Das cinzas às Cinzas: da Rauchbier à quarta-feira

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Saudações carnavalescas!

Confesso que não sou um grande folião. Fato concreto e inarredável (contudo, sinto saudades da época que se comprava 3 latões por 10 reais em qualquer esquina… quem nunca?).

Todavia, esse fato, por si só não me distancia da realidade… da dura realidade, que: todo carnaval tem seu fim. Convenhamos, isso não é uma coisa boa. Quem não gosta da data por si só? Não apenas para quem vai para gandaia, há quem descanse.

As possibilidades são inúmeras. Daí, um dia como hoje, surge a quarta-feira. A inefável quarta-feira de cinzas. O término da jornada, o fim da folia de momo. Um dia não tão bem quisto assim.

Aproveitando a deixa, de ser um dia não tão assaz aprazível, por assim dizer, vamos falar de um estilo cervejeiro que também carrega essa pecha de não ser tão apreciado assim. Em parte, há um rechaço pelo desconhecimento, ou talvez pelo seu caráter mais diferente.

Estamos falando da Rauchbier. Um estilo alemão, que leva maltes defumados em sua receita, conferindo-lhe tonalidades bem singulares, as quais não costumam agradar a maioria dos consumidores. Às vezes, nem mesmo aqueles que adora um bacon, já que seu aroma e seu sabor lembram um pouco o mencionado embutido.

Por defumação, lembramos, associativamente, das cinzas (já que a fumaça é um produto direto do fogo, e a cinza é a parte final do ciclo). Assim, combinando o desgosto pelo fim do carnaval e a pouca apreciação do estilo cervejeiro, falaremos dos dois de forma conjunta.

O carnaval acabou, mas o papo cultural cervejeiro está apenas começando!

Das cinzas às cinzas, falaremos de cervejas e carnaval.

As Cinzas: Descolorindo a Quarta-Feira

Existem muitos dias tristes no calendário. Usualmente, de forma semanal, costumamos atribuir à segunda-feira a identificação de um dia triste. De forma não ocasional, em inglês, há a expressão “Blue Monday” (segunda triste), para indicar quão triste a segunda-feira é.

De outra banda, temos o nacionalmente conhecido termo sextou. Algo que os limites da linguagem culta é inadvertida para traduzir, mas todos nós nos alegramos ao ouvi-lo. Falar sextou e abrir uma cerveja são atos quase que casados.

Após as folias carnavalescas, na qual o nome já diz, etimologicamente, carnavale, é quando a “carne” “vale”, temos o baque da quarta-feira. Diferentemente da segunda, que normalmente já é um anticlímax costumeiro, a quarta-feira de cinzas é muito mais feroz em sua abrupta terminação de algo prazeroso (Freud, corre aqui!).

A quarta-feira é de cinzas porque perde o colorido do carnaval, quando todos os sentidos se aguçam, todas as cores vibram mais, e tudo tem uma passagem de tempo peculiar. Tudo é acelerado, tudo é colorido e tudo brilha. Há glitter, há cores e há vida.

Nesse mesmo compasso, religiosamente, a quarta-feira de cinzas inicia a contagem do período da quaresma. Quarenta dias de reclusão, contrição e condolências pelo período obscuro que se avizinha de dor e sofrimento. A quarta-feira de cinzas é um misto de tudo isso, adequadamente posto após a terça-feira gorda (ou Mardi Gras, no original, em francês).

Resumidamente, esses são os motivos pelos quais a quarta-feira de cinzas não é um dia tão aprazível assim no calendário atual. Justificadamente, eu diria. Ainda que o expediente só se inicie após o meio-dia (pós-ressaca de carnaval).

Das Cinzas: Defumando a Cerveja

Já pensou em beber uma cerveja que possua um gosto de defumação muito acentuado? Algo que pareça com que ela tenha sido acrescentada de fumaça líquida?

Se sim, ou caso já tenha bebido algo similar, muito provavelmente estamos falando de um estilo de cerveja alemão muito peculiar, denominado de Rauchbier (obviamente, existem algum outros estilos que levam maltes defumados em sua composição, como a Adambier e Piwo Grodziskie, mas eles são ainda mais raros).

Não se usa na receita da Rauchbier as cinzas propriamente ditas. Tampouco, a associação primária direta em uma análise sensorial do estilo indica uma torra que lembre cinzas.

Todavia, a associação mais próxima a ser feita do produto principal do processo de defumação e a cerveja em tela, certamente, é a de cinzas. Não sendo raro encontrar tais notas de forma secundária nesse estilo cervejeiro.

De forma bem direta e prática, não é a primeira escolha da maioria das pessoas degustar um estilo cervejeiro que lembre, de alguma maneira, fumaça ou cinzas. Tal fato faz com que o estilo em debate seja preterido e um tanto quanto rechaçado de forma mais ampla entre os bebedores de cerveja. Algo que pode vir a ser um pouco desmistificado.

