A confusão entre notas de café e notas torradas na cerveja artesanal

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Saudações, cervejeiros que gostam de um bom cafezinho!

O texto de hoje é para vocês!

Hoje vamos falar de um tema que me chamou atenção após o lançamento da série Coffee Rocks, da cervejaria Croma. Não tenho a intenção de fazer um review das cervejas do pack nem nada parecido, contudo, algo muito comentando nas redes sociais se tornou o principal tópico de debate hoje.

Como o próprio nome da série mencionada já alude, tratam-se de cervejas que possuem como principal adjunto o café. É esse coadjuvante que será lançado ao estrelato no texto de hoje.

A minha principal preocupação no texto é trazer a desmistificação sensorial comum que é feita entre o aroma e o sabor de torra com as notas trazidas pelo café. Para melhor destrinchar esses elementos é de grande valia se ter algum conhecimento adicional sobre cafés especiais (ou artesanais, como queiram ser chamados).

No entanto, na ausência de tal conhecimento prévio, tentarei ser o mais didático possível, ao explanar um pouco mais sobre o tema. Afinal, confundir as notas sensoriais é algo que leva ao desentendimento, e o pior, conduz a críticas infundadas a uma cerveja ou a uma série cervejeira, como foi o caso de referência mencionado.

Então, pegue seu café especial ou uma cerveja artesanal (por que não os dois?) e acompanhe a leitura.

Notas sensoriais e ao que elas remetem

Uma das confusões mais comuns ao se degustar ou apreciar uma cerveja é achar que as notas sensoriais, sejam elas de aroma ou de sabor, advém diretamente daquilo que está sendo percebido. Por mais que não seja uma distinção conceitualmente acertada do ponto de vista filosófico (Hume e Kant que me perdoem), mas a sensação (da nota sentida) difere frontalmente da percepção daquilo que a originou, ou, ao menos, pode diferir.

Vou tentar ser um pouco mais didático de início. Mesmo quem iniciou há pouco tempo no mundo das cervejas artesanais já deve ter degustado alguma IPA que tinha como característica sensorial principal o frutado. As notas frutadas são um elemento crucial do estilo e são várias as frutas que se enquadram nessa nota sensorial.

O intento aqui não é se aprofundar em quais frutas são sentidas ou percebidas ao se degustar uma IPA, e, sim, compreender que ao se notar que existe um sabor ou um aroma frutado nela não quer dizer que ela foi produzida com essa fruta.

Sendo um pouco mais claro e específico, por mais que você note aromas ou sabores de frutas cítricas, como maracujá, manga ou laranja em uma IPA, isso não quer dizer que houve a adição dessa fruta na produção da cerveja.

Pelo contrário!

As notas sensoriais referidas, ao menos em uma IPA, derivam ou da esterificação promovida pelas leveduras ou pelo uso de determinados lúpulos que são capazes de conferir essas notas frutadas. Ou, ainda, como ocorre na maioria das vezes, na combinação entre os dois fatores produtivos.

Em síntese, a sensação frutada difere ontologicamente da percepção da fruta propriamente dita. Algo semelhante ocorre com o café.

Como explanaremos nas seções seguintes.

O perfil torrado nas cervejas

Apesar de o café ser um fruto e o malte ser a cevada germinada, isto é, um cereal, ambos passam pelo processo de torrefação. Esse processo é essencial para se atingir alguns perfis almejados, tanto na senda cafeeira quanto no mundo das cervejas artesanais.

Assim, a variar em função do estilo de cerveja almejado na produção, o malte pode ser mais ou menos torrado. O grau da torra impacta diretamente a cor e o sabor da cerveja ao final de todo o processo produtivo.

Existem, inclusive, maltes que passam por processos de defumação, além da própria torra inerente ao propósito pretendido. Tais maltes defumados são usados prioritariamente na produção de um estilo alemão peculiar, a Rauchbier (leia mais sobre o estilo AQUI).

É importante compreender que a torra do malte, principalmente (mas não apenas!) nos estilos que possuem uma densidade maior, chamados de High Gravity, costumeiramente mais fortes e encorpados, gera o perfil que costuma se atribuir às notas de café. Tal associação é geralmente feita nas cervejas do estilo Stout.

