POR ALBIMAR FURTADO
De repente ela se tornou a mulher mais importante e poderosa do Rio Grande do Norte. Primeira dama, comandava um grupo de esposas de secretários do Governo e de funcionários. Atuava com desenvoltura nas ações sociais da administração, guardava uma apreciável coleção de perucas, chapéus e vestidos criados por Marcílio Campos, mais famoso estilista do Nordeste, era presença diária nas colunas sociais e estava nas festas mais glamorosas da região. No dia 16 e março de 1971, com Cortez Pereira, o marido governador, subiu os degraus do poder.
Assim se passaram quatro anos.
De repente, também, as cenas e o tempo do Governo acabaram. No dia 16 de março de 1975 acompanhando o marido, agora ex governador, ela descia os mesmos degraus do poder. Era o retorno à planície, agravado pouco tempo depois com a suspensão dos direitos políticos do marido, o afastamento de grande parte dos amigos e a chegada do maior dos inimigos dos que perdem o poder: a solidão. A casa, antes sempre muito visitada, tem agora seus espaços preenchidos unicamente por familiares e pelos poucos, muito poucos, que restaram solidários.
E assim, já se passaram 35 anos.
Os acontecimentos e as ações de bastidores que construíram essa história contarão, em breve, em um livro que a principal protagonista desta reportagem,, Aída Ramalho Cortez Pereira, a ex-Primeira Dama, está preparando. Ela já tem um vasto material levantado e agora pensa procurar um editor. Quer contar tudo, a partir do primeiro dia de expediente no Palácio Potengi (hoje Palácio da Cultura), então sede do Governo. Naquele primeiro dia, manhã cedo, chegou com o Governador e nas primeiras atitudes já mostrava a marca forte da personalidade capricorniana. “Sou forte, sou justa, sou de São Sebastião guerreiro”, diz D. Aída.
Intuição profética mesmo com o expediente já iniciado, percebeu que os salões e escadas do prédio estavam sendo lavados pelos funcionários. “Era uma água suja e eu, supersticiosa como sou, não gostei de ver aquela lama. Não era um bom sinal”, previu. Tomou a decisão de visitar todos os cômodos palacianos e novamente não gostou do que viu. Com o apoio do marido governador, procurou o arquiteto Ubirajara Galvão, a quem pediu um projeto para recuperação e ambientação, decisão que foi reforçada com o anúncio da visita ao Estado do então Presidente Garrastazu Médici. O escalão precursor da Presidência da República vetou a ida da comitiva presidencial à sede do Governo por conta do desgaste acentuado das estruturas do prédio.
O prédio foi recuperado e lá o Presidente foi recebido. D. Aída quis mudar tudo porque, parra ela, nas administrações anteriores faltavam presenças femininas para cuidar de detalhes como a imponência, conforto e beleza dos velhos salões palacianos. “Estava tudo velho demais”, lembra. O projeto de ambientação mexeu desde as calçadas, que receberam pedras portuguesas, passando pelo interior com móveis, lustres, peças com mármore de Carrara e cristais, até o jardim ao fundo do prédio. Na abertura, ouviu-se o requinte de um concerto do Maestro Oriano de Almeida, executando, em piano comprado especialmente para o momento, peças dos grandes clássicos da música universal. Era o tempo da lua de mel com o poder. “Lamento” – avalia hoje D. Aída, “que estes cuidados não tenham tido continuidade”.
Ao mesmo tempo em que expirava o “tempo das rosas”, iniciava-se a rotina administrativa. “Fui convocada pelo Governador Cortez Pereira para realizar o trabalho social do governo, coisa que não existia antes. Era tudo muito difícil, porque sequer havia verba para o setor”. Ela então criou a LAC – Linha Auxiliar da Comunidade e convocou as esposas dos secretários do Governo para o trabalho. “Nem eu nem elas recebíamos salários do governo”, ressalta.
