A razão do dia a dia para corações inquietos

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Hoje passo por aqui apenas para compartilhar, com vocês, uma das formas que a arte dá sentido para a existência humana.

Estava, ontem, estudando o livro de McKee¹ sobre diálogos em peças de ficção (literatura, cinema e teatro). No prólogo, o autor explica como ele acredita que os diálogos tocam o espectador, e por quê:

“Relações humanas são, em essência, conversas intermináveis que permeiam os relacionamentos bons e ruins da vida. Enquanto a conversa com a família e com os amigos pode se estender por décadas, a conversa consigo mesmo jamais acaba […] Ao longo de décadas, esse dilúvio de conversas pode esvaziar o sentido das palavras e, quando o significado se perde, nossos dias ficam mais rasos. Porém, o que o tempo dilui, a estória condensa.”

Achei muito bonito e certeiro. Em minha experiência, ler algumas páginas de um livro reorganiza a mente quando me percebo numa espiral de pensamentos e sentimentos trágicos e/ou confusos.

Fez-me lembrar, imediatamente, do trecho do filme Waking Life (2001), em que Richard Linklater está em uma mesa de restaurante conversando com o ator Caveh Zahedi sobre a importância de cada momento e o papel dos filmes nessa percepção:

“O filme enquadra o momento em um frame e nos permite ver que ele é sagrado. Cada frame, um momento: isso é sagrado, isso é sagrado, isso é sagrado.”² (parafraseado).

Em ambos os casos, a ideia é que o contar-uma-história, o representar-a-vida, em formato de ficção, permite ao espectador perceber o que há de transcendente no nosso dia a dia, isto é, o que é “sagrado” e não “raso”.

Os autores parecem discordar, contudo, da forma como isso acontece. Enquanto Zahedi parece crer que qualquer momento tornado filme se torna sagrado (“se filmássemos esse momento, ele seria sagrado”), McKee acredita que o diálogo precisa ser transformado (“os autores acentuam o significado, eliminando as banalidades, as minúcias, as tagarelices da vida cotidiana”).

Apesar de discordarem no como produzir isso, eles concordam no como o contato afeta o espectador, de modo que essa discordância parece importar pouco para quem consome. Entretanto, essa diferença me interessou.

Enquanto McKee acredita que a realidade precisa ser trabalhada para contribuir com a devolução de significado à vida do público, Zahedi acha que seria possível viver sempre com essa percepção, se assim quiséssemos. A descrição dele, para como isso se daria, é o que me fez refletir: “[…] mas quem poderia viver assim? Se eu olhasse para ti e pensasse: ‘isso é sagrado’, eu não falaria, eu apenas te examinaria; eu estaria aberto, eu sentiria, eu choraria. E isso não é educado. Te deixaria desconfortável.

Me fez pensar sobre como precisamos nos desconectar tanto da natureza da vida para funcionarmos em sociedade; não é o que ele está problematizando, até onde sei, mas essa suposição dele explicita o quanto essa performance do ‘normal’ é distante do sagrado, do profundo. Se você chegasse perto da contemplação plena da vida, “deixaria desconfortável” o outro. Precisamos seguir os acordos de comportamento, os desvios incomodam e isso é algo que já temos consciência em tantos aspectos sócio-políticos.

Então, além do potencial lírico, do reconhecimento poético, e tantas outras possibilidades de atender nosso anseio de sentir além da vida, como já faziam nossos ancestrais³, a arte ainda provém esse lugar em que podemos deixar a performance de lado, aceitar nossa subjetividade, deixar-nos vulneráveis, e apenas sentir; para, numa abordagem produtivista (infelizmente necessária), encarar de novo o mundo real.

 

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¹ Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen, livro de Robert McKee.

² Waking Life – Holy Moment (youtube.com)

³ Menção aos conceitos tratados no meu texto anterior: Terapia e o Estado da Arte – ainda conseguimos sentir?

Paula Pardillos

Paula Pardillos

Escritora e crítica, membra da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. É também roteirista e diretora de cinema, com enfoque no gênero terror.

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