Cervejas sem álcool: vale a pena provar?

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Saudações, cervejeiros-abstêmios!

Hoje o papo é no “bico seco” (sem álcool), o que não quer dizer que não possa ser acompanhado por uma cerveja. O foco do debate hoje são as cervejas sem álcool, um tipo de cerveja que começa aos poucos a ganhar um pouco mais de visibilidade no cenário cervejeiro/artesanal.

Não vou debater sobre os malefícios do álcool para a saúde humana, até porque suponho que a maior parte da produção de cervejas sem álcool não seja exatamente para o público que evita o álcool a qualquer custo (como as grávidas, ou os abstêmios por convicção). Elas parecem ser, na maior parte das vezes, uma alternativa a quem já consome cervejas “normais” (isto é, cervejas com álcool), mas, que por algum evento passageiro, fortuito ou transitório, encontram-se na situação de não poder ingerir o etanol, e, portanto, acabam por recorrer a essas cervejas sem teor alcóolico.

Dessa forma, as cervejas sem álcool não se mostram como um ponto de foco principal de consumo cervejeiro. No entanto, podem ser uma boa opção para quem assim o deseje. Talvez o pior elemento para quem já consome as cervejas com álcool seja o comparativo, algo feito quase que instintivamente, e faça com que a análise prioritária da cerveja seja posta de lado, pensando-se sempre no que ela poderia ser em comparação com as versões regulares (com álcool).

Sem embargo, as cervejas sem álcool devem sempre ser analisadas em sua categoria própria, sem pré-julgamentos com suas congêneres “normais”, sob pena de sofrerem o inexpugnável veredito da “insuficiência”. Chega a ser gritante a diferença (em alguns casos específicos), mas, claro, cada uma possui seu nicho e o seu direcionamento, elas não colidem no gosto mais amplo de quem vai consumir uma ou outra.

Assim, o texto de hoje será um passeio pelo mundo livre de álcool, um texto para todas as idades, sem limitação!

Não contém álcool, mas contém diversão!

 

Cerveja sem álcool pode conter… álcool (?!)

Por incrível que pareça, e por mais contraditório que possa alardear a uma primeira vista desavisada, é verdade! Cerveja sem álcool pode conter, pequenas e ínfimas, quantidades de álcool. Ou seja, cerveja sem álcool, pela legislação vigente, não é exatamente uma cerveja livre totalmente de álcool. Então, vamos esclarecer melhor esse (aparente) dissenso semântico.

Existe um diploma normativo que trata dessa questão: a Instrução Normativa do MAPA nº 65/2019, de 11 de dezembro de 2019. Ela não é exatamente uma lei, já que é uma determinação advinda exclusivamente do Poder Executivo para disciplinar o Padrão de Identidade e Qualidade da cerveja. Por mais que não seja uma lei em sentido estrito, podemos dizer que ela serve como “lei” para esse caso concreto das cervejas sem álcool.

A Instrução Normativa define para efeitos legais que existe uma tolerância de mais ou menos 0,5% v/v (artigo 29). Caso haja álcool residual superior a esse volume, as cervejarias são obrigadas a informar o seu teor. Dessa maneira, “cerveja sem álcool” ou “cerveja desalcoolizada”, é aquela cujo conteúdo alcoólico é inferior ou igual a 0,5% em volume (0,5% v/v), como preconiza o artigo 11 da referida Instrução.

Nos rótulos das cervejas sem álcool apenas é permitido o uso da expressão “zero álcool”, “zero % álcool”, “0,0%”, ou similares, caso o produto contenha até 0,05% v/v de álcool residual, considerada a tolerância do método analítico utilizada para aferir o percentual alcoólico. Ou seja, aplica-se o limite máximo de tolerância dos 0,5% para definir que uma cerveja seja considerada, legalmente, sem álcool.

Claro que essa tolerância suscita alguns questionamentos de ordem: fisiológica (pessoas que não podem consumir álcool de forma alguma), ideológica/religiosa (abstêmios) e administrativa/legal (os motoristas e condutores de veículos automotores). De toda forma, vamos assumir a perspectiva exegética (estritamente legalista) de que o que a Instrução Normativa considera ser sem álcool, é, para fins de consumo, sem álcool. O mais importante é que o consumidor de fato tenha o cuidado de olhar o rótulo detidamente, pois, caso haja alguma porcentagem de álcool entre 0 e 0,5% ela será informada, ainda que haja o marketing na rotulagem como sendo “sem álcool”.

