TERRA ESTRANGEIRA: Dionísio eletrônico

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Santiago – Chile,  14 de Março de 2015

Acordei mais uma vez com o nariz congestionado, mas não com uma secreção úmida, como as que tenho em Natal no tempo da chuva e do mofo. Minha agonia aqui em Santiago é seca e sufocante.

Ana diz que é a poluição: “olhe pros seus pés”-  ela fala – “veja como eles ficam sujos quando você anda descalço pelo apartamento”.

Era a tal poeira fina que parecia pairar sobre a cidade e que agora, a julgar pelo chão no nosso quarto no aparthotel RQ, deveria der desabado sobre as ruas de Santiago. Ontem, no fim da tarde, por um breve momento, consegui ver a cordilheira por trás daquela gigantesca torre de um Shopping Center que os chilenos parecem ter construído para rivalizar com as montanhas. Foi uma trégua na névoa cor de terra que escondia a cidade nos dois dias anteriores, cobrindo os prédios com um véu ocre, do amanhecer ao crepúsculo. Na mesma hora me veio a sensação de que aquela névoa poderia ser comparada com o regime de Pinochet: obscuro, sangrento e sufocante.

Ontem, na Belavista, depois de sair da casa de Neruda, tentei sondar se havia aqui pelo Chile, mesmo que de modo insipiente, alguma nostalgia do tempo da ditadura (como parece acontecer com um punhado de malucos que começaram a sair às ruas do Brasil faz uns dois anos, com suas faixas pedindo “intervenção militar”).

Entramos então numa galeria perto de um restaurante onde comemos um Ceviche e rapidinho saquei um quiosque em que uma senhora, que parecia indígena, vendia posters, bonés, CDs, livros, dossiês do Le Monde Diplomatique e mais um bocado de camisas, tudo com referência a Allende, Trotsky, Guevara, Bakunin e Pedro Kropotikin. Nas bancas de rua notei expostas várias publicações anarquistas e comunistas. Muita literatura que fazia referência ao campo da esquerda e às linhas políticas revolucionárias.

Hoje, já perto do meio dia, depois de conversar em “portunhol” com um garçom que nos serviu uma taça de vinho, lá pelo centro da cidade, acabei por saber que os jovens de Santiago ainda sabem quem foi Victor Jarra, Inti-Illimani e Violeta Parra, mas que existem muitos grupos de rock que contestavam o regime de Pinochet no final dos anos 80 (como Los Tres) e que são tão populares quanto os medalhões da Nueva Cancíon Chilena.

Obviamente não seria possível sair de Santiago sem conhecer o local em que Allende foi morto enquanto segurava o fuzil AK-47 dado por Fidel Castro, no momento em que as forças armadas chilenas bombardeavam, com armamento financiado pelos EUA, a insipiente utopia de um socialismo democrático.

Atualmente uma parte do palácio La Moneda virou um centro cultural, com wi-fi grátis e salas de exposição, cinema, café e livraria.

Me chamou atenção, logo na entrada do cinema, um cartaz grande, em que um ator, interpretando Allende, na figura clássica de suas horas finais, usando um capacete de combate, aparecia sob o título: Allende em su laberinto.

Irônico que, 42 anos depois de ter sido massacrado naquele mesmo palácio, sua imagem mítica esteja exposta como o ícone heroico de uma esquerda que parece se fortalecer na tragédia.

O fato é que quando chegamos no parque O´higgs já batia o pingo do meio dia e o calor do fim de verão começava a cobrar seu preço. Ao sairmos da estação de metrô fomos recepcionados por um coro de vendedores ambulantes empurrando carrinhos com toda sorte de bugigangas, oferecendo água, pizzas e hambúrgueres para a multidão que se deslocava em direção aos portões de entrada do parque.

O lugar é uma área muito ampla, cheia de pequenos declives gramados onde as pessoas sentavam com suas famílias para comer e fumar. A gente notou logo que a vibe do festival era bem peculiar. Não se vendia bebidas alcoólicas nas barracas do parque O´Higgs e talvez por isso eu não tenha conseguido identificar ninguém que parecesse alcoolizado. O narcótico da hora era mesmo a canábis, consumida de modo aparentemente livre pelos frequentadores do festival sem que a polícia, que circulava por todo o lugar de modo bastante tranquilo, se importasse muito com isso.

Milena, a nossa sobrinha, estava desesperada para achar um palco onde um DJ (que eu nunca tinha ouvido falar) estaria tocando. Encontramos no meio do parque um grande ginásio em que se realizavam a maioria dos shows de música eletrônica. Dava pra perceber nitidamente que havia uma poderosa clivagem geracional rondando aquele festival. Os shows de rock dos meus velhos ídolos de adolescência não pareciam mexer um músculo sequer da meninada de vinte anos pra baixo. Só coroas quarentões e balzaqueanas tatuadas frequentavam os palcos onde os velhos astros daquele que um dia havia sido o estilo musical mais influente no hemisfério ocidental estavam se apresentando.

A juventude de Santiago parecia não dar a mínima para Billy Coorgan, Jack White ou Robert Plant. Só queriam mesmo pular ao som de Kill the noise, Calvin Harris ou Skrillex.

