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Primeiro foram as máquinas de escrever. Nada a lamentar, eram duras, pacotes de ferro, instrumentos que pareciam funcionar no tranco. Logicamente eram um avanço e tanto em relação ao lápis e papel. Depois quem começou a sumir foram os jornais de papel. Ainda resistem, mas como se fosse um exército em retirada, realizando aos poucos um recuo que se não vai dar na extinção pura e simples irá representar um estreitamento inegável. Sem os jornais, também começaram a fechar – ou a virar reles cigarreiras – as bancas de jornais e revistas. O que começou como um processo de substituição tecnológica tornou-se um caso de irreversibilidade com a chegada da pandemia de Covid-19, que deu cabo do que restava, acelerando ou tornando só mais efetivo esse sumiço ou transformação, o tempo dirá.

Na verdade, o que se quer lamentar aqui é outro fim, que tem a ver com os descritos acima. também foi determinado fortemente pela emergência sanitária e causa um incômodo silencioso, uma falta de barulho que o público em geral nem ouvia mas contribuía e muito para que esse mesmo público fosse bem informado sobre os rumos que o país, o estado ou a cidade tomavam. Meu assunto aqui é o sumiço das redações jornalísticas. O trabalho remoto – que funciona, reduz gastos com energia, agiliza processos e não deve ser visto como uma novidade de ocasião – mesmo com todas as vantagens teve a consequência de esvaziar muitas redações de rádios, tevês, revistas e sobretudo jornais. Essas últimas eram as melhores na minha opinião quando se tratava de levantar assuntos, assuntar polêmicas, mediar ideias, comparar processos, analisar tendências e tudo o mais que vai muito além da simples construção de notícias.

O público em geral não sabe, mas as redações, funcionando na plenitude em períodos democráticos – e às vezes com uma fúria corajosa mesmo debaixo de ditaduras, vide o Brasil dos anos 60 e 70 – eram uma explosão de cultura e cidadania. Uma sala quase sempre ampla, às vezes gigante, onde jornalistas de várias procedências, pontos de vista, históricos pessoais, interesses declarados ou não trabalhavam juntos, obrigatoriamente forçando o convívio de ideias e percepções diversas sobre o mesmo país em que praticavam seu papel vital para a circulação de informações, análises, registros. Todo jornalista tem as suas redações de notáveis lembranças, sobretudo numa profissão onde mudar de empresa é como mudar de roupa – natural, cotidiano, salutar para não acumular o mau cheiro das convicções imutáveis – e até estimulante na medida em que fazia o habitante de cada uma delas mudar de endereço encontrando assim novas conversas, outras abordagens, a diversidade em forma de um bate-papo casual ou de uma pauta que lhe renovava o cardápio dos assuntos de interesse.

Minha primeira redação, como muitas pelas quais passei, nem existe mais. O semanário Dois Pontos contava com um grupo pequeno de jornalistas iniciantes que tentava produzir ao fim de cada período de sete dias algo que funcionava como uma revista de temas variados puxados pelos embates da política partidária. E lá estávamos eu, o futuro professor de Jornalismo na UnB Gustavo de Castro, Hevérton Freitas, Jano Sérvio, entre outros sob as broncas veteranas de Roberto Guedes.

A Tribuna do Norte tinha ondas de renascimento que a renovavam inteiramente, como a fase comandada pelo saudoso Alfredo Lobo, que eu iria reencontrar na superpovoada redação do Correio Braziliense anos mais tarde. O Correio comandado por Ricardo Noblat era um celeiro de cabeças pensantes dispostas a seguir o programa do chefe que queria tudo menos um jornal acomodado. A redação fisicamente quase precária da antiga TV Cabugi era uma concentração permanente de pessoas dispostas a fazer diferença ao praticamente inventar a linguagem telejornalística no RN a partir – mas sem se prender – dos manuais da Rede Globo. O Diário de Natal, se fosse comparado a uma escalada residencial, estava mais para uma casa de vila, onde minha janela dava para a porta de Givaldo Batista, o repórter policial mais safo do que Waldomiro Pena jamais seria. Numa palavra, estimulante. O ambiente era agitado até na primeira redação que frequentei, a da Rádio Tropical, com Rosemilson Silva botando fogo em jovens praticamente arrancados dos bancos do setor V da UFRN. Pra minha felicidade, fui um dos sequestrados por ele, a quem agradeço até hoje.

Ninguém poderia naquelas alturas supor um mundo jornalístico regido por certa frieza e distanciamento da internet. A comunicação digital extrai do ar que o jornalismo respira os micro-organismos às vezes contaminados mas profundamente vitais – nos davam anticorpos para ideias atrasadas – que enchiam os recipientes simbólicos que eram as salas de redação. Mal comparando, as redações que existiram de fato até a década de 90 eram como as redes sociais de hoje: barulhentas, inquietas, agitadas e até exibicionistas. Neste último critério lembro o caso da irmã da atriz Cláudia Ohana que certo dia invadiu a redação de um jornal carioca e lá desfilou nuinha em pelo. A propósito, na redação da Tribuna do Norte, em certo plantão matutino de sábado, uma funcionária ameaçou fazer o mesmo. Chegou perto. Mas a comparação com as redes sociais fica inválida por um quesito: havia mais inteligência que estupidez, a arrogância usava espelho para se deter, o convívio na base do possível impedia os excessos despudorados da atualidade. E éramos festivos, como o jornalismo de internet jamais será.

Tião Vicente

Tião Vicente

Jornalista e servidor público (às vezes essas duas atribuições se confundem). Nasceu por acaso em Caicó, cresceu em Parelhas, estudou em Recife e Natal, aprendeu jornalismo e juventude nesta última, cansou um pouco e mudou para Brasília, trabalhou em edição em jornal e TV até fazer um concurso público para entregar esse brilhante currículo à emissora de tevê da Câmara dos Deputados. Tem funcionado até hoje. Por fora, pratica essas infidelidades paraliterárias. Tem uma central de blogs, quase todos esquecidos (para referência, arrisque novosopaodotiao.blogspot.com).

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