Outro dia presenciei uma cena muito interessante na UFRN. Estava eu na parada do Circular esperando o ônibus para ir ao encontro de um amigo quando deparo com dois meninos. Um deles deveria ter uns onze anos, no máximo, e o outro, não passava dos seis. Estávamos só nós três na parada do Restaurante Universitário e logo começamos a conversar. Perguntei o que eles estavam fazendo ali naquele horário (já estava anoitecendo) e a resposta foi no mínimo inusitada. Vamos dar uma volta no Circular pra Luiz conhecer a UFRN, disse o mais velho, que se chamava Carlos, com a certeza/alegria de quem está desbravando um mundo novo junto a um grande companheiro de viagem. Eles moram no bairro de Nova Descoberta, vizinho à universidade e, segundo o garoto mais velho, estavam ali com autorização. Quando o ônibus retornasse à universidade, eles voltariam para casa. Esse foi o combinado com a mãe, disse Carlos, com ar de responsável. Nesse momento recomendei que tivessem cuidado ao atravessar a pista. Ele disse que já são acostumados a andar pelo bairro. Mesmo assim, fiquei preocupada com eles.
Enquanto esperávamos o ônibus, ficamos conversando amenidades. No intervalo entre a subida e o meu ponto de parada, dividimos um biscoito de chocolate e conversamos mais um pouco. Queria ter passado mais tempo com eles, saber dos seus sonhos para o futuro, sua relação com a escola, os livros que gostam de ler, mas tinha um compromisso inadiável e precisava continuar na UFRN.
Apesar do pouco tempo de conversa, foi possível saber o que eles sonhavam para o futuro, o mais velho quer ser policial e jogador de futebol e o mais novo, bombeiro. Adoraria encontrá-los novamente pela UFRN para fazer um lanche com eles, apresentar-lhes a livraria do campus, a biblioteca central, a galeria de arte… Nem posso imaginar o encantamento deles perante a grandiosidade da biblioteca.
Alguns dias depois de conhecer os dois meninos que estavam fazendo um tour pela UFRN, foi a vez de conhecer uma senhora que estava indo à universidade com o propósito de resolver um problema judicial. Dessa vez o encontro aconteceu pela manhã, quando eu estava indo para o trabalho. A mulher estava buscando informações sobre o setor de prática jurídica da UFRN. Eu disse que lhe ensinaria o caminho porque desceria na mesma parada que ela. Durante o percurso, enquanto eu mostrava alguns setores da universidade (Editora, Escola de Música), ela me perguntou se os eventos da Escola de Música eram gratuitos. Aquela sua pergunta me fez pensar no quanto algumas pessoas estão distantes da universidade e, principalmente, o quanto esse mundo é algo impensável/inalcançável para muitas delas. Fiquei pensando, também, no quanto algumas pessoas não conhecem seus próprios direitos (alguns deles garantidos pela Constituição). A maioria delas porque foi obrigada a deixar a escola para trabalhar e ajudar no sustento da família. Essa é a realidade de milhares de brasileiros. Conheço várias pessoas nessa situação, a maior parte delas diz que gostaria de ter estudado para ter uma vida melhor. Muitos começaram a trabalhar ainda na infância.
Voltando à conversa com a mulher no Circular. Depois de falar brevemente sobre os locais que iam surgindo conforme o trajeto do ônibus, expliquei que os eventos realizados na Escola de Música são gratuitos e abertos à população. Surpresa, ela me contou que gostaria que o filho mais velho voltasse a estudar. Ele parou os estudos porque precisa trabalhar e o serviço é muito pesado, justificou com certa tristeza. Ele trabalha o dia todo em um material de construção. Aproveitei o ensejo para falar da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e dos dois cursinhos preparatórios para o Enem que a UFRN oferece para alunos oriundos de escola pública, o cursinho do DCE e o PROCEEM, oportunidades de estudo que ela desconhecia. No primeiro cursinho, o aluno paga um valor simbólico como mensalidade e o segundo é totalmente gratuito, salvo engano. Projetos que têm ajudado muitos estudantes de escola pública a realizar o sonho de cursar uma universidade. Os professores são alunos dos cursos de licenciatura da UFRN. Quem sabe o filho dela não volta a estudar. Espero que os dois filhos pequenos dela não precisem abandonar a escola para trabalhar.
Estava aqui lembrando dos dois encontros narrados nesta crônica e refletindo sobre a falta de oportunidade para milhares de brasileiros, especialmente pretos e pobres. Estava pensando, sobretudo, na falta de acesso a livros, equipamentos culturais, bibliotecas. Na falta de acesso ao cinema, ao teatro, a concertos/shows, artes que nos sensibilizam e contribuem para nossa formação humana e intelectual, além de muitas vezes despertar talentos em crianças e jovens. Prova disso são os projetos transformadores que existem em comunidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo, que oferecem aulas de teatro, música, dança. O Nós do Morro, grupo de teatro do Vidigal, no Rio, é um desses projetos. Atores como Roberta Rodrigues, Thiago Martins, Babu Santana são frutos desse trabalho. Aqui em Natal temos um projeto desse tipo que merece toda nossa admiração. Estou falando do Conexão Felipe Camarão. Criado em 2003, o projeto de educação integral se desenvolve no bairro homônimo e agrega crianças, adolescentes, jovens e seus familiares em diversas ações e visa a formação por meio da cultura local. Atuando no desenvolvimento integral da comunidade, o projeto tem como referenciais os patrimônios imateriais do bairro. As ações do projeto são patrocinadas pelo da Neoenergia Cosern e Instituto Neoenergia, por meio da Lei Câmara Cascudo e da Fundação José Augusto. A realização é da Associação Companhia Terramar, que conta com o apoio da Rede de Educadores de Felipe Camarão e da Escola de Música da UFRN.
Recentemente, o Conexão Felipe Camarão recebeu a ilustre visita de Lia de Itamaracá, a famosa cirandeira de Pernambuco que é dançarina, cantora e compositora. Aliás, a vida e a obra da cirandeira mais conhecida do Brasil é tema de uma exposição do Itaú Cultural, em São Paulo. A exposição está aberta ao público até 10 de julho. Alguns alunos do projeto se apresentaram junto com a artista na Feira Nordestina de Agricultura Familiar e Economia Solidária (Fenafes), realizada no Centro de Convenções semana passada. “Já estive aqui e sei do trabalho importante que é feito com essas crianças e jovens através do saber dos mestres, da cultura e da educação. Fico ainda mais feliz por ter minhas músicas fazendo parte”, disse a cirandeira em entrevista ao Portal Saiba Mais, destacando a importância do Conexão Felipe Camarão.
Voltando aos dois encontros narrados na crônica de hoje. Espero que os meninos de Nova Descoberta sigam estudando e consigam, além de realizar o sonho de ser policial/jogador de futebol e bombeiro, ter uma vida digna. Também desejo que o filho daquela senhora volte a estudar a tenha a oportunidade de escolher sua profissão, que possa conciliar trabalho e estudo para ter um futuro melhor. Esse é também o meu desejo para as milhares de crianças e jovens do nosso país que têm pouco ou nenhum acesso ao livro e à leitura, para as crianças que estão fora da escola e/ou têm negligenciados seus direitos a uma educação pública e de qualidade, à arte/cultura, ao lazer. Afinal, um país se faz com homens e livros, como disse Monteiro Lobato.
FOTO: publicada em Matinal
1 Comment
Muito sensível.