O trem da morte a dezesseis por hora

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De Incidente em Antares ao Bem Amado, de Quincas Berro Dágua a Brás Cubas, a morte ronda. Gozando da vida, atirada como um espírito baiano inconformado. Ou com a frieza de uma metáfora gauchesca. Hisurta como num filme de Igmar Bergman, ou recoberta por camadas de pop-significados numa cena dirigida e montada por Jean-Luc Godard.

Neste primeiro quarto de século XXI, quando todas as profecias espalhavam no céu astral as promessas de um mundo alternativo jamais visto, quem veio nos fazer companhia foi ela, com todas as variadas vestimentas que sabe tão bem usar.

A morte que está em cartaz aí fora e não cede a primazia da cena pra ninguém é assim: um féretro político que parece impossível deter, como um ex-ministro passeando sem máscara num shopping center de uma cidade em luto; uma missa de corpo presente pra uma economia anêmica ao ponto de sucumbir; uma última cena cultural em que a gente nem consegue conceber como sobrevive tanta gente que enchia salas e ginásios, teatros e espaços, galerias e exposições; uma arena esportiva ocupada por jogadores que passam o vírus de um para o outro como quem realiza um toque de bola genial.

A neomorte planetária que faz uma festinha a mais em lugares onde é recebida com honra por chefes de estado chegados a uma necrofilia vai assim sepultando tudo, abaixando cortinas, separando almas, extinguindo possibilidades, inviabilizando vidas.

E se o amigo leitor acha que estou sendo vago demais, tenho um caso bem concreto à guisa de ilustração. Um conto triste que nem precisa do agente coronavírus para soar mais dramático, ou de qualquer promoção tipo “CPF cancelado” para render uma derradeira promessa de voto a um candidato chancelado pela palavra “fim”.

Meu conto de morte ocorre numa cidade do Seridó, numa rua que é quase uma vila, semibeco sem saída, protegido da zoada do mundo por um conjunto de pedras que o casario bem que tentou, mas nunca conseguiu dinamitar. As casas foram sendo feitas de um jeito ou de outro, coladas, subindo a pedra como dava e o que restou foi essa quase vila que nos serve de cenário desvalido.

Lá mora minha personagem, uma senhora já de idade, mas não tão velha assim. A morte lhe levou o velho pai, esse sim digno do adjetivo. Um pai seridoense como tantos brasileiros que tinha uma rendinha muito significativa da morte e vida severina que, apesar de tudo segue caracterizando, este país chamado Brasil.

O pai se foi, não de Covid, embora pudesse ter sido. Mas se foi, cumprindo a sina imortalizada num quase verso de Ariano Suassuna, quem sabe apenas de velhice mesmo, talvez, para encontrar a Compadecida que espera defuntos como ele. Acontece que com este pai velho foi-se também a pequena aposentadoria que sustentava essa filha. Tinha sim, essa filha, uma fonte de renda mínima, umas vendas que fazia, não sei se de confeitos, paninhos, broas ou bolachas – essas mercadorias inacreditáveis com que muita gente pobre consegue o básico em moeda para se manter um dia de cada vez.

Com a pandemia, o negócio teve o mesmo destino do pai. Com duas morte assim, mudou a vida dessa filha já idosa, mas ainda disposta ao trabalho que também ficou escasso e difícil, ainda mais numa cidade pequena. A vida se subtraiu, não em termos de possibilidades, planos, disposição. Em termos de comida mesmo.

Quem conhece o interior do Brasil, especialmente do Nordeste, sabe medir o impacto que o mínimo serviço de distribuição de renda via recursos previdenciários tem numa comunidade. O quanto aquele dinheiro move outros dinheiros, gerando uma cadeia que, se devidamente acionada e mantida, resulta numa economia à parte.

Essa é mais uma morte que se sobrepõe e se completa com todas as outras que neste momento ocorrem simultaneamente neste Brasil que não consegue fazer nem uma pausa pra respirar – se respirar for possível.

As estatísticas mostram que de 2019 para cá aumentou de 11 para 16 por cento o percentual de pessoas que estavam na antes esperançosa classe C e agora retornaram para os escaninhos D e E da pirâmide de renda e condições de vida. Eram 24 milhões de pessoas na pobreza extrema, vivendo com menos de R$ 246 por mês. Agora, são 35 milhões. Os dados são dos estatísticos da Fundação Getúlio Vargas.

Na realidade de uma cidade no sertão potiguar, uma aposentadoria suprimida por um “CPF cancelado” – essa expressão que entre tantas outras igualmente infelizes diz muito sobre o tempo que vivemos – é o passaporte certo para transferir a contragosto quem viaja em um vagão estofado para outro com bancos de madeira crua.

Ao ver o pai morrer e sua renda principal ir embora quando ela própria não se encontra mais nem um pouco na infância da vida, nossa personagem desse conto triste como que comprou essa passagem para o trem da fome. Ela tem se mantido com a ajuda dos amigos que numa cidade pequena do interior sempre serão minimamente solidários.

Como a história não pára – e nunca deixa, ao contrário do que escapa a tanta gente, de interferir tão diretamente assim na vida de cada um longe dos palácios governamentais – ela há de ver outros dias, se não melhores, ao menos diferentes, com alguma estação à frente onde possa descer do trem da miséria inesperada.

Mas o antiespetáculo de um trem que anda para trás, como se fôssemos antes mesmo da pandemia um país que pudesse se dar ao luxo de tal feito, já está em dolorosa exibição em todos os auditórios devidamente fechados para não piorar o quadro ainda mais. Nossa promessa de futuro nunca soou tão amarga. Nosso niilismo juvenil dos anos 80 jamais seria capaz de prever tal desastre. Nossa pesada cortina de desigualdade, colonialismo e exclusão já parecia bastar para a sina de um lugar errático desde a primeira hora.

E no entanto, não. A fome primordial, aquela contra a qual lutou Betinho com o que parecia ser um projeto tão ingênuo quanto inexequível, está aí de volta. Esquálida, completa, incômoda com um barraco de lona num canteiro central de capital. Não há ficção capaz de conter tal país. Nem o engajamento de Jorge Amado, nem as ironias de Machado de Assis, nem as alegorias de Érico Veríssimo conseguem dizer ao certo, ao todo, quem somos e no que nos transformamos.

O trem da fome segue despejando passageiros em estações cada vez mais ermas e sem recursos a dezesseis por hora, velocidade altíssima quando se trata de medir a quilometragem de nossa tragédia social.


CRÉDITO DA FOTO: Tiago Henrique

Tião Vicente

Tião Vicente

Jornalista e servidor público (às vezes essas duas atribuições se confundem). Nasceu por acaso em Caicó, cresceu em Parelhas, estudou em Recife e Natal, aprendeu jornalismo e juventude nesta última, cansou um pouco e mudou para Brasília, trabalhou em edição em jornal e TV até fazer um concurso público para entregar esse brilhante currículo à emissora de tevê da Câmara dos Deputados. Tem funcionado até hoje. Por fora, pratica essas infidelidades paraliterárias. Tem uma central de blogs, quase todos esquecidos (para referência, arrisque novosopaodotiao.blogspot.com).

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