Em paralelo, D. Aída tinha-se imposto a outra tarefa que, com determinação, executou durante todo o período administrativo, por vezes até com excessos. “Proteger o meu Governador”. Traduzindo: livrar o Governador Cortez Pereira do que achava ser os excessos e as armadilhas que acontecem no exercício do poder. Quando achava que o marido precisava repousar, sem que ele soubesse, negava até aos secretários que o procuravam para decisões administrativas, que o governador estivesse em casa. Ou ainda, se intuísse que em uma audiência reservada o marido governador pudesse adotar decisões com os quais não concordasse, não arredava o pé do gabinete. Nem que isso constrangesse o visitante. “Em primeiro lugar, estava o meu marido”, repete a ainda hoje convicta D. Aída.
Adotando tal comportamento, por duas vezes ela foi surpreendida, uma delas com o deputado Moacir Duarte. Enquanto o funcionário de apoio, servindo na residência oficial e seguindo a orientação já anunciada negava ao parlamentar a presença de Cortez em casa. Moacir via o governador pela porta entreaberta. De temperamento forte o deputado, indignado, esbravejou. Sem saber do que se tratava, Cortez foi ao seu encontro e, percebendo o motivo do mal estar tratou de amenizar o ambiente tenso: “O rapaz tem razão, Moacir. Eu acabo de chegar e ele não me tinha visto”. Naquele instante os ânimos foram serenados, mas Moacir nunca mais aceitou a explicação.
De outra vez, numa noite, depois de muito trabalho, Cortez repousava quando chegou à sua casa o irmão e então líder do Governo na Assembleia Legislativa, deputado Benvenuto Pereira. Um motorista, contratado dias antes e ainda sem conhecer em detalhes as regras não oficiais do trabalho, mandou o irmão do governador entrar. Depois, foi fortemente cobrado e não teve aceita sua explicação de que considerava a razão familiar para fazer Benvenuto chegar ao Governador. Auxiliares que com D. Aída trabalhavam, como os motoristas Raimundo (Neném) e Zezinho e o então estudante Aldemar de Almeida, justificam esse comportamento da Primeira Dama: era o zelo que tinha pelo marido. Interpretação que não era aceita por alguns políticos e auxiliares do Governador.
Aldemar de Almeida, hoje jornalista, trabalhava na residência oficial. De suas observações ressalta a sagacidade de D. Aída. “Ela percebia quando queriam engabelar Cortez e tudo fazia para evitar que se consumasse qualquer ação que viesse prejudicá-lo”. Raimundo e Zezinho, os motoristas, fazem coro ao que diz Aldemir, concordando também, que da mesma forma que era exigente no trabalho no Palácio Potengi, assim também procedia com os que trabalhavam na residência do Governo. Está na lembrança deles o dia em que o Comandante da Polícia Militar chegou à residência e percebeu que um cabo da PM, que ali servia, lavava cômodos da casa. Insatisfeito, o superior sugeriu ao subalterno: “Você é um militar, não pode se submeter a este tipo de trabalho. Volte para o quartel”. O cabo, que não desejava se ausentar da atividade, retrucou: “Por que o senhor não diz isso a ela?”. Ficou o dito pelo não dito e o cabo Marcolino ficou com D. Aída até fim do governo.
Eles também lembram as ações sociais pela LAC: o Natal das Crianças, que deixou o Machadão (à época Castelão), absolutamente lotado, com entrega de presentes para todos; a distribuição de toneladas de peixes a famílias pobres durante a semana santa; fardas e caixas de trabalho para os engraxates mirins; e até coisas bizarras, como o velho que vendia estrume para sobreviver, mas teve que parar porque lhe roubaram o burrinho que levava a carga do produto. Foi se socorrer da Primeira Dama, que determinou a compra imediata de outro animal para o velho voltar a ter a garantia de seu sustento. Era comum também mandar pessoas com problemas graves de saúde, precisando de tratamento de urgência, para centros melhores equipados como Brasília, Rio, São Paulo e Recife.
