O fenômeno da “pastryficação” cervejeira

Pastryficação

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Saudações!

Há quem diga que eu costumo bater muito na mesma tecla. Os críticos são até repetitivos em se valer do argumento da repetitividade sobre o que eu escrevo, pois dizem que eu, volta e meia, retorno a temas que remetem ao hype, ou à modinha, ou algo que se assemelha a esse movimento mercadológico cervejeiro.

Eles estão errados? Não necessariamente.

De fato, há certa recorrência em abordar o que é tendência. Por mais que o trocadilho não tenha sido intencional, a minha intensão é, de maneira mais ou menos incisiva, delinear os contornos culturais da abrangência do universo das cervejas artesanais. Para conseguir algum êxito nisso, é necessário se observar o movimento cervejeiro e para onde seus ventos sopram.

O fenômeno a ser abordado no texto de hoje não foge muito da tônica do hype ou da modinha, como queiram. Afinal, onde há um cervejeiro querendo lucrar alto com cerveja artesanal, haverá alguém fazendo alguma sorte de cerveja jogada no amplo bojo das “pastries”.

Por causa desse movimento açucaradamente posto, vamos discorrer um pouco sobre o fenômeno da “pastryficação”, isto é, a tendência atual de se fazer estilos que tendam a emular sobremesas. Ou seja, de forma mais ampla, cervejas doces e que lembrem, de alguma forma, alguma sobremesa em seu estado líquido.

Assim, vamos debater como essa tendência consegue furar a bolha dos estilos em que ela costuma ser mais dominante e, por fim, perguntar-se se realmente faz sentido que estilos mais clássicos sejam alvo da pastryficação também.

Avante, formiguinhas!

Pastryficação: O que é?

Certamente que não adianta procurar no dicionário por essa palavra. Por pastryficação temos um neologismo criado por este que vos escreve. Não se trata de nenhum devaneio e de nenhum velhaco, o termo se prova na prática diuturna cervejeira.

Tornar um estilo “pastry” ou seja, similar a uma sobremesa (já que seria essa a tradução direta do termo em inglês) nada mais é do que transmutar o estilo original em algo essencialmente mais doce. Se há uma regra básica em toda cerveja (ou estilo de cerveja) pastry é que ele doce.

Não estamos necessariamente falando que toda pastry é uma bomba de açúcar, embora esse possa até vir a ser um tópico para um texto vindouro, da mesma forma como nem todas as sobremesas assim o são. Contudo, é correto asseverar que ao se comparar o estilo base com o estilo “pastryficado” vamos notar um aumento considerável no teor de açúcar e também na sua percepção, principalmente no sabor.

Engraçado comparar que as sobremesas mais populares no Brasil são comumente mais doces que as suas similares de outros países. Tanto o é que os brasileiros costumam achar sobremesas estrangeiras sem graça. Provavelmente a razão para isso é que se costuma utilizar leite condensado na base da maioria das nossas sobremesas, o que faz com que elas sejam, consequentemente, mais doces do que aquelas que não se usa tal ingrediente.

Por conta desse fator, também é possível se observar que (mesmo não se utilizando leite condensado nas receitas) as pastries nacionais costumam também ser mais doces que as de cervejarias de fora. Acaba sendo um padrão reproduzido para agradar o paladar nacional cervejeiro.

Estilos cervejeiros “tradicionalmente” pastries: Stout’s e Sour’s

Quem é um degustador mais experiente no universo das cervejas artesanais tende a identificar o fenômeno das cervejas pastries a apenas dois estilos: as Stout’s e as Sour’s. Com a devida particularidade que as Stout’s tendem a ser tidas como Pastry Imperial Stout, ou seja, mais robustas e pesadas. Ao passo que as Pastries Sour’s não tendem a serem chamadas de “Imperial”, ainda que mais adocicadas e próximas de uma sobremesa, costumam ser mais leves.

A associação das pastries com os dois estilos mencionados é natural e até mesmo automática. Já há alguma “tradição” em se executar tais estilos na modalidade “pastry” sem que haja qualquer sorte de estranhamento ou surpresa.

A explicação mais plausível para a associação imediata se atém ao fato de que uma Stout já tem em sua receita notas que remetem ao chocolate e ao café, dois ingredientes base de várias sobremesas. Secundariamente, quanto às Sour’s a sua associação ao universo pastry tende a ser feito pelas sobremesas que levam frutas em suas composições, de modo que as pastries sour’s se focam nesse filão em específico.

