Nelson Patriota: um amigo dos livros

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Conheci o escritor Nelson Patriota há longos anos, e com ele sempre mantive laços de amizade e afinidades intelectuais. Éramos companheiros de geração, com os olhos voltados, teimosamente, para a literatura da nossa terra. Sua morte precoce, em janeiro deste ano, causou grande impacto emocional, deixou todo mundo triste e pesaroso.

Terceiro filho de Luís Patriota e Maria Waldemira Patriota, Nelson Ferreira Patriota Neto nasceu em Natal a 4 de novembro de 1949. Seu pai, homem de letras, cognominado “Poeta das Jangadas”, pertencia a uma tradicional família de Touros, praia da região norte do Estado, de onde também veio o escritor Nilson Patriota, a quem Nelson sucedeu na cadeira nº 8 na Academia Norte-rio-grandense de Letras.

Como todo menino, Nelson tomou parte em brincadeiras com as crianças de sua rua, jogou bola e leu muitos gibis. Estudos no Ginásio São Luís, educandário católico, onde concluiu os cursos primário e secundário.

Certo dia, seu pai o presenteou com a coleção Monteiro Lobato para crianças, e ele mais que depressa leu as aventuras de Pedrinho, Narizinho, Emília, o Visconde de Sabugosa, Tia Anastáscia, Dona Benta, além de livros sobre história, como “Os Doze Trabalhos de Hércules”.

Em entrevista concedida ao escritor Thiago Gonzaga, constante do livro “Impressões Digitais”, vol. 1, Nelson diz a respeito desses livros: “Impressionou-me, especialmente, “A Chave do Tamanho”, em que o Visconde de Sabugosa reduz as pessoas a seres minúsculos, causando um grande tumulto no mundo. O livro me deu a primeira prova da força da literatura”

Por volta dos 23 anos, ainda engatinhando como aprendiz de poeta, Nelson deu uma guinada em seu itinerário intelectual, voltando-se inteiramente para a prosa, especialmente a ensaística. Foi quando ingressou no jornal “A República”, de Natal, repórter da área cultural e articulista. Desde então tornou-se um atento e criterioso observador da cena literária.

Em 1983 graduou-se em Comunicação Social, mas antes já obtivera o diploma de Bacharel em Ciências Sociais, ambos os cursos pela UFRN.

Havendo trabalhado em vários órgãos da imprensa natalense, na qualidade de redator e colunista, teve também atuação marcante à frente da editoria do jornal “O Galo”, órgão cultural da Fundação José Augusto.

No serviço público ascendeu às funções de sociólogo.

Eis, portanto, em síntese, um registro de sua trajetória existencial.

Crítico literário

A princípio, durante alguns anos, Nelson norteou suas atividades literárias pelo exercício da crítica. Como tal, desempenhou papel importantíssimo, contribuindo para a formação de milhares de leitores, ao mesmo tempo em que julgava, com absoluta isenção, autores e obras.

E nunca se sujeitou à camisa de força de certa linguagem especializada tão cara a determinados setores da nova crítica. Como humanista e artista da palavra, mostrava-se avesso ao que o grande Mário de Andrade denominou “limitação causada pelo conhecimento técnico”.

Além de crítico, Nelson era jornalista, poeta e ficcionista, daí o maior poder de comunicação de sua prosa.

Vale ressaltar que estas suas qualidades serviram-lhe, no exercício da crítica, quase sempre, para valorizar a literatura norte-rio-grandense. Poderia ter se voltado para obras e escritores consagrados a nível nacional e internacional. Mas, não; preferiu a prata da casa.

Há muito, ele nos devia um feixe de seus ensaios críticos dispersos em jornais e revistas do Estado. Felizmente, essa dívida foi resgatada, ou melhor começou a ser paga com o livro intitulado “Uns Potiguares” (Mossoró: Sarau das Letras, 2012).

Revitalizando a velha e boa crítica de rodapé, o autor enfoca nos artigos e pequenos ensaios reunidos nesse volume, vários escritores e livros norte-rio-grandenses, além de outros em menor quantidade, os quais identificam-se de certa forma com as nossas letras.

Aparentemente circunstanciais, por serem fruto da militância jornalística, esses escritos, na verdade, revestem-se de interesse permanente. Urgia, pois, salvá-los das coleções de jornais e revistas para a perenidade do livro.

Ficção e poesia

Escritor multifacetado, como está visto, Nelson Patriota cultuou diversos gêneros literários, porém estreou em ficção e poesia, com livros, já na casa dos sessenta.

Numa bela edição limitada, em formato de pocket book, lançou “Livro das Odes” (Natal: Sol Negro Edições, 2012). Poesia reflexiva, de prospecção sobre a problemática existencial, não raro em tons elegíacos, com um viés acentuadamente discursivo, porém sem derramamentos, semelhando, por vezes, poesia em prosa.

Ainda no campo da poesia, em parceria com Diógenes da Cunha Lima e Leita T. Cunha Lima Almeida, “Flores que Encantam o Brasil/ Charming Flowers of Brazil”, livro encantador (Natal: SESC/FECOMÉRCIO/EDUFRN,2013).

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Em outra vertente – o conto – três livros atestam a operosidade do autor, frutos tardios de um longo namoro com a ficção.

