E agora, João?

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Croniketa da Burakera #40, por Ruben G Nunes

Meus campanhas de fé e cabaré, essa croniketa foi escrita em 2007. O poder da  bandidagem já era uma perigosa e tristeparanóica realidade. E hoje nada mudou. Vamos dar uma olhada no retrovisor do tempo e da consciência…

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…. e agora João Hélio? O que você vai dizer lá no céu? Você que, até agora, talvez nem saiba bem o que aconteceu. Você que ainda deve estar brincando lá onde você brincava.

Você que em plena inocência de seus 6 aninhos foi barbaramente arrastado por 7 kms de ruas do Rio, pendurado do lado de fora do carro roubado, em alta velocidade, preso pelo cinto de segurança, numa pavorosa cena de terror urbano. Batendo cabeça, corpo, pernas, na roda, no asfalto, quicando, flutuando, como um boneco de pesadelo, morrendo se esbagaçando numa dor infinita que ecoa fundo em todos nós.

Dor de carne e alma. Dor da civilização.

Assaltar e matar desse modo – o que é isso? O que são esses assaltantes, capazes de matar assim um menino? São homens iguais a nós? Como compreender essa neobarbárie civilizada? Será que o próprio Eterno compreende isso?

Vivemos o tempo da banalização de tudo. Da moral ao celular. Da ética à tecnologia de ponta. Da corrupção dos costumes à corrupção do poder. Da ONU ao DNA.

Tudo é banalizado. As diferenças são resolvidas na exacerbação do banal. A bandidagem é não só banalização da segurança, ou da moral ou da ética. A bandidagem é uma banalização do outro.

Nada de harmonia de contrários de Heráclito – que na Grécia, no séc. IV aC, inaugura o pensar dialético afirmando que é da “divergência dos contrários, a mais bela harmonia”. Nada de síntese de opostos do mago Hegel, na trilha de Heráclito. Na banalização criminosa da Vida, toda teoria é cego em tiroteio.

assassino joão helioRosto ossudo, comprido, um dos assassinos do menino João, focado no TV-jornal, olhava as manchetes, olhar duro, desafiador. Nenhuma vibração humana, mas uma frieza pós-cruel. A frieza do banal. O banal é frio, não vibra. É a antivida, o anticuidado, a antisolidariedade. O anti-amor.

O banal é o ponto mais próximo da morte. E contamina a vida. Um vírus da civilização. Que se multiplica. Como surge? Lembram o agente Schmit em Matrix, que se multiplicava como uma praga. Dezenas, milhares, vão surgindo, das esquinas, das favelas, das drogas, da violência, da grana fácil, da volúpia dos tiroteios, das disputas de pontos, das bravatas do tráfico.

São eles criações nossas, de nossas injustiças sociais, de nossa educação furada, de nossos programas assistencialistas fajutos, de nossa democracia corrupta?

Sim. Eles são nossos. Como nós somos deles.

São criações de nossas neuroses mais antigas, de nossas politicagens das cavernas. De nossas corrupções. São deformações sociais de nós mesmos. Pesadelos, sem retorno.

Então pau neles, porra!  Mas não! Não! Não! E os direitos humanos?… acodem prontamente, olhos rútilos, os experts da cidadania.

Sim! Sim! É verdade. A sociedade precisa recuperá-los. São mais de 700 mil detentos, a maioria traficantes de drogas. Ressocializar, eis a tarefa ingente. Mas serão todos ressocializáveis? Ou só alguns? Sei não! Mas é preciso tentar.

Teorias, métodos sociais, programas de governo, entrevistas, seminários, surgem desengonçados, desarticulados, no meio das balas perdidas. Que continuam balas e perdidas.

Claro, cada um de nós, cada geração, é responsável pela sua história, pelas suas escolhas, pelos seus erros e acertos sociais. Agora, recuperar a bandidagem já incrustada, encastelada nas favelas, como num forte, como num outro país. Com sua forte economia de tráfico, com suas armas de última geração – como é possível com belas teorias? E práticas encharcadas de ideologias irreconciliáveis?

