#CaminhosdeNatal: de Junqueira Aires a Câmara Cascudo, o corredor cultural de Natal

av. câmara cascudo

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Até o início do século XVIII, a Ribeira era uma região pantanosa, alagada por um braço do rio Potengi. Os limites da cidade eram marcados pelas cruzes chantadas na Santa Cruz da Bica, ao sul e uma outra ao norte, no local atualmente conhecido como Praça das Mães, na bifurcação da Avenida Câmara Cascudo e rua Padre João Manuel.

A primeira referência documental sobre o “Caminho que ia para a Ribeira”, a atual avenida Câmara Cascudo, data de 3 de julho de 1716, quando o Senado da Câmara do Natal concedeu terreno ao ajudante Matias Quaresma, “que queria fazer duas moradas de casas, ao sopé do Outeiro e caminho que vai para a Ribeira desta Cidade, na paragem aonde chamam a Tapera de Maria de São Thomé”.

Durante quase um século, aquele caminho ficou conhecido como a rua ou ladeira da Cruz, situando-se entre os dois únicos bairros natalenses de então: a Cidade Alta e a Ribeira.

Ao longo de todo o século XVIII, há referências a concessão de terras na Ladeira da Cruz. Naquele período, 27 requerimentos foram deferidos pelo Senado da Câmara do Natal, a pessoas interessadas em construir casas naquela ladeira.

No requerimento formulado por José dos Santos, de 4 de junho de 1729, há alusão à existência de coqueiros e cajueiros naquele antigo e tradicional logradouro público. Vicente Rodrigues Viana, em 20 de fevereiro de 1735, fazia referência ao mangue e ao baldo, presentes na Ribeira.

Em 15 de novembro de 1747, já era registrada a existência de uma grande ponte sobre o alagado da Ribeira. Novas referências sobre o mangue, a ponte e as salinas que aproveitavam as águas salgadas do braço do rio, são feitas no requerimento de concessão de terras formulado pelo Condestável da Fortaleza dos Reis Magos, Francisco Correia de Araújo, em 15 de junho de 1748. Em 1º de outubro de 1765, Matias Ferreira referia-se à existência da Cacimba de São Thomé.

O documento de concessão de terras, pelo Senado da Câmara do Natal, feita a João da Costa Santiago, em 11 de dezembro de 1782, referia-se ao “aterro da Ladeira”. Em 12 de maio de 1790, Fidélis José da Rocha, como proprietário de terras na Ladeira da Cruz desde 13 de fevereiro do mesmo ano, requeria “terras desapropriadas e inúteis para edifícios pelas concavidades ignotas que em si têm… cercando-as para plantas e legumes, que por esse tempo costumam neste continente florescer e fecundar com utilidade’’.

No século XIX houve concessão de terras a 6 beneficiários, na então Rua do Aterro. Primeiramente o Capitão Luís José de Medeiros, em 22 de abril de 1809, “na rua que desce para o aterro… por onde passa o comércio que vai para a várzea da dita Ribeira’’. O último registro de concessão de terra naquele logradouro, data de 20 de novembro de 1824, cujo beneficiário foi Bernardo Luís Álvares.

Até a primeira metade do século XIX existiram poucos moradores na ladeira. Em 9 de dezembro de 1859 foi expedido pelo Palácio do Governo, um ofício assinado por João José de Oliveira Junqueira, dirigido aos vereadores da Câmara Municipal do Natal. O referido ofício recomendava a construção de casas particulares no lado do poente da Rua do Aterro até o rio, local considerado “próprio para edifícios de casas particulares em um bairro comercial que tanto carece delas”. Entretanto, exigia-se que fossem respeitados os alinhamentos das casas já existentes e conservado um espaço de 60 palmos, entre as edificações e o rio, visando à construção de uma rua e do cais.

Recomendava-se também que os moradores de tais casas ficassem obrigados a fechar seus quintais com muros. O alinhamento dos muros deveria ser rigorosamente regular e em uma das extremidades do aterro ficaria uma rua com 50 palmos, comunicando-se com o cais.

Até o último quartel do século XIX, aquela rua recebeu sucessivas denominações: Aterro, Ladeira, Subida da Ladeira, rua da Cruz. Manuel Januário Bezerra Montenegro, vice-presidente da Província, em exercício, referia-se àquele logradouro como sendo a Rua da Cruz, em seu relatório de 4 de dezembro de 1878. O decreto municipal de 13 de fevereiro de 1888, conservou o mesmo topônimo.

Posteriormente ao ano de 1888, a antiga Rua da Cruz recebeu a denominação de Conselheiro João Alfredo.