Como tirar o álcool da jogada?

A cerveja é uma bebida fermentada, não existe nenhum processo de produção cervejeira que prescinda de tal elemento fundamental. Fermentação pode ser brevemente definida como um processo químico, com a ausência de gás oxigênio (O2), no qual fungos e bactérias realizam a transformação de matéria orgânica em outros produtos e energia. Na produção da cerveja a fermentação alcoólica é necessária e tem como um de seus produtos o álcool (etanol).

No entanto, mesmo após produzido, é possível se retirar o álcool da cerveja. Tais processos de retirada não são novos, mas têm sido aperfeiçoados ultimamente por cervejarias que acabaram por enxergar um filão comercial nas cervejas com baixos teores alcoólicos e também nas sem álcool.

Existem basicamente duas abordagens que visam conferir um teor quase nulo de álcool à cerveja. A primeira das citadas abordagens se atém à alteração de características biológicas do processo tradicional de produção cervejeira (incluindo-se aqui a fermentação alcoólica). As alterações mencionadas podem ser efetuadas ao nível da moagem ou da fermentação interrompida dos cereais, com o objetivo de limitar a formação de álcool. Essa modalidade é menos eficiente, pois o teor residual do álcool, na maioria das vezes, acaba sendo maior que o volume (0,5%) especificado em diplomas normativos (essa é a regra no Brasil e em outros países, a exemplo de Portugal, que também classifica essas cervejas de até 0,5% como sendo “sem álcool”).

A segunda forma de se produzir cervejas com teores alcoólicos mínimos consiste em retirar o álcool da cerveja tradicional (e não estancar a sua produção como na primeira técnica apresentada). A maneira encontrada para se retirar o álcool é através da destilação (tal como se faz para produzir aguardente, por exemplo), mas, “reversamente”, já que o álcool será descartado, ao invés de incorporado ao líquido.

É importante que a destilação seja efetuada sem que haja o aquecimento da cerveja, já que manter a sua temperatura padrão é essencial para que seu sabor e seu aroma sejam resguardados ao final do intento destilatório. São basicamente duas as formas de se aplicar a destilação à cerveja com o intuito de lhe retirar o álcool sem que seja necessária a alteração de temperatura (por aquecimento): destilação a vácuo e osmose reversa.

Na destilação a vácuo existe um pequeno aumento de temperatura, no entanto, como o líquido está submetido a uma alta pressão (maior que a pressão atmosférica, daí o vácuo ser gerado), o que faz com que a temperatura necessária para a fervura ser menor. A partir da ebulição do álcool, que é mais volátil que os demais elementos constitutivos da cerveja (mais volátil que a água, por exemplo), é possível que ele seja retirado e a cerveja tenha apenas uma pequena concentração alcoólica em seu caldo residual.

Na osmose reversa, diferentemente da destilação, não é necessário aumento de temperatura do líquido. A cerveja é inserida em um filtro no qual apenas o álcool, a água e alguns ácidos são capazes de passar. Assim, é fácil destilar o álcool da água e os ácidos, e esses dois últimos são reinseridos à cerveja, que fica do outro lado do filtro. Essa forma de destilação é feita sem alteração de temperatura, e, portanto, afigura-se mais benéfica para resguardar sabores e aromas originais da cerveja, sendo possível obter, através dela, cervejas sem álcool mais saborosas e mais próximas de suas características originais.

Cervejas artesanais sem álcool

Por muito tempo, as cervejas sem álcool foram estigmatizadas por serem bem ruins. Isso era algo ainda mais favorecido porque as cervejas das quais elas eram derivadas não eram nenhum “primor”. Por um longo tempo, a única cerveja sem álcool amplamente disponível no mercado era a Brahma Zero (também estilizada como Brahma 0,0), algo que, convenhamos, não empolgava muito de ser tomada, nem que não fosse Zero (álcool) – era melhor beber água mesmo.

De toda maneira, o que se vê ultimamente são algumas boas opções artesanais sem álcool. Uma das pioneiras nessa seara foi a Nanny State, da escocesa Brewdog, uma West Coast IPA que tive o prazer de degustar (nos idos de 2015), bastante lupulada e muito bem feita para uma cerveja sem álcool.

