Saudações, cervejeiros!
Quem acompanha a minha seção do blog com regularidade já deve ter notado que na introdução dos temas sempre é dado algum referencial teórico que serve de embasamento para o restante do texto. Os dois referenciais de hoje, sobre revisitar cervejas, serão filosóficos, ainda que não extremamente complexos.
O primeiro deles é até popular na cultura, e foi pensado pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso. Cito: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. Similarmente, não se bebe a mesma cerveja duas vezes…
O segundo referencial de hoje sobre a revisitação das cervejas tem a ver com a repetição. Meu orientador de mestrado e doutorado, o estimado professor doutor Glenn W. Erickson (não, não somos parentes apesar de o sobrenome parecer, nepotismo a gente deixa para a “familícia”), dizia que a repetição é a correção da educação. Ou seja, o conhecimento progride com a repetição e a reiteração de conteúdo.
Similarmente, nosso conhecimento cervejeiro é sempre engrandecido dessa mesma forma. Revisitando e repetindo cervejas, com o olhar clínico de um degustador que sabe perceber as nuances da repetição e da diferença como elementos norteadores do conhecimento é que se avança nesse campo.
Revisitando cervejas após algum tempo
O texto de hoje é válido não apenas para as cervejas artesanais, embora também se adeque, de alguma forma a elas. Diria, no entanto, que ele é mais direcionado para as cervejas de massa, ou para algumas cervejas tidas como especiais, mas que são mais fáceis de serem encontradas e acabam sendo mais conhecidas (Hoegaarden, cervejas de trigo, e outras nessa mesma esteira).
O foco de entendimento nesse contexto é que, geralmente, cervejas mais acessíveis, sejam de massa ou alguma artesanal mais acessível, é que elas param de despertar certo “desejo cervejeiro” no degustador em função do hype (caso não seja familiar com esse termo, clique aqui).
Dito de outra forma, tendemos a ter mais interesse no que é escasso do que naquilo que podemos acessar, beber ou degustar com maior facilidade. Aquilo que nos está (sempre) a mão costuma ser relegado a um patamar de menor significância, e, consequentemente, de menor interesse.
A gênese de ser do texto de hoje é justamente isso. Pelo menor consumo frequente de algumas cervejas (por quem já embarcou no caminho sem volta das cervejas artesanais), revisitar algo que já foi bebido há um tempo considerável acaba sendo frutífero para se rever alguns conceitos.
Degustando novas (antigas) cervejas
Um dos bons exemplos a serem dados de cervejas que podem ser revisitadas, por quem tem o costume de beber mais cervejas artesanais (como, no meu caso, já que aproximadamente 99% de todas as que tomo são dessa categoria), é beber, esporadicamente, uma Heineken.
Acredito que eu devo beber uma Heineken ou duas por ano. Um consumo baixíssimo, quando se tem em conta a acessibilidade, o preço e a quase que onipresença dessa cerveja. Relembrar uma Lager de massa não é uma proposta tão absurda, já que revisitá-la é uma experiência técnica interessante.
Podemos dizer que a Heineken é o patamar mínimo civilizatório cervejeiro. Ela exibe o padrão mínimo de qualidade para ser apreciada. Claro, não se trata de nenhum primor, não é algo estonteante beber uma Heineken e certamente não é uma experiência marcante na vida do cervejeiro.
Aposto que ninguém lembra a primeira vez que a bebeu na vida, tampouco terá tal experiência rememorada a revisitá-la. Contudo, o ato de revisitar uma Heineken nos leva a ter algumas percepções analíticas que, ou não tínhamos das outras vezes (principalmente na primeira), ou analisá-la com novas perspectivas (de quem já está acostumado com as artesanais).
De uma maneira ou de outra, provar (novamente) uma cerveja de massa sobre a qual já temos uma opinião formada por conhecê-la bem (ou julgarmos que a conhecemos bem) é um bom exercício de “entrar no rio novamente” diria Heráclito. Nem a cerveja é a mesma, nem você é o mesmo que já a provou um dia.
Semelhantemente, posso dizer que o mesmo pensamento é aplicável a algumas outras cervejas mais populares: Stella Artois, Spaten, as Paulaner (cervejas de trigo em geral) e até mesmo a Hoegaarden (a witbier).
A sazonalidade e a repetição das cervejas artesanais
Cervejas de massa possuem um atributo inerente que as deixam muito mais acessíveis. Elas possuem estabilidade da produção, de modo que sua oferta é sempre perene. Faça chuva ou faça sol, esteja no norte ou no sul do país (ou até mesmo no estrangeiro), será fácil encontrar onde se vende uma Heineken. Todavia, com as cervejas artesanais, por sua própria cultura cervejeira, ela tende a ter uma oferta intermitente.
Claro que as cervejarias se aproveitam da sazonalidade de algumas formas, tentam criar ares de “especialidade” para lançamentos restritos, tendem a não repetir receitas (e daí não ter o compromisso de entregar cervejas no mesmo padrão anteriormente alcançado) dentre algumas outras peculiaridades. No entanto, o foco de análise, no presente momento não é esse.
