A “venda casada” e as cervejas que só são vendidas em packs

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Saudações, cervejeiros “casados”!

Como todo ser humano que já casou (e se frustrou) sou derradeiramente contra a venda casada! E olhe que acho que todos devem casar, é muito errado uns serem mais felizes que os outros!

Claro que eu não poderia deixar passar essa piada infame… por mais verídica que ela seja.

Brincadeiras à parte, obviamente, o tema de hoje é muito mais sério do que a mera introdução jocosa que vos escrevo. Vamos falar de uma prática juridicamente ominosa que costuma ser repetida à exaustão por várias cervejarias nacionais: a famigerada “venda casada”, ou, quando as cervejas só são vendidas em packs.

A venda casada é uma forma de alienação comercial vedada por lei, e como tal, merece ser reprovada e combatida. No entanto, vamos tentar ir um pouco mais além e tentar compreender porque as cervejarias insistem nessa prática de comércio. Para poder explanar melhor o caso, vamos ter que recorrer ao texto da lei que disciplina essa matéria.

Igualmente, vamos tentar desvendar o porquê de tantas cervejas organizarem seus lançamentos em “packs”, ou seja, aglutinam produtos em uma cesta de ofertas que acaba sendo considerada uma “venda casada”. Para tanto, vamos ver quais são seus “pretensos argumentos de venda”.

Cumpre salientar que o texto de hoje foi uma sugestão de Gustavo Fonseca (gutorage@gmail.com), que ao comentar um dos textos anteriores levantou a questão dos packs e das vendas casadas. Por ser algo recorrente e que também me causa repulsa pela ilegalidade na venda, resolvi escrever sobre tais circunstância cervejeira.

Então, vamos lá saber porque a “casadinha cervejeira” continua a ocorrer, ainda que terminantemente proibida por lei.

A prática da “casadinha”

Não vou reinventar a roda dizendo que todo comerciante ganha ainda mais vendendo em grandes quantidades. É dessa obviedade inexpugnável que se advém a necessidade de sempre vender mais e mais em termos de volume de negociação. Quanto maior o volume de vendas, consequentemente, maiores são os lucros: fato!

Contudo, existem certos regramentos jurídicos que vedam que se combinem vendas para que se alcance maiores volumes. É algo patente que a lei da procura e da oferta deve ser mantida para alimentar a senha comercial de Mammon, não estamos nos obstando também à tal fato óbvio. Apenas aponto que as limitações legais e éticas devem ser mantidas.

Afinal, respeito e educação com o consumidor cervejeiro não é para todo mundo, não é?

O grande ponto é que a venda casada, vulgo “casadinha”, é algo que por vezes deixa o consumidor sem muita (ou nenhuma) possibilidade de manobra.

Vou trazer o exemplo clássico da venda casada dos tempos modernos: só poder consumir pipoca e refrigerante que são vendidos pelo próprio cinema ao assistir uma sessão qualquer. Tal prática vem sendo fortemente coibida pelos órgãos de proteção ao consumidor, mas ainda continua ocorrendo Brasil afora.

Vender produtos de forma casada consiste em condicionar a forma de aquisição do consumidor à única maneira ofertada pelo vendedor. Isto é, colocando dois (ou mais) produtos (ou serviços, ou produtos mais serviços) de forma conjunta no momento da transação comercial.

A ilegalidade da venda casada

Infelizmente, apesar de proibida expressamente em texto de lei, a venda casada é algo muito usual, aliás, até mesmo trivial, no mercado em geral. Não muito diferente do que ocorre no meio cervejeiro, ressalte-se, quando muitas cervejarias condicionam a venda de seus produtos aos packs, geralmente, previamente montados e definidos por elas mesmas.

Trazendo um pouco da literalidade da letra da lei, temos que o artigo 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) proíbe a venda casada, por considerar prática abusiva: “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”. Nada melhor do que a lei para quem teima em fazer o que é errado.

Dito de outra forma, o consumidor deve ter o direito de adquirir uma unidade de um determinado produto, caso assim o deseje. Não vamos entrar em certas minudências ou controvérsias, como no caso de produtos vendidos por peso (não soa factível alguém querer comprar um único grão de arroz), ou um rolo de papel higiênico do pacote (isso aqui é bem mais controverso).

Para a finalidade da análise das vendas de packs cervejeiros como forma de casadinha não precisamos passar por tais polêmicas. Vamos deixá-las para programas de baixo clero, como os do Celso Russomano. Lá o sensacionalismo vende.

É proibido vender pack cervejeiro?

