O ressurgimento das cervejas Lager’s, o “novo clássico pós-moderno”

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Saudações, cervejeiros nostálgicos!

A cultura cervejeira tem cada dia mais crescido no mundo e no Brasil. Grande parte desse crescimento veio acompanhado de novos gostos. As pessoas que começaram a adentrar no mundo das artesanais passou a deixar de lado os estilos mais “tradicionais”.

Tal contextualização se deu de forma global. Não é algo muito particular da cultura cervejeira brasileira. À medida em que as pessoas foram se inteirando mais das cervejas artesanais ou especiais, passaram a provar IPA’s, Stout’s e Sour’s.

A partir desse movimento (natural, por assim dizer) os estilos mais clássicos (ou tradicionais) perderam espaço. A principal associação de tais estilos, por questões históricas óbvias, é com as cervejas do grupo (ou família) Lager.

Assim, com o crescimento do consumo e do interesse pelas Ale’s (já citadas) as cervejas Lager’s acabaram postas de lado.

Todavia, estamos experimentando, ainda que de forma tímida, o movimento inverso dentro do meio cervejeiro artesanal. Por isso podemos chamar de um “ressurgimento das Lager’s”, isto é, um retorno às origens cervejeiras.

Há de se clarificar que a parte final do título “novo clássico pós-moderno” é uma contradição intencional. No entanto, ele tem a ver com uma abordagem mais atualizada das Lager’s, e será mais bem explanada adiante.

Convido-os a abrir uma boa Lager e acompanhar a leitura!

O elo perdido das Lager’s: a massificação

O predomínio histórico das cervejas Lager’s é patente, principalmente no Brasil. Quando falamos em cerveja a primeira imagem que vem a nossa mente é justamente uma Lager: amarelo-palha, leve, refrescante.

A popularização das Lager’s é justamente o ponto que fez com que elas se descolassem da cultura cervejeira. Massificadas, elas se tornaram o padrão mais básico de popularidade. Algo que, consequentemente, fez com que a sua qualidade acabasse sendo colocada em último plano. Passou a ser algo pouco relevante, desde que vendesse bem.

A massificação das Lager’s, ainda que muitas vezes camufladas sob o errôneo nome de Pilsen, fez com que a cultura cervejeira se lance em outros territórios. Claro que essa não foi a única motivação para enjeitar as Lager’s, mas o avanço da cultura cervejeira rumo às Ale’s foi fundamental nessa dinâmica.

Por mais que tenhamos o costume de associar o sabor das Lager’s ao que é efetivamente cerveja, quando ousamos provar (pela primeira vez, ao menos) uma artesanal queremos outros sabores. Os perfis frutados e torrados, essencialmente, o esterificado trazido pelas Ale’s é quem faz o contraponto com as Lager’s de massa.

Por causa disso, primordialmente, as Lager’s acabaram sendo relegadas a um segundo plano de escolha dos cervejeiros artesanais (tanto os produtores quanto os bebedores), e ficaram esquecidas na cultura cervejeira mais recente.

O reposicionamento no mercado cervejeiro: as “Lager’s Finas”

O ressurgimento recente que está ocorrendo com as Lager’s é um fenômeno de reposicionamento na cultura cervejeira. Se já há o entendimento popular e consolidado que as Lager’s populares são de baixa qualidade e não atendem ao que o consumidor artesanal demanda, faz-se necessário reformular o que entendemos por Lager’s.

Nessa toada, o que conhecemos por Lager’s ganha um adjetivo fundamental. Agora elas passam a ser chamadas de Lager’s Finas, para diferenciá-las das suas congêneres massificadas.

Por vezes, utiliza-se também a nomenclatura Light Lager’s para se referir a esse nicho mercadológico. É até mais correto, tecnicamente chamar tais Lager’s reavivadas assim, já que não costuma-se incluir as Bock’s, que também são Lager’s, na retomada estilística agora proposta. E como as Bock’s não são assim tão leves, fica o contraponto com as demais Lager’s.

Por Lager’s Finas há de se depreender um vasto rol de estilos cervejeiros, que vão desde as American Lager’s feitas com mais esmero, até mesmo as Pilsen’s, no perfil das checas e das alemãs, com bastante robustez (e muito lúpulo Saaz).

