TERRA ESTRANGEIRA: Uma tumba para Borges

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Buenos Aires – Argentina, 08 de Fevereiro de 2016

 Por Pablo Capistrano

Acordei hoje de ressaca do vinho do aniversário e do gorduroso périplo sonoro do dia anterior.

Só não me senti pior porque havia achado alguma coisa boa pelos sebos itinerantes da feira de San Telmo: uma edição de bolso de 1983 de um livro de Rufino Blanco Fombona intitulado El pensamento vivo de Bolivar e uma edição de um livreto publicado em Rosário Central, província de Santa Fé, datado de 2003, contendo os primeiros poemas de Jorge Luís Borges. O texto intitulado Fervor de Buenos Aires é de 1923 e foi o primeiro livro de poemas publicado pelo autor argentino.

Certamente, se eu tivesse guardado mais pesos, tomado menos vinho ou gastado menos grana com as crianças; ou mesmo se o céu não tivesse ficado cinza, ameaçando, com relâmpagos e trovões, desabar sobre a capital argentina, certamente teria ficado o resto do dia zanzando pelas barracas de San Telmo em busca de mais alguma raridade literária.

Não há melhor turismo para um leitor compulsivo feito eu do que garimpar edições raras em meio aos sebos de cidades estrangeiras. Pouca gente entende mas, para mim, sebos são pontos turísticos incontornáveis.

Hoje, como o motorista do táxi que iria nos levar ao aeroporto de Ezeiza só chegaria à tarde e não havia nenhum sinal de folia pelas ruas da cidade no tal “carnaval kirchnerista”  resolvemos passear pelas ruas da Recoleta e ir ao cemitério (outro ponto turístico que gosto muito de visitar quando viajo por grandes capitais).

Não… nem pense, amigo velho, que isso é algum resquício dos meus anos de melancolia pós-punk, em que me encontrava com outros garotos e garotas perdidas para ver a Lua e tomar vinho ao som de Bauhaus e The Cure no cemitério da Vila de Ponta Negra, lá pelo final dos anos 80 e começo dos 90.

Além de terem bonitas peças de escultura e mausoléus muito interessantes, os cemitérios de grandes capitais são pontos de peregrinação para aqueles que gostam da biografia de personagens históricos.

Cemitério da Recoleta
Cemitério da Recoleta

No nosso caso, até as crianças também gostaram do passeio.

Só Uriel (meu filho mais velho) e minha mãe, se recusaram a entrar no cemitério da Recoleta em função de algum receio de que o calmo e estático silêncio da morte pudesse ser o prenúncio de alguma interferência espiritual no mundo dos vivos.

Mas se engana quem pensa que no cemitério da Recoleta só reina o silêncio.

Meu sobrinho David (de cinco anos) se assustou ao ouvir o som de um rádio, estranhamente colocado dentro de um dos mausoléus monumentais que despontam aqui e acolá em meio as ruas de tumbas enfileiradas.

“Os mortos estão ouvindo música” – ele disse segurando, com força, a mão do meu cunhado.

Na verdade a música parecia vir do rádio de algum dos trabalhadores que reformavam as tumbas do lugar.

Fora esse ruído musical, o que reinava no cemitério da Recoleta era um profundo silêncio, interrompido apenas pelo falatório de turistas que, como nós, zanzavam em busca do mausoléu da família Duarte, no qual está enterrada Eva Peron, a santa popular mais famosa da Argentina católica.

Situado no Bloco C, da área 07, numa das vielas mais escuras daquela cidade de defuntos, está a cova de Evita. Um túmulo simples e sóbrio, espremido em meio a construções pomposas e grandiloquentes como a dos ricos membros da burguesia portenha ou de antigos presidentes de repúblicas Latino americanas tipo Mitre ou Solano Lopez. Com rígidas linhas geométricas de um modernismo contido, ornado por placas de homenagens de associações de trabalhadores e de sindicatos, sempre decorados com flores, postas provavelmente por devotos do culto peronista, o túmulo de Evita me pareceu ser a única coisa realmente viva que habita naquele cemitério.

E foi talvez, impactado por essa energia de vida no interior do mundo dos mortos, que, ao começar a me afastar do mausoléu da família Duarte, onde o corpo de Evita descansa, me lembrei que Jorge Luis Borges, o maior escritor que a Argentina produziu, não está enterrado em Buenos Aires.

Não há uma tumba para Borges no cemitério da Recoleta.

Aliás onde está mesmo Borges na Buenos Aires de hoje?

Diferente da Santigo de Neruda ou da Praga de Franz Kafka, não consegui enxergar em minha curta estadia por aqui o uso da imagem de Jorge Luis Borges como um filão turístico. Fora uma caricatura dele em uma sacola plástica de uma livraria e uma placa com um nome de rua próximo ao jardim botânico de Palermo, não identifiquei facilmente a presença de nenhuma “casa de Borges” transformada em atração turística, como a casa em que Beethovem morou na saída da Ponte Carlos em Praga, a Goethe Haus em Frankfurt ou mesmo o apartamento de Freud na Berggasse 19, em Viena.

Pelos guias turísticos que consultei antes de vir pra cá só há menção a uma placa em Palermo Viejo, onde se lê “Nesta casa Jorge Luis Borges viveu quando era jovem”.

Talvez Buenos Aires tenha ícones demais para celebrar.

Gardel, Evita, Guevara e Maradona (que ainda está vivo e que já virou objeto de culto religioso). Talvez os argentinos não tenham deixado tanto espaço para um velho escritor discreto que viveu entre os livros, ou talvez o próprio Borges tenha cuidado para esconder sua imagem da exposição vulgarizante que as mitologias turísticas produzem nas urbes pós-modernas.

Borges parece que encantou-se discretamente por entre as ruas de Buenos Aires, dissolvendo-se pelo corpo da cidade que, de certo modo, era seu corpo, como um dia cantou naquele raro livro de poemas publicado em 1923 e que comprei na feira de San Telmo:

“las calles de Buenos Aires

Ya son mi entraña

Y son también la patria –

Las calles

Ojalá en los versos que trazo

Estén esas bandeiras

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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