Rauchbier: História e Estilo

Existe uma miríade de estilos cervejeiros catalogados, ainda produzidos, mas, de baixo impacto popular de forma geral. Um desses estilos históricos que ainda possuem uma relativa produção atualmente é o estilo alemão denominado Rauchbier.

É um estilo originário e até hoje bastante popular na cidade de Bamberg, localizada na região da Baviera, microrregião da Francônia, centro-sul da Alemanha. Apesar de a Baviera ser dominada, majoritariamente, pelas cervejas de trigo, a Rauchbier desponta como um estilo muito diferente das Weizen, na supracitada região bávara.

Reza a lenda cervejeira que um incêndio atingiu uma das cervejarias de Bamberg e a fumaça e dejetos de fuligem e cinzas acabaram por atingir (e contaminar) o malte lá estocado.

Para não perder todos os insumos, um hábil e criativo cervejeiro resolveu utilizar o malte defumado (por acidente) e acabou criando o estilo em questão, o qual, etimologicamente quer dizer, de forma literal, cerveja (Bier) de fumaça (Rauch).

Claro que não passa de uma lenda, de toda maneira, o estilo acabou incorporando a fumaça e a fuligem como seus dois elementos sensoriais básicos, além de uma base maltada bem sólida para segurar esse elemento um tanto quanto não-usual.

Bacon líquido? A percepção do defumado na Rauchbier

Talvez a definição mais recorrente da Rauchbier, de fato, seja aquela na qual ela é descrita como sendo um bacon líquido. Talvez eu mesmo tenha empregado essa definição em algum momento no texto em curso, todavia, ela não é exatamente isso, ou melhor dizendo, não apenas isso.

A Rauchbier é uma amber lager, que tem como principal diferencial o seu perfil defumado, como já mencionado. Todavia, ao lado desse elemento, existe também a questão da percepção do malte em seu conjunto. Esse outro elemento, o malte, deve ser sempre levado em consideração quando a intensidade do defumado é colocada no conjunto cervejeiro.

Não obstante, é correto afirmar que a Rauchbier sempre tende ao seguinte equilíbrio: quanto mais maltada ela for, menor será a sensação da percepção do seu perfil defumado. De outra banda, quanto mais defumada ela for, menor será a percepção do malte em seu conjunto.

É como se esses dois elementos, antagônicos tendessem ao equilíbrio, já que uma cerveja muito defumada e ao mesmo tempo muito maltada, seria extremamente enjoativa.

O amadeirado na Rauchbier

Apesar de não se ruma cerveja envelhecida em barris de madeira, é comum se obter nas Rauchbier a percepção de um certo perfil amadeirado. Costuma-se descrever a percepção de madeira de faia, ou um queimado de palha, ao se degustar uma Rauchbier.

Contudo, diferentemente das cervejas envelhecidas, a percepção em relevo não advém de nenhuma forma de embarrilhamento. Ela vem da defumação empregada nos maltes, tal como se emprega nos meios da charcutaria, por exemplo. De maneira similar, as notas amadeiradas, da fumaça e também das cinzas, acabam sendo incorporadas na cerveja.

O perfil amadeirado encontrado nas Rauchbier’s não é dominante, nem deve ser o primeiro elemento a ser denotado em sua análise sensorial. Ele é algo perceptível e que desempenha ser papel na construção de uma cerveja lager de certa complexidade e um tanto quanto exótica. Talvez esse seja seu grande charme no estilo, muitos elementos diferentes confluindo para uma cerveja peculiar.

Saideira

Tal como a quarta-feira de cinzas, podemos asseverar que a Rauchbier não é uma das queridinhas do grande público, tampouco deixa saudades por onde passa nem quando passa… Esse talvez seja o ponto de consonância entre os dois elementos centrais no texto de hoje.

Isso não quer dizer que não possamos prová-la uma vez na vida, não é?

O importante é denotar que esse estilo alemão é imperdível no sentido de que deve ser ao menos conhecido. Gostar dele ou virar um grande fã de suas notas peculiares, defumadas, maltadas e secundariamente amadeiradas, já é um assunto para outra hora… Provavelmente, isso não ocorrerá, eu adianto.

Das cinzas às cinzas, temos o derradeiro final de uma lenda cervejeira, nascida de um incêndio, como reza a lenda, e o fim de uma folia, em uma quarta-feira!

Saúde a todos que aproveitaram o carnaval ou que degustaram (ou sempre degustam) uma Rauchbier.

Recomendação Musical

Estamos falando de uma época do ano emblemática, ou melhor, estamos falando da ressaca de seu período, seu ocaso, seu último suspiro.

Sabemos que, se no ano que vem, Deus permitir, que estejamos vivos, teremos mais um carnaval… a única certeza, como diria a música Todo Carnaval Tem Seu Fim, da banda de rock mais blasé e rechaçada do cenário nacional (eles são a Rauchbier do Rock brasileiro), Los Hermanos, ou, Loser Manos, como os críticos gostam de dizer.

Factualmente, o carnaval acabou, lidem com isso.

Saúde!


CRÉDITO DA FOTO: Publicada em www.bebidaexpress.com.br

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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