Ou seja, inclui-se no resgate do estilo Lager muitas cervejas que acabaram sendo colocadas no lugar-comum das cervejas mal feitas de “supermercado”: Helles’, Pilsen’s, Dunkel’s, Schwarzbier’s e algumas outras pertencentes à mesma família das cervejas fermentadas a baixas temperaturas.

Reposicioná-las era necessário para que o mercado as visse como um produto diferenciado. Adicionalmente, de modo óbvio, o consumidor aceitasse pagar (bem) mais caro por cervejas desse estilo.

A dificuldade em se produzir boas Lager’s

Além da questão da massificação e do reposicionamento, há um terceiro fator fundamental para entender porque o distanciamento das Lager’s massificadas não foi feito antes. E também porque boas Lager’s artesanais não foram feitas em maior escala mesmo antes de se criar o rebranding.

O porquê de tudo isso é mais simples do que se imagina: é muito difícil e complicado fazer uma boa Lager. Pode parecer simples e fácil, mas, definitivamente, não é!

Existem basicamente duas grandes dificuldades em jogo. A primeira delas é com relação ao uso das leveduras do tipo Lager. A segunda é uma questão metodológica de produção (que, na verdade, está diretamente ligada à primeira dificuldade mencionada).

O uso das leveduras Lager é algo difícil de manejar. Primeiramente, porque em termos comerciais são usadas algumas leveduras do tipo Ale que conseguem emular o comportamento de uma Lager (isto é, baixas temperaturas de fermentação).

Todavia, nesses casos, o resultado não é exatamente um primor. O que acaba acontecendo é que as Lager’s Finas, ou top de linha, acabam tendo um resultado bem medíocre: cervejas esterificadas, pouco “lagerizadas” e nada “crispy”. Ou seja, todas as boas características de uma Lager artesanal diferenciada das de massa.

Então, no final das contas, temos Fake Lagers, mas isso é um assunto complexo e para um outro texto…

O segundo ponto, a questão metodológica, ao menos no Brasil, tem bastante a ver com a pouca familiaridade da maioria dos produtores cervejeiros, bem mais acostumados com as leveduras Ale.

A dificuldade em acertar os processos, afinar a decocção (que não é uma etapa mandatória, mas que acrescenta muita complexidade), por exemplo, ou ter a paciência necessária exigida pelo maior tempo de maturação, acabam por dificultar algo que não lhes é muito fácil de se lidar.

Assim, todos os elementos de dificuldade mencionados acabam contribuindo para uma menor produtividade e um menor interesse do mercado em tentar reafirmar a predileção pelo reavivamento das Lager’s. Ainda que isso, no contexto mais geral, seja amplamente louvável.

Mais Lager’s, mais diversidade de estilos e mais opções

Um dos pontos mais fantásticos da cultura cervejeira é sua diversidade. Uma miríade de aromas e sabores novos se descortinam a cada gole. É muito prazeroso explorar estilos e descobrir novas nuances, novos sabores, descortinar novos horizontes.

E nesse ponto o incremento recente nas Lager’s vem a somar. Dito de outra maneira, nem só de alta lupulagem (das IPA’s) ou de doses cavalares de açúcar (nas Pastries Stout’s) vive o homem. Por causa disso, as Lager’s são capazes de trazer aromas ainda pouco explorados.

Claro que as Lager’s mais comerciais e massificadas conseguem trazer um lampejo daquilo que essa família cervejeira é capaz de oferecer. Contudo, é no domínio das cervejas artesanais, com seu incremento qualitativo, que se é possível explorar ainda mais as perspectivas maltada, floral, tostada ou crispy que algumas Lager’s trazem.

Além disso, a sutileza na variação dos estilos de Lager’s Finas é que faz com que esse universo seja tão rico. Aprender a diferenciar uma Pilsen Checa de uma Pilsen Alemã, ou quem sabe denotar algumas notas sensoriais diferentes entre uma Dortmund Export e uma Helles se torna um belo exercício gustativo.

As Lager’s oferecem um mundo inteiramente “novo” (para quem já está um pouco cansado da tríade: IPA, Stout e Sour), com estilos diversos e muito mais opções no mundo das cervejas artesanais. E claro, isso ainda pode ser ainda incrementado com pitadas de modernidade.