“Colóquio com um Leitor Kafkiano” (Natal: Jovens Escribas, 2009) reúne doze contos, alguns inéditos e outros já publicados em periódicos culturais. A partir do título, percebe-se alusões a Franz Kafka, escritor a quem o autor muito admirava.

Não só este, mas também outros ícones fazem-se presentes, de certa forma, num interessante diálogo da ficção com o ensaio literário. “Colóquio…” obteve boa receptividade por parte da crítica e do público, o que, com certeza, animou o autor a publicar novas coletâneas – “Um Equívoco de Gênero e Outros Contos” (Mossoró: Sarau das Letras, 2014), e “Prelúdio para um Cavaleiro da Mancha”(Recife: Bagaço, 2018), nas quais reafirma-se um erudito e arguto observador do comportamento humano.

Nelson Patriota pertence à linhagem de um Tchecov. Seus contos não são histórias com começo, meio e fim, não têm desfecho impactante, nenhum artifício para impressionar o leitor. Longe dele o anedótico, o causo. Preocupa-o, antes de tudo, a análise psicológica dos personagens, num contexto atual, urbano, de pequena classe média. Linguagem em consonância com a temática, e estilo não tão leve, mas vigoroso, tornam a leitura absorvente.

Romance

Tal como no conto e na poesia, a estreia de Nelson no romance também foi tardia. Lançou em 2015, “Tribulações de um Homem Chamado Silêncio” (Mossoró: Sarau das Letras) quando já completara 65 anos de idade.

Neste particular, assemelha-se a Polycarpo Feitosa, um dos maiores romancistas potiguares, cuja estreia se deu quando contava 61 anos.

“Tribulações de um Homem Chamado Silêncio” tem a sua ação romanesca centrada em Natal por volta dos anos 80 do século passado. Roman à clef, isto é, calcado em fatos e personagens reais sob disfarce ficcional, a exemplo de tantas outras obras congêneres, como “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto.

Um homem chamado silêncio é o jornalista Armando Lira, personagem-mor, em torno do qual desenrola-se a narrativa, tendo como pano de fundo, quase sempre, a redação do jornal “A Voz Pública” (seria o finado “A República?). Figura fora de série, Armando desperta atenção pelo seu inusitado modo de ser: introspectivo, arredio, um tanto misterioso.

Fatos aparentemente banais, no dia a dia de uma redação de jornal, são valorizados pelo narrador, também jornalista (alter ego do autor?), que sabe extrair deles a surpreendente notação psicológica.

Em última análise – devo ressaltar – a narrativa constitui um corte vertical na vida: não tem propriamente enredo nem trama; não pretende distrair o leitor com descrição de episódios hiperdramáticos, tampouco com anedotas, mas, acima de tudo, propõe-se a desvendar segredos do comportamento humano e debater ideias.

No final, o narrador (já agora parece ser o próprio autor) faz uma longa digressão sobre a trajetória existencial de alguns dos seus familiares, digamos, icônicos, numa tentativa de estabelecer um paralelo com a história de vida dos personagens Armando e sua mulher, Adélia.

Mas, convenhamos, tal artifício não fica bem “costurado”. Apesar deste pequeno senão, “Tribulações…” é um romance digno de ser lindo com todo o interesse.

Por último, Nelson Patriota lançou “Caderno de Espantos Seguido de Vaticínios na Língua do Não” (Natal: 8 Editora, 2019).

Reflexão, poesia, ficção, humor, tudo isto de forma fragmentária, expresso numa linguagem sutil, plena de metáforas – eis, em suma, o conteúdo desse “caderno”, misto de diário íntimo e jornal literário. Um livro para se ler e reler.

Tradutor e memorialista

Resta dizer sobre a obra de Nelson Patriota que ele, a par com a sua criatividade artística, muito contribuiu de outro modo para o desenvolvimento cultural do seu Estado: traduziu vários livros, organizou outros tantos, participou de obras coletivas e atuou como uma espécie de ghost writer na elaboração de dois livros significativos da memorialística norte-rio-grandense: “A Estrela Conta”, de Glorinha Oliveira, e “No Outono da Memória”, de Ubirajara Macedo.

Ecce homo… Considero-o, dentre os escritores potiguares, a mais perfeita encarnação do intelectual, do scholar, do bibliófilo, tomada esta palavra não no sentido de colecionador, mas, sim, de amigo dos livros.


(Texto adaptado do discurso de saudação a Nelson Patriota quando de sua posse na cadeira nº 8 da ANRL)


FOTO: Magnus Nascimento

Manoel Onofre Jr.

Manoel Onofre Jr.

Desembargador aposentado, pesquisador e escritor. Autor de “Chão dos Simples”, “Ficcionistas Potiguares”, “Contistas Potiguares” e outros livros. Ocupa a cadeira nº 5 da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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2 Comments

  • […] Nelson Patriota, revisor, editor e tradutor, nos deixou no início do ano passado, no Dia de Reis. Talvez um sinal de que sua partida não deve ser lembrada com tristeza, mas com gratidão por tudo que ele foi, produziu e viveu em seus 71 anos de existência e também pelo privilégio de tê-lo como amigo e parceiro de trabalho. […]

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