Saliente-se apenas que nem toda Stout é uma cerveja High Gravity, mas ela sempre possui a torra como característica principal de seus maltes, ainda que a tosta varie em intensidade.

Impende denotar que as notas de café (ou melhor dizendo torra, daí a confusão) atinentes ao estilo (Stout) não advém, a princípio, de nenhum adjunto. Tanto quanto as notas de chocolate também não dependem de adição do cacau processado, já que é comum que elas venham combinadas (café e chocolate pelas mesmas transformações físico-químicas na torrefação dos maltes de cevada.

Assim, a confusão está formada. Por mais que não exista a adição de café (ou chocolate) nas cervejas (do estilo Stout, por exemplo), o produto cervejeiro final é dotado de notas sensoriais que remetem ao café.

Contudo, porém e todavia, a simples não adição do adjunto em tela (café), não significa que as notas percebidas sejam de café, na maioria das vezes, é apenas a sensação de torra que nos faz pensar que há notas sensoriais de café.

A confusão mencionada, portanto, reside em confundir (ou tornar mandatória) a associação entre a torra e o café. Isso não significa que notas torradas possam remeter ao café, mas nem todo café utilizado como adjunto obrigatoriamente deverá trazer uma percepção mais aguçada de notas torradas.

O café pode trazer notas muito mais diversas e complexas do que simplesmente a mera noção de torra, a qual já pode ser trazida, naturalmente e secundariamente, pelas transformações no processo produtivo cervejeiro.

As notas sensoriais que o café pode oferecer

O café é capaz de trazer uma infinidade de aromas e sabores às cervejas. Diante dessa grande multiplicidade, e pela limitação de espaço para escrita e também de enfoque no objeto do texto, gostaria apenas de tratar de dois desses elementos.

Um deles, é a questão de aromas florais e frutados diversos do perfil de torra, que o café pode trazer; o outro, é a questão da acidez que o café pode incrementar nas cervejas.

Primeiramente, e talvez de modo mais importante, é de grande valia compreender que o café pode trazer muito mais do que adstringência, amargor e sabor torrado às cervejas. Certamente, as notas que se confundem com a própria torra são as mais fáceis de serem identificadas, e muitas vezes dizemos que a cerveja tem “notas de café” apenas porque sentimos a torra presente.

Todavia, além dessa percepção primária, o café é capaz de trazer notas florais e frutadas às cervejas, embora tais notas não sejam corriqueiramente salientadas.

Isso ocorre porque não se é costume imaginar que o café traga tais sensações (embora, quem costume degustar cafés especiais saiba que isso é mais comum do que se pensa), e também porque notas florais ou frutadas podem já estar presentes na cerveja (advindas do malte ou do lúpulo), de maneira que a participação do café é meramente de coadjuvante nesse ponto.

O café, por ser um fruto, pode trazer à bebida a qual ele está sendo adicionado, no caso do texto de hoje, à cerveja, acidez (em perfil cítrico ou málico). Em alguns estilos de cerveja, esse aporte de acidez (ou, diminuição no potencial hidrogeniônico – pH –, para ser mais correto tecnicamente) pode ser algo desejável, noutros, ele pode ser um aditivo não tão festejado.

No caso da série em apreço, que continha uma Barley Wine e duas Russian Imperial Stout’s, a questão da acidez trazida pelo café tende a ser problemática. Isso porque, nesses estilos de cerveja, comumente denominados de High Gravity, em função da sua alta carga de densidade, a acidez é um atributo, no mínimo, controverso.

Digamos que, esse é um assunto muito mais amplo, sobre o qual cabe um texto mais específico no futuro. É o bastante asseverar que, por ser problemática a elevação da acidez nas cervejas High Gravity, como as do kit Coffee Rocks, o café tem que ser utilizado e manejado de maneira bastante cuidadosa. Pois, a acidez dele proveniente pode comprometer o conjunto cervejeiro.

No caso do kit mencionado, a acidez não foi um problema, e o café se a trouxe, de forma muito sutil e bem suavizada, apenas foi capaz de tornar a cerveja ainda mais delicada e complexa. Sem nada mais a complementar, apenas o fato de que o café pode, de fato, trazer acidez a cerveja e esse ponto deve ser sempre um motivo de atenção no processo produtivo.