O “Novo Clássico Pós-Moderno”: New Zealand Pilsner

Como já mencionado anteriormente, na introdução, parte do título do texto é uma contradição (intencional).

Explico: é contraditório que algo seja novo e ao mesmo tempo seja um clássico. Algo que é novidade não está consolidado (ainda, ao menos) e algo que é clássico já detém certa austeridade e autoridade no assunto.

Explicado esse pequeno pormenor, aparentemente contraditório, eis o “novo clássico pós-moderno” do mundo das Lager’s: a New Zealand Pilsner (X5. Do guia do BJCP).

Conforme se depreende da nomenclatura, trata-se de uma Pilsen, feita ao estilo neozelandês. Mas, concretamente, o que isso significa? E por que ela seria um “clássico pós-moderno”?

Mais uma vez, esclareço. Trata-se de uma cerveja clara, seca, e com uma fermentação límpida (tal como uma boa Pilsen), crispy e que possui características tropicais, cítricas e frutadas (advindas da lupulagem neozelandesa). Ou seja, ela é pós-moderna porque agrega elementos fundamentais das Lager’s com a refrescância e perfil frutado dos lúpulos do novo mundo.

E por que ela seria já considerada “um novo clássico pós-moderno”?

Seu perfil limpo (de Lager), com uma base maltada quase neutra, combinada com os aromas e sabores frutados, cítricos, que lembra melão, kiwi, toranja e lima são o casamento perfeito do clássico (da Pilsen) com a modernidade das técnicas de lupulagem mais atuais. Ela é capaz de agregar a tradição das Pilsen’s com tudo que há de mais avançado em termos aplicação de lúpulo e suas técnicas e saturação. Juntando o melhor dos dois mundos.

A New Zealand Pilsner é a demonstração cabal que o ressurgimento das Lager’s Finas não é apenas um revival cliché. O reavivamento dos estilos fermentados à baixas temperaturas vem acompanhado de renovação e inovação. Com todo esse tempero atualizado, nasce um “novo clássico (pós-moderno)”.

Saideira

O ressurgimento das Lager’s é uma lufada de ar fresco no mundo das cervejas artesanais. Ajuda a superar um pouco a mesmice dos estilos mais populares ao mesmo tempo em que promove um resgate de estilos outrora massificados.

Assim, é possível retomar estilos de Lager’s outrora marginalizados por serem muito comerciais e de baixa qualidade, ao mesmo tempo em que se é possível fazer o resgate cultural de ótimos estilos.

Aliado a tudo isso, ainda é possível trazer ao cenário uma pitada de inovação. Aquilo que denominei de “novo clássico pós-moderno”: a New Zealand Pilsner! Agregando o melhor do dois mundos, tradição e inovação. Um estilo com perfil altamente lupulado sem perder o espírito clássico das Lager’s, em especial, das Pilsnser’s.

Recomendação Musical

Difícil definir exatamente o que é pós-moderno.

Pós-moderno para mim em termos de leitura é se debruçar sobre as obras de Rancière e Žižek. Em termos cervejeiros é beber uma ótima New Zealand Pilsner.

Todavia, em termos musicais é bem mais complexo, pois temos o post-punk (anos 80), o post-hardcore (anos 90), o Post-Rock e o Post-Metal (instrumentais e caraterizados pela ausência de vocais, anos 90 e 2000), e claro, o Post-Black Metal (ou, terceira onda do Black Metal). Isso sem falar no Post-Britpop, no Post-Grunge, no Neue Deutsche Härte, ou no Nu-Metal

Buscando sintetizar tudo que é post-alguma coisa, ou seja, pós-moderno, musicalmente falando, a recomendação musical é a música: Suicide by a Star, da banda de Post-Rock irlandesa God is an Astronaut.

Com suas guitarras de timbres atmosféricos e muitas camadas de sonoridade, fica difícil imagina algo mais pós-moderno que isso, musicalmente falando. Ademais, sua sonoridade totalmente instrumental, sem vocais, é coroada com progressões harmoniosas e uma percussão muito técnica.

Assim, a banda combina melodias épicas de Post-Rock com a precisão de elementos de Space Rock. Um verdadeiro “clássico pós-moderno” da música.

Fica a dica!

Muita saúde a todos!


CRÉDITO DA FOTO: Amiera06/Pixabay

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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