem ser irmãs.

Isso ficou mais claro pra mim hoje, quando fomos assistir ao desfile de Carnaval pelas ruas do centro de Villingen, a metade mais urbana daquela cidade geminada.

A folia germânica não me pareceu lá muito dionisíaca. Lembrava mais um desfile de sete de setembro, só que com gente trajada com roupas do século XVIII e fardas do exército imperial da época de Bismarck. Também vi pessoas fantasiadas de ogro, de bruxa, elfo, anão e duende; o que me fez pensar naquele carnaval quase como um cosplay da série Senhor dos Anéis.

A certa altura apareceu um grupo de “diabos” vermelhos estalando chicotes no ar e fazendo um barulho intenso, algo mais próximo das mitologias cristãs medievais, diga-se de passagem. Também desfilavam lentamente tratores e carroças cheios de gente fantasiada, jogando maçãs, tomates e até cenouras na pequena multidão de espectadores que se acotovelavam pelas estreitas ruas medievais da cidade em busca de um bom lugar na calçada para assistir o desfile.

Enquanto o cortejo passava, pessoas se projetavam pelas janelas abertas na fileira de prédios de três andares que se alinhavam no percurso gritando: “Narri Narrô!!”. O termo, segundo me explicou Helena, faz referência a um enigmático personagem, símbolo daquele carnaval, que bem que poderia ser uma reminiscência dos velhos deuses da Floresta Negra ou mesmo um aceno ao Dionísio grego e seu antigo furor iniciático.

De fato… a gente teve muita sorte. Esse ano a festa de Carnaval foi adiantada e caiu justamente no penúltimo dia da nossa estadia aqui na Alemanha. Ao invés de acontecer em Fevereiro, como é habitual, a festa de “momo” na cidade, foi transferida para o final de Janeiro em função da data comemorativa dos 1250 anos da “Fasnacht”, a celebração de carnaval em Villingen. Sim… isso mesmo que você leu, amigo velho: 1250 anos de festa.

No ano de 767 da era comum, em pleno período da consolidação dos reinos germânicos sobre o espólio territorial do finado império romano do ocidente, a festa começou e continua sendo realizada até hoje, reunindo bandas de rua da Suíça, da França e de todo sul da Alemanha. Curiosamente, a despeito do peso desses 1250 anos, a festa parece se renovar com mais de 60 grupos desfilando com seus instrumentos, reproduzindo algo mais instigante do que as tediosas músicas folclóricas da Bavária que eu ouvi em Santa Catarina quando passei pela Oktoberfest no começo do século.

Passou até uma troça fazendo homenagem ao finado David Bowie, recém falecido, assim como alguns grupos tocando jazz ou batidas eletrônicas. Apesar disso, sem a profusão rítmica dos tambores do maracatu de Recife ou do Ilê Ayé de Salvador, tudo fica muito apolíneo e bem pouco marcado pela exuberância africana que a gente vê em nossos litorais brasileiros.

Apesar do carnaval alemão estar mais para Apolo do que para Dionísio, os pais de Helena não gostam da festa. Eles preferem o carnaval russo onde as fantasias são de animais como ursos, raposas e lobos. Como bons menonitas que são, não se sentem bem com as bruxas, os elfos, trolls, duendes e demônios que animam esse carnaval, católico e medieval demais, para a sensibilidade religiosa do casal.

Helena me explica, mais uma vez, justificando a opção dos pais, que seus ancestrais deixaram a Prússia no século XVIII e foram para a Bielorussia no tempo de Catarina, a grande. Durante a segunda guerra, nos anos de Stálin, seu pai, então com pouco mais de sete anos, teve de migrar para a Sibéria porque o líder da URSS, tomado pela paranoia que antecedeu a invasão nazista, temia que os alemães étnicos da Bielorussia aderissem ao exército de Hitler e passassem a lutar contra a “mãe Rússia”. No percurso até a Sibéria, o pai de Victor morreu de fome e frio e sua mãe, ao chegar na cabana em que iriam viver, desapareceu completamente após sair em busca de comida. Victor me conta que ninguém sabe o que aconteceu com ela. Simplesmente sumiu, desapareceu completamente da história dos filhos, talvez atacada por um urso ou presa em alguma armadilha de caça.

Victor, seus irmãos e irmãs (a mais velha com pouco mais de quinze anos), tiveram que sobreviver sozinhos à guerra, cortando madeira das árvores da floresta para aquecer a cabana no insuportável inverno siberiano e comendo o que encontravam na mata. No jantar de despedida que tivemos hoje, Victor me contou sobre o seu passado, sobre Stalingrado, sobre a tragédia da guerra, sobre os anos terríveis vividos durante o regime do camarada Stálin. Acabou também falando um pouco sobre sua perplexidade e incompreensão acerca do que se passou na sua infância.

___ Até hoje eu não sei como eu e meus irmãos sobrevivemos à guerra. Foi um milagre. – Curiosamente seu alemão é bem mais fácil de entender do que o dos Suavos “da gema”.

A certa altura pergunto se ele tem vontade de voltar à Rússia.

___ Claro… – ele me diz – É a terra em que nasci.

Aproveito o ensejo para tirar uma dúvida que tenho sempre comigo. Pergunto se ele acha que a Rússia de hoje está melhor ou pior do que a dos anos soviéticos. Ele e esposa são unânimes: está muito pior.

___ No tempo do comunismo, depois que Stálin morreu – Victor emenda – o sistema só tinha um problema: a perseguição religiosa. Mas a vida era melhor. Educação, saúde e segurança. Tudo era público. Hoje tudo é privado.

Já no fim do jantar, Helena (nossa amiga alemã), pede a Victor que ele recite alguma frase da literatura russa. Ele pede um tempo para pensar. Helena diz que o pai é apaixonado por literatura e lembra de trechos inteiros em russo dos livros que leu. Ficamos algum tempo ainda, todos em silêncio, à espera da frase. Victor então me fita, com um olhar de quem experimentou o sofrimento de um modo que eu nunca poderia imaginar e me presenteia, como despedida daquele encontro improvável e surpreendente que a vida me ofereceu, com uma frase de Dostoievski.

“Os filósofos esclarecem o que as coisas são, mas só a arte muda o mundo”.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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