Confusão, degustação e desfecho: conhecendo melhor o café

A partir do que foi apresentado não é difícil apontar uma razão “histórica” pela qual o café é confundido com a torra quando há a sua adição nas cervejas.

Prioritariamente, a confusão deve ser atribuída à própria macro indústria do café, a responsável pela criação, distribuição e verdadeira instituição vernacular do “café de mercado”, aquele pretinho básico, amargo e com gostinho de barata que todos nós conhecemos.

Degustar uma cerveja com uma base maltada que possibilite a melhor percepção do café subverte a noção comum de que notas de café equivale a perceber apenas a torra. Quando o malte torrado é a principal característica e domina o conjunto, um café especial, de aromas e sabores mais delicados, acaba não tendo muito protagonismo e finda por ser rechaçado na análise sensorial.

O café precisa de espaço para abrilhantar a cerveja, e a torra excessiva ou desmedida acaba por encobri-lo e reduzindo-o a um mero acessório dispensável na cerveja. Conhecer melhor o café e suas notas sensoriais é a chave do sucesso para uma melhor adequação entre níveis de torra do malte e a percepção daquilo que o café pode trazer às cervejas artesanais.

Saideira

Derradeiramente, o comentário mais repetido sobre o pack da Coffee Rocks foi que ninguém encontrou o café na cerveja. Talvez, não o encontraram porque estavam procurando as notas sensoriais erradas. O fato de o café estar lá não quer dizer que você achará o que planeja, de fato, encontrar.

Nesse sentido, eu até concordo com a assertiva de que “o café não estava lá”. Ele não estava. Não estava o café comum de mercado. Não estava aquele café de baixa qualidade, super ultra mega torrado, com suas impurezas características. Esse café, ou melhor, esse tipo de café não estava lá.

A cervejaria teve todo um trabalho de usar cafés selecionados da Mostra Coffee, uma empresa de torrefação de cafés americanas. Selecionou grãos vietnamitas, etíopes e guatemaltecos. Usou torras baixas ou médias para sua escolha de adjuntos. Todo esse cuidado nos cafés utilizados se traduziu em uma bebida muito fina e delicada.

Definitivamente, o café não estava lá. Não o café com uma torra excessiva, adstringente e com aquele gostinho de asa de barata. Esse café não estava, o café que estava lá era excelente, muito bem colocado, notas suaves, florais e frutadas. A percepção não era simples, mas se tornou ainda mais difícil quando notas sensoriais diversas eram procuradas.

A confusão entre torra e café é real. É necessário saber separar o que cada um desses dois elementos pode acrescentar à cerveja para saber o que esperar quando se tem a adição de um café mais refinado ao conjunto cervejeiro.

Recomendação Musical

Foi mencionada a série da cervejaria Croma denominada de Coffe Rocks! Logicamente e de modo imediato minha mente já pensa numa recomendação musical que aluda a querer ambos, o café e, claro, o Rock!

Assim, a recomendação mais certeira é da rainha do Rock, a maravilhosa Joan Jett, com sua icônica: I Love Rock’n’Roll!

Um clássico oitentista para embalar cervejas e cafés de alta qualidade!

Saúde!

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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3 Comments

  • Odilene Monteiro

    Nunca havia lido algo tão técnico, simples, direto e assertivo sobre o café e suas propriedades. A cerveja ficou, quase em segundo plano (felizmente, pois não bebo), mas ainda assim o objetivo de se fazer entender sobre ela e a adição ou não do café na análise e degustação sensorial do café foi deveras intensa e clara. Até fiquei desejosa de experimentar! Sucesso!

    • Lauro Ericksen

      Obrigado, querida!

      O Café é capaz de trazer notas diferenciadas à cerveja, bem diferentes do que encontramos nos cafés de supermercado, que só tem gosto de cinza.

      Experimente! Será uma experiência única!

  • […] Decerto, não é apenas algo incorporado ao estilo, ser torrada em excesso. Pois, sabe-se que qualquer insumo torrado em demasia leva a notas sensoriais desagradáveis, como, por exemplo, adstringência. Isso é algo fácil de ser notado, tanto que é a principal forma de diferenciação entre os cafés especiais e os de supermercado (leia mais AQUI). […]

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