Na mesma sala de visita da sua residência que durante quatro anos foi espaço de conversas e decisões que hoje fazem parte da história política, social e econômica do Estado, incluindo-se as conversas iniciais para o projeto de colonização das Vilas Rurais e Projeto Camarão, espaço que ainda hoje abriga os mesmos móveis da época do Governo, D. Aída se reporta àquela época e o olhar retoma o brilho do passado: “Com minhas amigas da LAC, as esposas dos secretários e funcionários, fizemos muitas coisas. A Cidade da Criança foi uma coisa linda. Eu e Cortez queríamos que fosse um lugar onde as crianças pudessem aprender as coisas do Estado. Tinha ali, em miniatura, o Palácio do Governo, o Tribunal de Justiça, casa de fazenda, casa de farinha, teatro e muitas outras coisas. E não se pagava para entrar”.
Lembra também o programa que, início da década de 70, animava ruas da cidade, o “Vamos Colorir e Perfumar Natal”. Era um xodó de D. Aída. Tinha carros de som, foguetões, flashes fotográficos, muita música (havia até um disco, compacto duplo de vinil, com músicas do programa, de autoria do Secretário do Governo Roberto Lima) e mudas de jasmins, bougainvilles e flamboyants, entre muitas outras que eram distribuídas gratuitamente. “Câmara Cascudo tinha um jasmim na casa dele, plantado por nós. E quando floria, ele sempre telefonava para dizer que a casa dele estava invadida pelo perfume da planta. Era um gesto muito simpático”, lembra, com um ar de nostalgia, a ex-primeira dama.
As recordações de D. Aída passeiam por Natal e vão pontuando. Surge o Bosque dos Namorados, “uma área que era esquecida e que ainda hoje tem muita serventia”, a Escolinha do Pequeno Atleta, nas Rocas, o Instituto Padre João Maria, na Cidade da Esperança; e o trabalho para menores engraxates.
Mas nem tudo são flores nas memórias da presidente da LAC. Houve também, lembra, momentos graves como o acidente de Currais Novos, quando um caminhão desgovernado atropelou e matou 25 pessoas que participavam de uma procissão e feriu muitas outras. Era começo de noite, o Governador Cortez Pereira estava em Brasília e foi D. Aída quem, pelo Governo, determinou as providências iniciais. “Na minha vida não vi tragédia maior. “Na minha vida não vi tragédia maior. Era uma tristeza só. Foi a partir desse desastre que Cortez tomou a decisão de fazer um hospital regional em Currais Novos e que ainda hoje tem muita importância para o Seridó”.
A vida no Governo alternava o trabalho, os projetos, as festas e, naturalmente, a vaidade feminina. Ela colecionava joias, chapéus e perucas e vestidos que realçavam sua condição de Primeira Dama. Para tratar da elegância sempre tinha a seu lado profissionais renomados. O cabeleireiro Severino Ramos (Raminho) chegou a acompanhá-la em viagens. Marcílio Campos, o estilista pernambucano preferido pelas socialites do Nordeste, vestia D. Aída, “antes mesmo de Cortez ser Governador”. Esse viés do mundo governamental também a encantava. Em torno dela sempre estavam as câmeras fotográficas e de televisão das emissoras de Recife, já que Natal, à época, não tinha estação local. Sem falar nos registros dos colunistas sociais mais prestigiados. “Tinha muita gratidão por J. Epifânio e Adalberto Rodrigues”, homenageia os dois colunistas já falecidos.
D. Aída para de falar. Fixa o olhar no quadro com a foto de Cortez Pereira na parede da sala de visita. As lembranças agora são amargas. Diz que o marido foi muito injustiçado. Lembra a suspensão dos direitos políticos dele pelo AI-5,no Governo Geisel, e os seus desdobramentos,como o vasto noticiário, que diz inverídico e que prefere não comentar (aqui vem à minha memória o relato feito por ela do primeiro dia de expediente no Palácio e a lama espalhada pelo chão, que aguçou a superstição de D. Aída).
