Em Juazeiro do Padre Cícero

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Para Inácio Magalhães in memoriam

Há muito tempo, estava devendo a mim mesmo uma viagem a Juazeiro. Como bom nordestino, já deveria conhecer a cidade do Padre Cícero. Mas, a oportunidade de conhecê-la, até que enfim, surgiu. E lá vou eu de ônibus, via João Pessoa e Campina Grande, ansioso por chegar à Meca sertaneja.

Doze horas de viagem, passando por outras cidades, que desejava também conhecer: Patos, Pombal, Souza e Cajazeiras.

Tardezinha, já, o ônibus come estrada, pelo sertão paraibano. Na solidão da caatinga, serras azuis emolduram a paisagem… Serrotes alteiam-se monumentais, em meio ao descampado; têm estranhas formas: aquele parece um bicho enorme, aquele outro, prosaicamente, um cuscuz, direitinho.

Perto dali, pegadas de dinossauros, com milhões de anos, são conservadas. Pena que, desta vez, não poderei vê-las.

É noite alta quando chegamos a Juazeiro. Surpreendentemente, não sinto cansaço. Tive como companheiro de viagem, ninguém menos que Inácio Magalhães, intelectual, profundo conhecedor da história do Padre Cícero, e ele, conversando sempre, fez com que o tempo passasse mais depressa. Inácio é um perfeito cicerone – sem trocadilho.

Na manhã seguinte, fomos visitar a cidade. O roteiro começou na Praça Pe. Cícero, no centro da qual encontra-se estátua, em bronze, inaugurada ainda em vida do homenageado.

Minha atenção desvia-se do monumento, quando vejo uma pobre mulher estirar a mão, pedindo a bença ao padrim. A cena me comove.

Reflito sobre a importância do Padre Cícero para a gente sofrida que, de todos os recantos desse imenso Nordeste vem, diuturnamente, em romarias, consolar-se com ele, com o mito em que ele se tornou.

Nascido na vizinha cidade do Crato, em 24 de março de 1844, Cícero Romão Batista, ainda jovem, recém-ordenado, fixou-se em Juazeiro, e lá viveu, quase sempre, até o fim dos seus dias. Indiscutivelmente, foi ele quem transformou o modesto povoado num dos grandes centros de devoção popular, hoje a maior cidade do interior cearense.

Figura polêmica, envolveu-se em rumorosos acontecimentos que lhe deram projeção nacional. Há uma vasta bibliografia a seu respeito, dividida em prós  e contras.

Sua extraordinária saga começa por volta de 1889, em Juazeiro, quando ele, dando a comunhão à beata Maria de Araújo, vê a hóstia transformar-se em sangue. “O sangue de Jesus!”. Milagre ou farsa? Repete-se tal fenômeno, atraindo levas de romeiros. O bispo do Ceará, D. Joaquim José Vieira instaura inquérito e o caso vai parar na Santa Sé. Padre Cícero é suspenso de ordens.

Mas, o seu prestígio junto ao povo aumenta, cada vez mais. Ingressa, anos depois, na política partidária, primeiro prefeito de Juazeiro. Posteriormente, ocuparia a 3ª vice-governança do Estado do Ceará, e, já ancião, seria eleito deputado federal.

Um fato marcou, fundamentalmente, a sua biografia, embora ele se exima de qualquer responsabilidade quanto ao mesmo. Trata-se da Sedição de Juazeiro (1914), liderada pelo seu amigo, o médico Floro Bartolomeu, prestigioso chefe político. Dr. Floro, à sombra do Pe. Cícero, pôs o Ceará em pé de guerra contra o governo Franco Rabelo, afinal derrubado. Muito sangue correu.

Não só Floro Bartolomeu, mas inúmeras outras pessoas “usaram” o Padre Cícero. Daí, em grande parte, as contradições apontadas em sua biografia.

Teria sido ele “santo” ou “coronel”? Certo é que era um homem bom. Afável, carismático, foi e continua sendo o padrim de milhares de desvalidos.

Igreja Matriz e Capela

Prosseguindo o giro pelo centro de Juazeiro, sigo, em companhia de Inácio Magalhães, na direção da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores. Ela está para Juazeiro assim como a Caaba está para Meca. Mas, ao contrário do que se possa pensar, não é a maior, nem a mais bela da cidade. Existem duas outras, construídas no limiar da década de 1950, que impressionam pela monumentalidade: a Igreja dos Franciscanos e a do Coração de Jesus (Salesianos).

Pequena, modesta, a Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro abriga o jazigo do Pe. Cícero.

Nas imediações desses templos, notadamente na Matriz, há muitas lojas de artigos religiosos (quadros e imagens do padrim e de santos em gesso, rosários, medalhas, etc.).

O passeio continua sob o sol dos trópicos, calor medonho. Agora uma visita à casa onde morreu o patriarca, residência típica da pequena burguesia interiorana na primeira metade do século XX. Só que enorme. Estão guardados ali ex-votos, objetos pessoais e vestimentas, além de uma coleção de aves empalhadas e pequenos animais em formol, peças que bem demonstram a inclinação do padre pelas ciências naturais.

Depois de passarmos pelo Memorial “Padre Cícero” (museu, biblioteca e auditório), em estilo moderno, fomos ver de perto, na Serra do Horto, a grande estátua (25 metros de altura e 8 de base), representando o padre, apoiado num cajado, com o chapéu na mão.

Juazeiro tem sabido aproveitar suas potencialidades turísticas e a prova disto é esse monumento espetacular. Construído no alto da serra, é visto de toda a cidade. E lá de cima descortina-se maravilhoso panorama.

Um pequeno museu de cera, com figuras do Padre Cícero e de amigos deste, no casarão do Horto, ao lado do monumento, é outra atração interessante.

O bom nordestino

Despeço-me da cidade, na certeza de voltar, algum dia. O ônibus, deixando a área urbana, passa pela frente de moderno shopping center. O sertão moderniza-se…

Dois ou três espigões, ao largo, destoam; são monumentos à insensatez.

De volta a Natal, convenço-me da verdade contida numa frase que ouvi antes de viajar: “Todo bom nordestino devia ter vergonha de não conhecer Juazeiro”

Manoel Onofre Jr.

Manoel Onofre Jr.

Desembargador aposentado, pesquisador e escritor. Autor de “Chão dos Simples”, “Ficcionistas Potiguares”, “Contistas Potiguares” e outros livros. Ocupa a cadeira nº 5 da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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