Terapia e o Estado da Arte – ainda conseguimos sentir?

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Por Paula Pardillos

Ontem escutei a uma entrevista com Werner Herzog em que ele explicou brevemente porque é contra terapia (não para pessoas com transtornos, e sim de forma generalizada como têm sido vendida: como solução absoluta e necessária a todos), utilizando uma metáfora de sua autoria: uma casa que se ilumine a todos os cômodos, curvas, pedaços, que fique completamente iluminada, é inabitável. Assim como uma casa, um ser humano completamente iluminado é inabitável¹.

Eu acompanho e tento compreender, com um misto de desânimo e indignação, dois fenômenos nas redes sociais: poemas sem poesia e citação de psicólogos. Há muitos anos as postagens que viralizam, com frases de autoajuda/motivação em formato de poema (algumas frases organizadas como se fossem versos), parecem estar agora dividindo o palco com as postagens de relatos breves que começam “na sessão de hoje meu psicólogo me disse…”; em ambos os casos, a pessoa se identifica (portanto, sente conexão com aquele conteúdo) e o compartilha, naturalmente. São conteúdos que explicam comportamentos e sentimentos profundos de maneira racionalizada, prometendo, assim, uma explicação simples — que é, ao mesmo tempo, uma solução — para uma questão complexa e/ou existencial.

Parece-me que buscamos, na psicoterapia e na imitação de arte (que são esses “poemas”), as respostas para nossas dores existenciais. Porém, essas respostas não existem. Essas conexões profundas que buscamos, que nos fazem sentir que descobrimos algo verdadeiramente importante, elas podem existir, mas elas não são objetivas.

“[…]O velho poeta me disse que não se deve dar a menor importância aos fanáticos da objetividade: — Não se preocupe […] Os que fazem da objetividade uma religião, mentem. Eles não querem ser objetivos, mentira: querem ser objetos, para salvar-se da dor humana.”²

A dor humana — isto é, o sofrimento intrínseco à existência com consciência da própria mortalidade e as dores que são inevitáveis quando se vive e se sente — não é algo de que se possa escapar. Se por um lado vivemos na era da “pós-verdade”, ao mesmo tempo me parece que buscamos uma solução objetiva para nossas dificuldades mais profundas de maneira científica, como se houvesse uma verdade, uma explicação num evento do passado, como promete a psicoterapia, ou uma solução no não-repetir uma atitude no futuro, como prometem os versos de autoajuda.

Penso, também, sobre o trecho de entrevista que vi essa semana, com o ator Allan Souza Lima (Cangaço Novo), em que ele defende o método Fátima Toledo e argumenta que estamos vivendo um tempo em que as pessoas não querem mais sentimentos negativos e qualquer coisa é “assédio moral”; e concordo que parece existir uma hipersensibilização com qualquer experiência ruim, sensibilização essa evidenciada pela banalização de termos como trauma, ansiedade e abuso, que são aplicados a situações que a rigor não teriam esse status de patologização, quer dizer, deveriam ser entendidas como parte da experiência comum humana.

Não sou, de maneira alguma, contra o tratamento psicológico, esse que me salvou de anos sem diagnóstico e que me sustenta, no momento, com uma combinação de alopáticos antidepressivos.

Defendo, entretanto, que esse vislumbre da verdade pelo qual ansiamos, nós vamos encontrá-lo na arte. Seja por meio do “reconhecimento poético” de Cândido³, seja no vislumbre da realidade do mundo, como tantos artistas (Fernando Pessoa, Picasso, Goethe…) defendem, seja porque ela “salva o minuto”, como expressou Campilho⁴.

Me angustia profundamente o nosso afastamento da arte, essa que dá razão à existência humana desde que somos espécie, como o próprio Herzog defende ao encontrar uma caverna com arte rupestre que data ao humano pré-histórico⁵.

Há correlação entre o fenômeno da psicoterapia, da autoajuda, e essa busca pela objetividade na explicação da nossa subjetividade, com o afastamento da arte? Ou são sintomas de um mesmo tempo? Não sei. E me pergunto se esses fenômenos são apenas novos formatos de algo que sempre se expressou; contudo acredito que a desvalorização da arte na minha área, o cinema, é um fenômeno progressivo evidente. Já é conhecida a crítica ao completo domínio dos filmes de super-herói (aos quais Kleber Mendonça Filho dá a alforja hilária de “filmes de boneco” nas suas redes sociais) nas salas de cinema; o domínio da franquia da Marvel, na análise de diversos críticos e profissionais, modificou o que o público procura assistir; dessa forma, inclusive os filmes americanos que são indicados ao Oscar perderam interesse. Mas o afastamento do público do filme-que-é-mais-do-que-entretenimento-esquecível, é anterior e contínuo, e não me refiro somente aos filmes não-hollywoodianos ou não-americanos.

Estariam todos esses fenômenos relacionados com a curva fechada que vimos fazendo em direção à individualidade? Será que coletivamente passamos a acreditar que as respostas para o sofrimento existencial estão na construção do nosso inconsciente, que a psicologia explica, e não pode ser encontrada na experiência compartilhada humana?

Enquanto as epifanias da terapia nos fazem sentir conectados com nós mesmos, o sentimento poético nos faz sentir conectados com o outro, com a humanidade.

Cada vez mais o algoritmo nos isola. Mas, prometo, entre em contato com a literatura, pintura, cinema, a arte que lhe aprazer, que você vai reconhecer algo importante, muito mais importante do que em uma afirmação viralizada na internet.

~~~~~

¹ Werner Herzog, parafraseado e livremente traduzido, no podcast Conan O’Brien needs a friend.

² Eduardo Galeano, Celebração da Subjetividade em O Livro dos Abraços.

³ O conceito desenvolvido, em História da Literatura Brasileira, pelo teórico da literatura Antonio Cândido, explica que o “sentimento poético” é uma sensação que advém do reconhecer algo quando em contato com a arte.

⁴ em fala na FLIP de 2015 a poeta portuguesa Matilde Campilho causou alvoroço ao defender que a poesia (e a arte) não salva o mundo mas salva o minuto, e que ela luta para salvar “os segundinhos” dos leitores com sua escrita.

⁵ A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Cave of Forgotten Dreams), documentário de Werner Herzog lançado em 2010.

Paula Pardillos

Paula Pardillos

Escritora e crítica, membra da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. É também roteirista e diretora de cinema, com enfoque no gênero terror.

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