No cenário nacional duas IPA’s sem álcool despontam como boas opções no segmento: a Session Free da cervejaria Wäls, e a Easy IPA Sem Álcool da cervejaria Roleta Russa. A Session Free é uma Session IPA (como o nome já alude), Single Hop de Citra, muito aromática e refrescante. Além de ser 0,0% de álcool, ela também é zero carboidratos e, consequentemente, zero calorias. Apesar de ser uma cerveja sem álcool, entrega um líquido bastante lupulado, extremamente leve (até um pouco aguada, eu diria), refrescante e saborosa. Comparada com sua cerveja “originária”, a Session Citra, ela não fica devendo em nada.

A Easy IPA Sem Álcool, por seu turno, também é uma Session IPA, tal e qual a anterior, a Session Free. Ela possui o “plus” de, além de ser sem álcool, também é uma cerveja sem glúten, isto é, recomendada para celíacos! Também possui como característica marcante ser bem lupulada, inclusive com um leve harsh (clique aqui para saber mais sobre harsh e trub), algo que acaba sendo um pouco mais destacado pela ausência de álcool. No mais, parece muito com a cerveja que lhe dá origem, a Easy IPA, tendendo apenas a uma presença um pouco menos agressiva da lupulagem, mas, de modo geral, agrada a quem se dispõe a provar uma cerveja artesanal sem álcool.

Uma terceira opção de cerveja artesanal sem álcool, e que foge das IPA’s, é a versão não alcoólica da Hoegaarden (lê-se “rrúrrárrrda” – os holandeses capricham na puxada do “RRRRR”), chamada de Hoegaarden Zero. Ela estampa no rótulo seu percentual de 0,0 de teor alcoólico, sendo a primeira Witbier desalcoolizada a ser produzida no Brasil. Ela é uma cerveja feita de trigo (wheat ou wit), não filtrada (turva) e com sementes de coentro e raspas de casca de laranja, que conferem um sabor refrescante e suave ao mesmo tempo em que é doce e levemente cítrica. Comparando-a com sua congênere originária, apresenta um dulçor um pouco mais destacado e uma leve “saponificação”, recorrente em algumas Witbier’s, e algo um pouco mais evidenciado pela ausência de teor alcoólico para equilibrar melhor a base.

Claro que comparar qualquer uma dessas cervejas artesanais com suas receitas originais com álcool tende a ser algo um tanto quando desbalanceado, mas, quem tem curiosidade de conhecer um pouco mais esse mercado em franco crescimento, principalmente em larga escala industrial, as três citadas são boas dicas.

Saideira

Apesar do estigma de serem ruins já apensado às cervejas sem álcool, hodiernamente, com o crescente interesse do público, as cervejeiras investem cada vez mais no aperfeiçoamento das misturas de lúpulo e malte utilizadas, visando melhorar cada vez mais as cervejas sem álcool, tentando trazê-las para o mesmo patamar das comuns. O resultado são cervejas cada vez mais saborosas, que facilmente se podem comparar às cervejas originárias, dado o esmero na produção e o sucesso comercial que elas alcançam atualmente. Em síntese, vale muito a pena provar e conferir cervejas artesanais sem álcool!

Recomendação para degustação

Um dos movimentos musicais que mais possuem uma dimensão sobre a questão não alcoólica é o chamado Straight Edge. Por mais que costume se associar ao Punk e/ou ao Hardcore, o Straight Edge não é bem um estilo musical (existem bandas Straight Edge até de Reggae e de Black Metal, dois gêneros muito distantes do Punk ou Hardcore), e sim uma ideologia que prega a total abstinência de álcool e drogas (algo um tanto quanto incomum a qualquer vertente do Rock, saliente-se).

Existe algo mais Straight Edge que uma cerveja sem álcool? Não!

Uma das bandas mais representativas e de maior sucesso comercial, inclusive fora do círculo dos Straight Edge, é a Rise Against, banda americana de punk rock/hardcore de Chicago. Certamente, sua música mais conhecida e de maior sucesso é Prayer of the Refugee, a qual eu deixo como recomendação musical para uma boa cerveja sem álcool.

Um brinde desprovido de álcool a todos! Saúde!


FOTO DE CAPA: postadas em https://chapiuski.com.br/

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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