Conselheiro João Alfredo e Dr. Junqueira Aires

João Alfredo Correia de Oliveira, pernambucano de Goiana, nasceu em 1835. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Recife, aos 25 anos de idade.

Antes de ingressar na política, João Alfredo foi delegado de polícia, promotor público, juiz municipal e de direito. Em 1859, elegeu-se deputado em sua cidade, e por duas vezes foi eleito deputado geral.

Ocupou os cargos de Presidente da Província do Pará (1869-1870), Ministro do Império (1871-1875), Senador (1877), Presidente da Província de São Paulo (1885-1886). Em seguida presidiu o penúltimo Gabinete Conservador da Monarquia, em 1888. No período republicano, assumiu a presidência do Banco do Brasil. Faleceu ele no Rio de Janeiro, em 1919.

A Resolução nº 28, de 5 de março de 1896, da Intendência Municipal do Natal, substituiu a denominação de Conselheiro João Alfredo, para Rua do Dr. Junqueira Aires:

“Considerando que o cidadão João Alfredo Correia de Oliveira, como signatário do Manifesto Restaurador-documento que embora sem eco na opinião pública, constitui uma afronta à consciência nacional mostra-se infenso à felicidade da Pátria;

Considerando que bem e legitimamente tem merecido do Estado o Dr. Junqueira Aires, tanto pela sua lealdade republicana, como pela relevância dos seus serviços no Congresso Federal;

RESOLVE:

Art. 1- A rua conhecida nesta capital pela denominação de – Conselheiro João Alfredo, passa nesta data, a chamar-se rua do Dr. Junqueira Aires.

Art. 2 – Revogam-se as disposições em contrário”. A Resolução acima foi assinada na Sala das Sessões do Conselho Municipal da Cidade do Natal, em 5 de março de 1896, pelo Vice-Presidente da Intendência, Olympio Tavares. Após a sessão, uma comissão constituída por vários membros da Intendência foi pessoalmente levar uma cópia da Resolução à residência de Junqueira Aires.

Luís Francisco Junqueira Aires de Almeida nasceu na Bahia, em 1860. Descendia ele de família ilustre, de grande projeção na política, letras e ciências. Era filho de Junqueira Aires de Almeida Freitas, poeta e jurisconsulto. Em 1881, Junqueira Aires graduou-se em Engenharia Civil, pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Retornou em seguida à Bahia, sendo eleito, por um biênio, à Assembleia Provincial. Posteriormente representou a Bahia, no Império, como deputado geral.

Junqueira Aires destacou-se como orador brilhante, tribuno genial e admirável pensador. À época da Proclamação da República, encontrava-se em Minas Gerais, afastado do cenário político. Com a implantação do novo regime, foi nomeado em 1892, fiscal do Governo junto à Estrada de Ferro Natal – Nova Cruz.

A nomeação de Junqueira Aires, para fiscalizar a referida ferrovia causou grande satisfação ao então Governador Pedro Velho, seu antigo admirador e amigo.

Pedro Velho já se relacionava com Junqueira Aires desde o período acadêmico, no Rio de Janeiro, o primeiro cursando medicina e o outro engenharia. Depois de formados, tomaram rumos diferentes. O reencontro somente ocorreu por ocasião da Proclamação da República.

Em Natal, Junqueira Aires passou a colaborar brilhantemente nas gazetas partidárias, sempre com artigos quentes e vibrantes. Em 1894 foi eleito, por indicação de Pedro Velho, representante do Rio Grande do Norte na Câmara dos Deputados Federais. Foi considerado o mais brilhante orador daquela Câmara.

Luís da Câmara Cascudo assim o descreveu “era o Dr. Junqueirinha uma criatura pequenina, agitada, olhos brilhantes, testa ampla e uma barba à andó. Ninguém o conhecia. Morava longe da cidade, retraído, lendo… Era encantador de simplicidade, de comunicação afetuosa… Seu vocabulário, a rapidez fulminante da dicção, o gesto, a rutilância das imagens, sagraram-no tribuno incontesto’’.

Depois de assumir o cargo de deputado federal, Junqueira Aires só retornou uma vez a Natal, em fevereiro de 1896, sendo então recebido, no cais da Alfândega, por amigos e representantes de todas as classes sociais.

Às 12:00 horas do dia 21 de fevereiro de 1896 foi servido um banquete, em homenagem a Junqueira Aires, realizado no Hotel Brasil, com a presença de altas personalidades da política e da administração, presidido pelo Governador Pedro Velho.