Pastryficando estilos pouco usuais

A ideia do texto de hoje surgiu de uma experiência bastante peculiar, ao ter degustado no final de semana passada algo que pode ser denominado de “Pastry Scotch Ale / Wee Heavy”. O que isso significa em termos práticos: tornaram Pastry uma cerveja de um estilo muito distante daquilo que costuma ser pastryficado, ou seja, de uma Stout ou de uma Sour.

Em linhas gerais, posso dizer que o resultado não me agradou. A experiência negativa talvez tenha sido ainda mais acentuada em virtude de eu ter pareado a bendita Pastry com a sua cerveja base, ou seja, a Scotch Ale sem adjuntos. Para incrementar (e piorar ainda mais o conjunto), a cerveja de base era envelhecida em barris ex-Bourbon (e eu já havia a degustado antes), e a cerveja pastryficada conseguiu aniquilar o mencionado envelhecimento.

Mais do que a singela experiência de uma cerveja que não topou as expectativas, temos que fazer uma pergunta além do óbvio. É possível combinar o perfil de sobremesa das pastries com estilos diversos das Stout’s e das Sour’s. Se é possível que o resultado seja minimamente satisfatório, eu não sou capaz de apostar contra, contudo, eu acredito que os estilos bases deixam de existir quando a pastryficação é operada.

Não tem como chamar de Scotch Ale uma cerveja com adição de Maple, canela e baunilha. Da mesma forma que dever ser impossível chamar de Schwarzbier uma cerveja desse estilo com adição de cacau amazônico, coco e leite condensado.

Em estilos tradicionalmente marcantes pela singularidade dos seus maltes e dos seus lúpulos, as experiências criativas advindas da pastryficação acabam soando como supérfluas e até mesmo como presunçosas.

Eu acredito que o intuito inicial de fazer uma pastry era de tornar mais acentuado algo que já estava presente ou seria certamente presumido. Porém, quando essa tentativa (artificial) recai em um estilo sem muito espaço de manobra, principalmente no incremento do dulçor, a pastryficação passa a ser inócua, apelativa, quiçá danosa.

Como toda experiência criativa, o risco do erro é grande. Nesses estilos que não se pede tanto dulçor e/ou já se encontram bem estabelecidos em bases estilísticas sólidas, a pastryficação não tende a agregar em nada, já que a ideia de uma sobremesa (líquida) passa longe daquilo que seu estilo sugere.

Às vezes, o menos é mais.

Saideira

Da mesma maneira que existem estilos e estilos cervejeiros, existem maneiras e maneiras de incrementá-los sem que sua alma seja sugada e aniquilada por adjuntos erroneamente inseridos no conjunto final. A pastryficação é uma arma cervejeira relativamente recente e com um sucesso comercial tremendo, nenhuma cervejaria pode se dar ao luxo de desprezá-la.

Todavia, há de se ter bastante parcimônia em se valer desse estratagema de produção ao lançá-lo, um tanto quanto inadvertidamente em outros estilos de cerveja que não sejam Stout ou Sour. O fenômeno da pastryficação cervejeira parece estar a se espraiar para outros estilos, e isso não parece ser algo tão bom. Soa como uma tentativa desesperada de conquistar mais território às custas de estilos solidificados.

A pastryficação já prevalente para os dois estilos citados e neles ela se encaixa bastante bem. Ela conjuga um dulçor mais elevado com carga de café/chocolate ou frutas de uma forma a satisfazer todos aqueles que anseiam por uma sobremesa líquida, e isso é bom. O que não é tão bom é tentar trasladar essas percepções para conjuntos bem estatuídos com bases maltadas e lupuladas que não clamam por adjuntos…

O bom é cada coisa em seu lugar, eu diria.

Recomendação Musical

Se estamos falando de cervejas adocicadas, não podemos de falar nos sonhos mais doces que podemos ter. Foi justamente com essa ideia que o duo britânico Eurythmics, explodiu com sua canção: Sweet Dreams (Are Made of This)!

A qual faz todo sentido no contexto pastry dado ao longo do texto!

Saúde

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CRÉDITO DA FOTO: Leticia Akemi/Gazeta do Povo

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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