Como não iríamos deixar nossa sobrinha sozinha no meio daquela multidão, resolvemos, eu e Ana, chegar a um acordo com Milena. Sabendo que os shows aconteciam simultaneamente em vários palcos, faríamos uma dobradinha, um show de rock e um de música eletrônica, pra ninguém sair do festival frustrado.

Fiquei empolgado com a possibilidade de mostrar a ela as boas e velhas músicas do século passado e passei a falar, meio que nesse tom professoral que desde a infância esporadicamente me acomete, sobre as atrações roqueiras que poderíamos ver naquele festival.

Não adiantou nada.

Nem o show de um Jack White absolutamente soberbo na arte da guitarra elétrica, com um naipe de músicos bem acima da média, empolgou nossa sobrinha de dezessete anos.

A situação só piorou quando assistimos, no fim da tarde, junto a um punhado de gente que se aglomerava em um dos palcos menores, um show do Smashing Pumpkins em que um Billy Coorgan tocando com o mesmo entusiasmo de um funcionário do Detran chegando para trabalhar na segunda pela manhã, desfilava burocraticamente as canções que tocaram os corações dos adolescentes de minha geração, mas que pareciam não fazer o mínimo sentido para quem nasceu no século XXI.

O que empolga mesmo a geração da minha sobrinha é a presença escura de um DJ em meio a imensos telões de imagens digitais que se projetam em um caleidoscópio hipnótico de signos laçados por sobre a plateia junto a jatos de lazer. Tudo impulsionado por um gigantesco paredão de som.

Não tivemos alternativa a não ser pular junto com a multidão.  Eu e Ana seguimos, meio assombrados, aquele ritmo com sequências programadas de acelerações e desacelerações de pulsos acústicos que repetia um padrão de batidas circulares. Como em uma montanha russa de picos e vales, sempre que a pancada eletrônica estourava em uma sequência nova, a meninada pulava freneticamente em bloco, como se um esporro de adrenalina, após um momento de ansiedade sonora direcionada, explodisse apenas para diluir-se em mais uma nova desaceleração do pulso digital.

Essa oscilação de aceleração e desaceleração mantem o ritmo da festa, transformando muitas vezes a sequência rítmica em um fluxo contínuo que atinge a multidão como uma onda, sempre depois que o DJ grita “um, dois, três” e a batida reabre novamente junto a um jorro de lazers e luzes que dançam caleidoscopicamente, enquanto signos e ícones digitais desfilam nos telões.

O ritual se repete e pode ser tedioso em alguns momentos (ao menos para quem já ultrapassou essa catástrofe hormonal chamada adolescência ou para aqueles que não estejam irremediavelmente chapados).

O fraseado musical é curto e as letras das músicas são escritas em um inglês telegráfico e absolutamente simples. Na maioria das vezes são construções que remontam a encontros sexuais ou a inexorável sensação de que, em meio às sombras, alguém pode estar absolutamente conectado com você, mesmo  que você não saiba quem possa ser esse alguém.

Isso me soou bastante paradoxal porque a multidão, a despeito de estar totalmente espremida perto do palco, não parecia, em nenhum momento (ao menos no plano da física newtoniana) estabelecer conexões entre si, mas sim com o DJ… ou melhor… com o palco.

Sim, esse é um dado que ficou muito claro para mim. Ao contrário do velho rock´n´roll (cuja performance dos vocalistas e dos guitars heroes, era o elemento que fazia a plateia vibrar) na festa do dionísio eletrônico o DJ parece ser apenas uma sombra no meio de um palco que vibra e lança luz para todo lado, dando a nítida impressão de termos sido lançados para dentro de um vídeo game.

Não há melhor expressão política para os dias atuais do que essa.

Uma multidão controlada por uma sombra que emite comandos digitais em meio a uma gigantesca onda sonora hipnótica que parece dominar nosso corpo, nos pondo, em meio uma dança de dissolução, no lugar onde todos os limites e todas as fronteiras são derrubadas no ritmo do pulso digital.

Aquela, sem sombra de dúvidas, era um experiência bem distinta das bucólicas raves lá da praia de Pipa que aportaram pela taba de Poty na virada do milênio. Muito mais uma performance pós-apocalíptica de arte digital do que um simples show de música, há algo para além do som que embala aquela experiência.

No século XX, a velha dicotomia entre o apolíneo e o dionisíaco (exuberantemente caracterizada por Nietzsche no seu texto de 1872: A Origem da Tragédia no espírito da música) pendeu nitidamente para o lado do deus do vinho e da dissolução.

Dionísio reinou absoluto sobre os corpos do século em que nasci.  Sua força embriagante teceu, a partir da música que veio da África, tanto o ritmo acústico do swing e das Big Bands de Jazz; quanto a viagem disrruptiva do combo baixo-guitarra-bateria, que dominou, eletricamente, o mundo da cultura.

Saí do primeiro dia do festival em Santiago nas carreiras, para pegar o último metrô para o bairro da Providencia, em meio a uma multidão que se espremia pela porta da estação em frente ao Parque O´Highs. Não sabia se iria conseguir retornar daquela viagem, tal era a dificuldade de chegar ao vagão que nos levaria de volta para o aparthotel.

A única certeza que eu tinha era a de que, no Chile do século XXI, que um dia foi o país de Violeta Parra, Victor Jarra, Intti-Illimani e de Los Tres, o  caboclo Dionísio que baixou no terreiro do parque O´Highs, era digital e eletrônico.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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