Junqueira Aires permaneceu em Natal até o final do mês de março, com o objetivo de assistir à posse de Ferreira Chaves, que deveria assumir o governo do Estado em 25 de março de 1896.

Por ocasião de sua estada em Natal, Junqueira Aires foi acometido de uma terrível enfermidade, que lhe produziu sofrimento. Seguiu para Recife, em busca de tratamento, ali vindo a falecer no dia 10 de maio de 1896, quando contava apenas 36 anos de idade.

Natal já havia prestado uma grande homenagem ao brilhante tribuno, denominando de Junqueira Aires, uma das mais importantes avenidas da Cidade. Até o final do século XIX, ainda era lento o povoamento da Ladeira. Em 1897, a Intendência Municipal de Natal realizou um recenseamento na Cidade. Àquele ano foram registradas 22 casas e 168 habitantes na antiga avenida Junqueira Aires.

O primitivo aterro recebeu posteriormente um revestimento, de pedras soltas. O Prefeito Omar O’Grady retirou aquelas pedras, calçando então a Ladeira com paralelepípedos. Atualmente a avenida apresenta um pavimento asfaltado.

Em 1907, a antiga avenida Junqueira Aires assistiu à passagem dos funerais do seu ilustre e destacado morador, Pedro Velho, cujo velório ocorreu no antigo prédio do Congresso e da Sede da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Norte.

Em 1908, a Companhia Ferro Carril inaugurava o sistema de transportes urbanos coletivos de Natal. Surgiram os bondes puxados a burro. Os animais desciam e subiam com dificuldade a ladeira, conduzindo os passageiros, no trajeto Ribeira-Cidade Alta.

Em 1911 foi inaugurado um novo sistema de transportes; eram os bondes elétricos, que venciam também com dificuldade o acentuado aclive da ladeira. Contam que a meninada passava sebo nos trilhos, apreciando de longe o esforço da robusta máquina.

Até 1935, a então avenida Junqueira Aires era a única via de acesso entre os dois bairros, Cidade Alta e Ribeira. O Prefeito Miguel Bilro, em 1935, prolongou a avenida Rio Branco até encontrar a Ribeira, passando então o natalense a conhecer outro caminho para a mesma.

Prédios históricos da avenida

Vários e importantes prédios de Natal permanecem na paisagem da atual Avenida Câmara Cascudo. Dentre eles o edifício da antiga Companhia de Aprendizes Marinheiros, instalada em 1873, servindo depois à Capitania dos Portos. O prédio teve a sua bela fachada neoclássica restaurada pela Prefeitura Municipal de Natal, surgindo no lugar do antigo prédio uma nova construção, a Capitania das Artes, um novo espaço alternativo para a cultura natalense.

Do início do século XX, existem na avenida expressivos prédios, de relevante valor arquitetônico: a casa nº 377, onde morou Luís da Câmara Cascudo, construída em 1900; o prédio nº 478, onde funcionou a Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Norte, construído em 1906, pelo arquiteto Herculano Ramos, para sediar o Congresso Legislativo do Estado; o casarão nº 431, construído em 1908, por João Alfredo, posteriormente adquirido pelo coronel Aureliano Medeiros, restaurado pelo Governo do Estado, nele funcionando, hoje, o Centro de Documentação Cultural da Fundação José Augusto; o Solar Bela Vista, construído em 1910, para residência do coronel Aureliano Medeiros, em cuja edificação foi utilizado o que havia de melhor em materiais de construção e de acabamento, em sua maioria importados da Europa; a bela balaustrada decorativa e o relógio, inaugurados em 2 de outubro de 1911, desenhados e construídos por Corbiniano Villaça, que trouxe de Paris todo o material necessário às obras.

Por tudo isso, a avenida Câmara Cascudo é merecedora do título de Corredor Cultural de Natal, e as edificações que a compõem devem ser contempladas com os recursos necessários à sua conservação como obras arquitetônicas, e valorizadas como Patrimônio Artístico e Histórico do Rio Grande do Norte.


ILUSTRAÇÃO: Renata Freire Costa

Jeanne Nesi

Jeanne Nesi

Superintendente do IPHAN-RN, Sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico do RN, e Sócia correspondente do Instituto Histórico Geográfico e Arqueológico de PE. Fundou a Folha da Memória, com periodicidade mensal. Publicou cinco livros, sendo dois como co-autora. Publicou folhetos, folders e cordéis e mais de 300 artigos sobre o assunto em uma coluna semanal no jornal Poti, na Folha da Memória e em revistas do IHGRN.
Atualmente aposentada, mas sempre em defesa do patrimônio histórico.

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidos do mês