POETA DA SEMANA: Leonam Cunha

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Leonam Cunha é areia-branquense, do olho do elefante erre-ene. Vive em Salamanca, é advogado, formado pela UFRN, e publicou três livros de poesia: Gênese (2012), Dissonante (2014), e Condutor de Tempestades (2016).

Leonam Cunha é nosso POETA DA SEMANA

—————

POEMA A MIL POR HORA

Levo comigo só o que foi bom e só o que foi ruim e tudo aquilo que é além de bom e ruim. Porque nosso atar de corpos possui tudo carrapicho vela flores cornetas cometas passos escuros dentro do iluminado vento oeste cartas e espermas sobre a mesa distribuídos entre as taças de cristal os pratos de porcelana e minha vontade de fazê-los em cacos. Tudo difere dentro de mim. Nesgas de solidão te despontam no meio do sexo e eu as espalho para sorvê-las com o hálito. Tua glande rosada é oráculo é objeto que nos toma de pronto é bomba de hidrogênio é como fumar haxixe em Lisboa é limão siciliano de que se serve o grosso sumo para dourar a ceia. Esse diastema também me destrambelha ao convite de conduzir minha saliva dura para as bordas do teu esmalte, para o cozimento de teus lábios, para a disritimia do teu miocárdio. Tuas décadas a frente são tempero, tu bem o sabes que são tempero para minha alma tão jovem e que sempre longe se despenteia, se revela, se mata, se deixa ser resto de comida entregue à rede sanitária. O pau esta flâmula esse interstício para as bobagens e o afundar-se esta senha para abrir o portão de casa para fazer adormecer o estremecimento do meu corpo-diálogo corpo-pedra-bruta corpo-mamulengo osso que se distorce ao sol. Quando penso na penugem
penso imediatamente na infância
na serralheria do meu avô
e me remeto sempre à posição inveterada
de vadia que mesmo expulsa cantarola sambas-enredo
Não consigo ver imagens do Pão de Açúcar sem um tremor a mais.
Sem uma saudade inconstante mas sempre acidificada.
Me entrego à primeira nuvem
que destrone tua paralisia
teu colo gordo
tua retidão
teu caráter
para cair sobre ti para de novo
propormos céus e infernos
num ritual de destumbamento
num ritual de arrebatamento
como se os astecas tivessem dado a certeza
de que o mundo se explodirá em luzes e fogo
no segundo seguinte.

—————

PARA UMA IMAGEM DE LORCA

A mulher chorosa come maçãs
como mastigasse pedaços de céu.
Os meninos deslocados de abismo
sabotam os sistemas sem o saber
e isso encanta

A fome de prédios não eleva os monturos
dos seres humanos
e eles seguem de nariz duro apontando
toda forma inusual de vida
como insegurança ou pobreza –
quando na verdade é o oposto

Toda manhã os ratos descobrem buracos,
enquanto os relógios derretem e
o lixo aparece dentro do olho aristocrático;
é dessa forma que o horizonte se amplia.

—————

AQUELA AQUARELA MUDOU

Não durmo mais sozinho.
Ao meu lado, em minha cama,
descansa uma onça no sempre.
Ela me revela os costados mais altos,
de onde se beija a cidade
sem que ela doa.
Sem que os lírios amarguem o tato,
sem que a lua enrijeça o fôlego.
Minha onça vez ou outra
fica a guardar-se dentro das páginas
das filosofias que bebi
sem conhecer das outras utilidades do coador de café

Minha onça aponta a lança
dentro do breu,
repovoa-me de silêncios.
É quando posso sentir o hálito
do medo baforando-me a lembrança.
Num sopro de alcatrão,
e a onça me seduz

Aprender a dormir com a onça
é saber-se pobre mortal manso
e que, contudo, a onça respeita
a distância que há entre eu e ela,
o espaço ao qual nos encolhemos

A onça tolera meu translado
– fumar a louça lavar cigarros enxugar poemas escrever a pele –
e só me visita depois do desaparecimento solar.
Faz-se, mesmo longínqua, perene,
para que eu a acolha costurada à lembrança turva

Minha onça atende pelo apelido de morte.

—————

CARTA PARA OSWALD DE ANDRADE

O homem
preso tem 3 décadas
na Avenida Brasil
come uma borracha acidente nuclear
(com Césio-137 sofreu Goiás)
matuta que quando
deitar-se na poltrona
sentirá o bigode cheirando à mostarda

A criança constrói
um castelo de peças plásticas
monárquica brinca e desinventa
então põe toda a arquitetura
do brinquedo ao chão para montar
de novo o mesmo castelo

A presidenta da república
imagina que vida triste ela
levaria caso fosse presidenta da república

O senhor do alto
de sua varanda branca
fuma um cachimbo
rega a morte já no décimo
andar do prédio
: qualquer passo e viver se faz pior
qualquer anoitecer faz
da morte amiga fácil

A dama de véu
de dentes arranhando o altar
faz dos beiços motivo de ligeireza
deus, mulher
não tem headphones

O adolescente sobe e desce
os quinze lances de escada
(parece viver em Tóquio)
todos os dias sobe e desce
subirá e descerá aqueles degraus
até comprarem mármore do último dia
e a moça da farmácia lembrar
de uma vez por todas
que ele é tuberculoso e não poeta

– Nós continuamos a saga, Oswald,
a saga de ficar de olhos abertos
e bruços sobre a civilização do tédio.

—————

CENA EM MUSÉE D’ORSAY

Vi a tristeza de Madame Cézanne
cerrada sob um olhar vago de
quase morte.
Vi os tons de Monet que especulam tanto sobre a luz dessa cidade
que ora apreendo ora me escapa.
La realité française não dorme
sobre os braços do homem que toca clarinete
nem no balanço do patinador reverenciado
pelos turistas bobocas.
Está na ponta de cigarro jogada
no Rio Sena, na merda espalhada
pelo chão dos mendigos.
Vi os pontinhos de Seurat,
a peripécia no olhar de Rimbaud e Verlaine,
por onde se encaram os esconderijos
dos quartos quase sem abajur.
Vi a noite de Van Gogh
e saquei uma fotografia a que chamei
“Portrait of a portrait”
com o chinesinho de 15 anos a capturar
o azul do quadro sem saber de onde vem o azul.
Da melancolia, sugere ele e dá de ombros.
Ele foi-se justo no momento que eu quis dizer:
– O azul vem da distância.


Foto: Brunno Martins
Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidos do mês