TERRA ESTRANGEIRA: Um dragão vestido de azul

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Porto – Portugal, 05 de Fevereiro de 2017.

A TV noticiou essa semana que, após a tempestade do dia dois de Fevereiro que atingiu em cheio Portugal, de Lisboa até Viana do Castelo, trazendo ondas de até 10 metros para a foz do Rio Douro, um casal está desaparecido. O que parece é que eles foram trazer oferendas para Iemanjá justamente quando as ondas atingiram os maiores níveis e provavelmente foram arrastados para o mar.

Essa notícia me fez pensar duas coisas: (1) talvez a Iemanjá do Atlântico norte não seja tão maternal quanto a doce Iemanjá dos mares quentes do nordeste brasileiro; (2) parece mesmo que não seja realmente assim tão necessário, como Nietzsche pensou um dia, ter alguma fé religiosa na Europa de hoje.

Digo isso porque há um estranho sentimento em mim de segurança enquanto caminho pelas ruas do Porto, mesmo sobre a chuva forte que não para de cair por aqui (o bom da chuva aqui no norte é que a temperatura sobe quando ela aparece e não me pergunte o motivo).

Pode ser que isso se dê também em função de um fato fenotípico. Quando não abro minha boca pra falar e denuncio minha origem brasileira pelo sotaque, passo fácil por um português. Em função desse serviço de camuflagem genética voltei a sentir por essas bandas algo que sentia em Natal na minha infância e na adolescência: o desconcertante sentimento de poder caminhar na rua sem o medo de ser assaltado e sem aquela sensação de alerta, típico das sociedades mais brutalizadas pelo capitalismo tardio.

Aqui pelo “jardim” europeu há, por esses dias, uma certa impressão de previsibilidade e de ordem, uma sensação, não sei se ilusória, mas certamente bem evidente, de que não seremos atacados ou agredidos por outros transeuntes.  Essa parece ser a base de uma sensação captada por Nietzsche no final do século XIX, que indica que a sua famosa assertiva sobre a morte de Deus tem a ver com o dispositivo técnico da sociedade científica. A previsibilidade racional dessas sociedades, na perspectiva de Nietzsche, tornaria a ideia de Deus obsoleta, posto que a incerteza desse mundo não demandaria mais uma força transcendente que intercedesse em socorro dos humanos.

A ideia de um Deus protetor que nos ampara ocultamente e manipula os fatos para proteger seus amados filhos ou mesmo a crença esperançosa em uma vida futura sem dor e sofrimento numa terra prometida ou em um paraíso celestial, não seria mais imprescindível para os humanos que vivem em sociedades planejadas.

Mas, mesmo que Nietzsche esteja certo acerca da ideia de Deus, não sei se a Europa atual está assim tão livre da influência da religião, até porque me parece que o sentimento religioso talvez tenha migrado, travestido de nacionalismos e clubismos, dos templos cristãos para os estádios de futebol.

Ontem, mesmo com a chuva, eu e Uriel fomos assistir ao jogo do Porto contra o Sporting, no Estádio do Dragão. Renata Silveira, nossa amiga e anfitriã aqui no norte de Portugal, conseguiu dissuadir Uriel de ir ao jogo com a camisa do América de Natal. O vermelho não é uma cor bem vinda na casa de um dragão que se veste de azul, mesmo que em Natal exista um outro dragão, vermelho, que incendeia os gramados futebolísticos potiguares.

O fato é que a claque (como chamam por aqui a torcida) do “dragão da invicta” poderia confundir a camisa do dragão potiguar com a do arquirrival lisboeta, o vermelho Benfica.

Por esses litorais a rivalidade norte-sul tem também esse elemento icônico que separa o “cordão azul” do Porto do “cordão encarnado” do Benfica. Se Cascudo estiver mesmo certo, essa referência cromática poderia fazer eco à memória ancestral da antiga e mitológica guerra da reconquista, que colocou em campos opostos um norte “cristão” contra um sul “mouro”.

No caminho para o local da partida algo que parece recorrente em jogos de futebol, independente do país: a polícia montada fazia ronda ao redor do estádio e revistava minuciosamente quem entrava pelos acessos que nos levavam até a “casa do Dragão”. O objetivo deveria ser o de apreender rojões e sinalizadores, o que não parece ter sido alcançado posto que o que mais se ouvia ao adentrarmos os portões do estádio eram explosões na torcida do Sporting e na torcida do Porto. O fato é que a revista da polícia causou um tumulto na entrada, o que me fez lembrar um América e Flamengo que assisti, também com Uriel, no finado Machadão, em 2007, pela série A do campeonato brasileiro. Na ocasião, quase fomos esmagados na entrada do portão norte do estádio, imprensados por uma multidão rubro negra que se espremia para entrar no único acesso destinado à “torcida visitante” (um conceito que não faz sentido quando o time é o Flamengo e o jogo é no Nordeste).

O Porto está hoje na vice-liderança do campeonato português, a um ponto do Benfica, e Casillas, goleiro campeão do mundo pela seleção da Espanha em 2010, atuando pelo time azul e branco, fez pelo menos três defesas inumanas.

O jogo, que parecia ganho, com dois gols do Porto, tomou conotações dramáticas na segunda etapa quando o time voltou recuado e levou um gol do rival verde e branco de Lisboa. O Sporting, animado com a possibilidade do empate, partiu pra cima, dando um tempero especial a uma partida que parecia fácil.

No fim do segundo tempo, já nos acréscimos da disputa, deixamos apressadamente o estádio a fim de pegar o metrô de volta para casa e evitar sermos mais uma vez imprensados como sardinhas na lata com a debandada dos 43 mil torcedores que lotavam a casa do Dragão da Invicta.

Já dentro do comboio que nos levaria à estação de São Bento, ouvi uma notícia que me deixou surpreso. Os dois gols do time da casa foram marcados por Tiquinho Soares, que havia estreado justo nessa noite pela equipe do Porto. Tiquinho, natural de Sousa, na Paraíba, começou no futebol com 14 anos no “Palmeiras das Rocas” e jogou no América, o dragão vermelho da capital potiguar, entre 2009 e 2010.

Calhou justamente, por alguma coincidência dessas que parece justificar as noções de providência divina ou, pelo menos, a ideia de sincronicidade pensada por Carl Jung; que no dia da estreia de Tiquinho Soares vestindo a camisa do clube do Porto, no meio da imensa torcida azul, dois americanos, torcedores do Dragão vermelho da Rodrigues Alves, estivessem disfarçados de azul, no meio da “Invicta”, para assistir seus dois gols.

As vezes é tangível a impressão de que, a despeito da ideia de Deus não ser assim tão indispensável em sociedades planejadas, com algum traço de seguridade social e proteção estatal, a fé na religião do futebol ainda se mantenha, como uma sombra metafísica, indicando que há algo de misterioso agindo nas entrelinhas das cosmogonias futebolísticas.

Talvez essa seja mais uma das sombras de Deus, que por óbvio, não teria sido descrita por Nietzsche na sua Gaia Ciência, mas que atua do mesmo modo, fornecendo, mesmo para os “homens do amanhã” (nós da civilização da técnica), alguma migalha de transcendência.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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