O importante é denotar que a sazonalidade das cervejas artesanais faz com que revisitá-las acabe sendo um ato de paciência ou um ato de sorte.
Para as cervejas de guarda, a repetição pode se dar pela paciência, já que será possível comprar (a depender das condições financeiras, obviamente) mais de uma, e beber a segunda tempos depois para repetir. Tal possibilidade, no entanto, não vale para todos os estilos cervejeiros, já que alguns não possuem uma vida-útil tão longa assim…
Revisitar uma cerveja pode ser um ato de sorte, operado pelo acaso ou pela persistência em procurar a mesma cerveja, quando se tratar de uma cerveja artesanal de guarda, ou um ato de sorte de bondade da cervejaria em repetir a receita.
A grande diferença na repetição que ocorre entre lotes diferentes de uma mesma cerveja especial é que, diferentemente das cervejas de massa, costuma-se encontrar muitas diferenças entre eles.
Ou seja, o rio de Heráclito, nesse caso, é muito mais revolto, e tende a se parecer ainda menos com aquele rio que já fora uma vez adentrado anteriormente. O rio cervejeiro artesanal é mais diferenciado que os demais, eu ousaria dizer…
Essa é uma peculiaridade que vai atingir todos os lotes de uma cerveja artesanal, e é algo que tende a ser ainda mais acentuado a depender do estilo de cerveja escolhido a ser revisitado. Quanto mais complexo o estilo, maiores as chances de diferenciação entre os lotes.
Quando revisitar? Ontem, hoje e sempre!
É necessário algum lapso temporal para que a revisitação cervejeira aconteça de forma adequa ao parâmetro de análise proposto. Caso se tenha um consumo contínuo da mesma cerveja (algo praticamente possível de forma regular apenas com as cervejas de massa) não será possível observar a diferenciação técnica possibilitada pelo tempo.
No caso das cervejas artesanais, a distância temporal entre uma primeira prova e as demais provas é algo possibilitado pela própria dinâmica da cultura cervejeira, haja vista que o critério da sazonalidade já impõe isso naturalmente.
Todavia, ter certa recorrência na revisão das cervejas também ajuda a manter atualizado o próprio portfólio analítico do degustador. Estabelecer algum critério de retorno às cervejas, seja anual ou semestral, por exemplo, facilita um controle sobre as próprias capacidades de analisar e degustar as cervejas propostas.
Revisitar é um ato de repetição (com o devido ao lapso temporal pré-estabelecido) que ajuda a educar a própria capacidade de julgamento. É uma forma de treinar a si mesmo na percepção e na análise das cervejas que um dia foram apreciadas, delas sendo apreciadas no momento presente e também lança as bases sensoriais para que elas venham a ser reanalisadas no futuro.
O encontro do ponto de equilíbrio em cada um desses momentos de degustação (entre o que se passou e o que se projeta analisar) é fundamental para que a revisitação cervejeira seja prazerosa e sirva às finalidades propostas incialmente.
Saideira
De maneira bastante sintética para resumir bem o texto de hoje, podemos dizer que revisitar uma cerveja consiste em refinar o seu entendimento sobre ela. É uma forma de rever aquilo que já foi degustado um dia sob uma nova ótica, a perspectiva atual que se tem sobre o seu próprio entendimento cervejeiro.
Pragmaticamente, esse exercício de reflexão cervejeira é mais facilmente posto em prática quando se trata de cervejas de massa. Em virtude de sua oferta contínua e também por causa da menor variação de um lote para outra, a revisitação desse tipo de cerveja é executada sem grandes percalços.
Contudo, ao se tratar de cervejas artesanais, a possibilidade da revisita não está descartada. Ela apenas depende de um conteúdo um pouco mais aleatório dos fatos, uma combinação de sorte com boa vontade das cervejarias em repetir o rótulo.
Esses são dois elementos do cotidiano que, por mais que não dependam unicamente da iniciativa do cervejeiro-degustador, não ficam fora do plano das coisas que podem acontecer. O rio do cervejeiro sempre flui, e ele jamais se banha duas vezes no mesmo tanque fermentador do líquido sagrado das massas.
Recomendação Musical
Existem muitas músicas e clipes musicais que fazem referências à recordações de modo geral. Todavia, como o texto de hoje teve muitas reminiscências à metáfora do rio de Heráclito, eu me lembrei da música Awake da banda de mathcore (ou djent, alguns diriam) holandesa Textures.
O clipe é fantástico, e tem como pano de fundo um rio e um mergulho nesse rio. Mais adiante, novamente um novo mergulho no rio, que certamente não é igual ao primeiro. O mergulho é a repetição da experiência.
Tal como as cervejas, cada vez que as revisitamos, as encontramos diferentes, pois, nem nós mesmos somos mais os mesmos da primeira vez, nem elas o são também.
Saúde!