Isso é de fato uma tarefa de reengenharia moral pra valer? Ou é tão só, no fundo, uma (des)culpa moral sem saida? Não será isso falta de ação eficiente? Falta atávica de autoridade competente? Vamos ficar sempre saindo de bandinha com teorias perfeitinhas, com muito papo e entrevistas de gabinete, enquanto as balas não param.

No travesseiro de minha consciência eu me pergunto: como posso recuperar uma fruta que está apodecendro? Uma fruta humana, claro.

O que não se percebe é que a coisa já atingiu um tal ponto de hiperbanalização de tudo, e de todos nós, que os marginais agora já são autossustentáveis. E nada temem. Estão empoderados.

Não conseguimos uma economia autossustentável. Contudo, com toda nossa teoria e prática de ressocialização, conseguimos uma bela inflamação social autossustentável e autônoma – os Estados Gerais da Bandidagem. Suprafederativos. Quase globalizados.

Eles são eles. E mais eles..

Eles, os marginais, querem ser eles mesmos. Já têm seus feriados, festas e tradições. Deram uma festa de arromba no Ano-Novo, com meia hora de queima de fogos. Rolou tudo. Desde charutões de maconha, pedronas de cracks, até bandejas generosas de pó. As cafungadas eram com canudinhos de 1 dólar. Bebida grátis e bandas se revezando. Menores soltos na buraqueira. Tudo em plena rua. Festa popular mesmo. Com superprodução de vídeo e tudo.

Foi na Travessa Jurupis, favela do Morro do Samba, Diadema, Grande São Paulo. Domínio do bigboss Birosca, um dos megatraficantes do PCC.

Voz arrastada, o animador da festa repetia no microfone “Isso aqui é pra mostrar que a gente faz acontecer… Não tem governador, não tem presidente, não tem polícia, não tem político, não tem vereador, não tem nada! Nada! Tá ligado!? Graças a Deus e à ‘firma’ esse evento está sendo realizado… é nóis, tá ligado!!!”.

O vídeo, já veiculado na TV, é forte. Spike Lee in concert. A bandidagem já criou um lado moral de orgulho. O orgulho da violência e do poder do pó. O banal levado ao último registro de si mesmo. O resto não interessa.

Se o governo dá uma bolsa família, se constrói uma escola nova, se consegue vagas pra todos até na universidade, se há mais polícias, se há milícias – tanto faz… tanto fez…

Nem fede, nem cheira.

O marginal hoje é um forte. Tem status. De lumpen favelat virou marginal-fashion. Nada o intimida. Tudo é lucro, tudo é corrompível, desde o Governo até o guarda de presídio.

Criamos uma cultura ou se quiserem uma contracultura sólida: que gerou fortes facções. Como o PCC (Primeiro Comando da Capital). Com mais de 30 mil membros em todo Brasil e com armamento moderno. Facção que já é internacional e movimenta, dizem os entendidos, cerca de 400 milhões de reais por ano. Excluídos que nos excluem. Criamos um Estado forte, violento, inexpugnável. Dentro de um país fraco e corrupto.

Com leis ditas cidadães, direitos ditos humanos e políticos corruptos, criamos uma nova espécie de ser trans-social que tem direito a tudo que é desumano. Inclusive matar um menino como se mata uma barata.

Na TV, o rostossudo e o olhar desafiador do assassino de João parecem mostrar uma mensagem sinistramente clara e prática a toda a teoria social ingênua e pseudosalvadora:  … ressocializar eu, mano?…  tá maluco, mané? 

E agora João? O que você vai dizer lá no céu? Que nós todos falhamos? Inclusive o Criador? Você que agora, como um pequeno anjo, voa e participa desse eterno rolé cósmico, pelaí no infinito…


FOTO: Portal Poa 24 horas
Ruben G Nunes

Ruben G Nunes

Desfilósofo-romancista & croniKero

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