Respondendo de forma bastante direta e objetiva a essa pergunta, tendo em conta que o artigo 39, inciso I do CDC foi citado, podemos dizer que não é proibido vender cervejas na forma de pack. O que é proibido legalmente é condicionar a aquisição de uma ou mais cervejas apenas à modalidade de ser adquiridas em packs.

Ou seja, se o consumidor cervejeiro quiser apenas uma unidade de uma cerveja em específico ele deve ter a oportunidade de adquiri-la. Isso, contudo, não limita que as cervejarias, e-commerce’s ou pontos de venda (PDV’s) façam suas publicidades em formas de pack, oferecendo, por exemplo, um preço mais convidativo a quem os adquirir.

A abusividade da oferta cervejeira está no condicionamento da forma de aquisição. Se a única forma de adquirir tal cerveja for por meio de packs, configura-se a venda casada, e, consequentemente, a ilegalidade da oferta em questão.

É comum que se venda em packs e que isso acabe se refletindo no preço, sai mais barato comprar um 4 pack ou um 6 pack que uma unidade apenas de uma cerveja. Quem já foi em um supermercado norte-americano deve ter bem observado esse fato.

Quais os “argumentos” para se vender cervejas apenas em packs?

Às vezes, as pessoas gostam de “ver o outro lado” de uma história, mesmo quando esse outro lado está flagrantemente errado e em contraposição ao que diz a lei. Vou fazer esse exercício (pseudo) dialético e vou apresentar “o outro lado”.

Um dos argumentos mais usados pelas cervejarias ao condicionarem a venda de cervejas apenas em packs consiste em dizer que elas todas fazem parte de uma “série” e que não faz sentido bebê-las separadamente.

Falácia!

Tal argumento, além de pífio, desafia a capacidade intelectual e de escolha do consumidor. Existem cervejarias e cervejeiros que fazem questão de mandar no consumidor, eles acham que podem escolher o quê e quando o consumidor vai beber o produto deles. Isso sim é um ato de desrespeito!

Ilegal e antiético são as palavras que melhor definem esse comportamento dos cervejeiros e das cervejarias. Não cabe ao cervejeiro julgar que a experiência de degustação vai ser melhor apenas “se levar o pack da série cervejeira”. Quem deve decidir se vai ser assim (ou não) é o próprio consumidor, que está pagando pela cerveja. Se ele quiser apenas uma da série, dessa maneira ele deverá ser atendido!

Outro argumento, geralmente alardeado por e-commerce’s (mas também por cervejarias que fazem venda direta) é que não é viável vender apenas uma cerveja por causa do frete.

Mais uma vez, tal “argumentação” não se sustenta. Cabe ao vendedor prover os meios e ofertar as possibilidades de frete. Daí o consumidor que analisa se compensa ou não comprar apenas uma cerveja. O que não pode haver é a usurpação dessa possibilidade através da venda casada. Combinar a venda da cerveja (produto principal) com o frete (serviço acessório à venda) também é uma forma de se operar a venda casada.

Resumidamente: nada justifica a venda casada, todos os (pseudo) argumentos apenas privilegiam as cervejarias (vendedores de modo geral) e nunca, nunca mesmo, o consumidor. O qual apenas é refém de manobras comerciais em detrimento daquilo que ele almeja realmente adquirir.

Saideira

Apesar de o texto de hoje soar um pouco como um “manifesto” acredito que ele tem um caráter bastante didático e pedagógico. Muitas vezes, as pessoas não tem muita noção dos direitos que possuem, e, em grande parte das vezes, a outra parte da relação comercial se aproveita da fragilidade da falta de informação e conhecimento.

A venda casada, na situação específica da venda de packs cervejeiros, é ominosa. Uma prática vedada por lei, antiética e devastadoramente lesiva (abusiva).

O poder de escolha deve ser sempre do consumidor, a ele deve ser possibilitada a oferta de várias cervejas ou a opção de comprar apenas uma. Sem que ele esteja condicionado a levar mais de uma apenas porque a venda é feita por meio de “packs” ou “pacotes especiais de séries cervejeiras”.

Então, fica o recado: não à venda casada por meio de packs de cervejas!

Recomendação Musical

Admito que a recomendação musical de hoje não tem nada a ver com o tema do texto.

Isso pouco importa.

A música é maravilhosa, foi lançada há pouco tempo, aproveitem! Nem tudo deve ter um sentido (racional e claro) sempre.

Brindo-vos com Zeit da banda alemã de Industrial Metal: Rammstein.

Clipe perfeito, música linda! Daquelas que fazem o tempo parar… a propósito, Zeit é “tempo” em alemão.

Saúde!

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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