Mas sobre o assunto, um auxiliar de Cortez que trabalhava muito próximo da LAC, Alcimar de Almeida. Presidente da Fundação do Bem Estar Social, comenta aquele que foi o maior dos “escândalos” da administração, a compra de soutiens. Notícias desencontradas indicavam a compra de 17 a 35 mil peças. A versão de Alcimar de Almeida, que teve então suspensos seus direitos políticos, é esta: o projeto das Vilas Rurais, em Serra do Mel, estava sendo concluído. Lá, existia um barracão explorado por um pequeno comerciante, “destes que vendem de tudo e todos os produtos são bem populares, de preço baixo”.
Lembra Alcimar que o dono do barracão procurou o Governador solicitando ajuda para encerrar as atividades, já que se iniciara a desmobilização dos trabalhos no projeto. Cortez pediu à esposa que encontrasse uma solução. “D. Aída viu que os preços eram bem baixos e que os produtos se encaixavam bem no trabalho social que realizava no LAC. Comprou brinquedos e soutiens. A grande diferença é que eram apenas 117 peças. Para não deixar dúvidas: 117 unidades e não 35 mil. E é isto que está lá no processo”. Para comprovar a lisura do trabalho, Alcimar um ex auditor da Receita Federal, professor da UFRN e que presta consultoria nas áreas fiscal e tributária à administração municipal, apresenta duas cópias do Diário Oficial da União, com datas bem distintas. A primeira, de 4 de agosto de 1976, com o decreto assinado pelo Presidente Ernesto Geisel, suspendendo seus direitos políticos e os do Governador Cortez Pereira, além de mais quatro auxiliares da administração estadual. A segunda cópia, edição de 5 de maio de 2009, declara Alcimar de Almeida “anistiado político” e concede reparação econômica, de caráter indenizatório. Na Ata de julgamento da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, está registrado: “A Turma, por unanimidade, opinou pelo deferimento do pedido para conceder: a) declaração de anistiado político a Alcimar de Almeida e Silva e b) reparação econômica em prestação única referente ao período de 4 (quatro) anos de perseguição política…”
A lembrança do episódio dos soutiens deixa D. Aída aina indignada.
-O Governo deixou saudades?
“Tenho saudades de Cortez. Lembro do trabalho que fiz. Das festas e do glamour, prefiro não lembrar. Sofri muito com o que aconteceu depois”.
Olha firme a foto do marido e sua figura remete ao “Poema do mais Triste Maio”, de Bandeira: “E passado a sazão das rosas,/ Tudo é vil, tudo é sáfio; árduo./ Nas longas horas dolorosas/ Pungem fundo, as puas do cardo”.
Diz ter feito um voto de pobreza. “Minha riqueza era meu Governador”. Revela que gostaria de ter feito carreira política, “mas ele não gostava da ideia”. Reclama porque o Rio Grande do Norte ainda não prestou a devida homenagem a Cortez Pereira e lembra que o Centro Administrativo poderia levar o nome dele. Hoje, para vencer o tempo, divide-se na atenção aos filhos e nas corujices de avó de três netos. No dia-a-dia acorda cedo, às 6 horas. Atende pessoas, telefonemas, participa das atividades da “Aída Cortez Bolos Artísticos”, buffet da filha Aidinha. E se entrega a leituras (está lendo ‘E a Vida Continua”, de Roque Schneider) e ao levantamento do material para o livro que lançará.
“No meu livro quero mostrar o que fiz, vi e sofri. Mas falarei muito da trajetória de Cortez, da Serra do Mel e do Governo. Da posse até a suspensão de seus direitos políticos. Tenho atrasado um pouco esse trabalho. É que a emoção me envolve e quando isso acontece, tenho que parar”.
D. Aída prepara-se para as fotos da matéria. O rosto se ilumina. Chama filhos e netos. Estão todos com ela. Ri, brinca, conversa. Fala em novos planos. “Vou sair desse casulo”, diz determinada.
Tão de repente quanto a posse e a saída do Governo, parece voltar a “sazão das rosas”.
Parece.
- Matéria publicada na edição nº 1 da Revista Palumbo, em 13 de novembro de 2009