O Reinado de Carcosa: uma HQ de horror ambientada no TAM, em Natal

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Lançado em 2022 pela Editora Draco, O Reinado de Carcosa é um quadrinho de horror escrito pelo roteirista e dramaturgo Marcos Guerra e desenhado pelo designer gráfico e ilustrador Will Silva, baseado no livro O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers. Na história, Cássia decide aceitar o convite para assistir a estreia no Teatro Alberto Maranhão da peça homônima ao quadrinho escrita por sua ex-namorada, Camila. Ela embarca em uma narrativa onírica e vertiginosa nas entranhas do Teatro momentos antes do início da apresentação.

Nesse primeiro segmento da HQ, o leitor se encontra em um local realista, repleto de elementos que despertam curiosidade sobre como serão articulados. As referências são expostas de modo evidente através de uma foto de H. P. Lovecraft na segunda página e a menção ao Rei de Amarelo na sexta página. Em paralelo, vemos o Teatro Alberto Maranhão e menções a Câmara Cascudo e à Natal. Assim, o quadrinho diz ao leitor de onde está partindo e deixa claro que esses dois pólos temáticos distintos, o horror cósmico e a cidade, possuem o mesmo valor e serão trabalhados em conjunto.

Essa introdução, portanto, é eficaz ao apresentar, de modo direto e sucinto, os temas do quadrinho e sua ambientação. O acordo firmado entre leitor e HQ nessas primeiras páginas, sobre esses pontos, se mantém ao longo de toda a história. Em contrapartida, a exposição dos personagens e das relações que eles possuem carece da mesma eficácia. Os sentimentos da protagonista por sua ex, por exemplo, são dúbios e entram em contraste com suas ações. No começo, Cássia aparenta ter raiva e mágoa de Camila pelo término, mas, apesar disso, vai na estreia de sua peça. Talvez por desejar assistir o fracasso da ex? Não fica claro. E a suposição vai na direção oposta ao desejo de Cássia de procurar a ex em diferentes momentos do quadrinho. Talvez ela queira conversar com Camila sobre o término? Revolver questões deixadas em aberto? Também não fica claro. Contudo, quanto a isso, o final do quadrinho parece surgir como maneira de justificar essas lacunas, mas retomarei esse pensamento mais pra frente.

No segundo segmento da HQ, o leitor entra em contato com a natureza multinarrativa do quadrinho. O Reinado de Carcosa é uma história dentro de uma história que contém histórias diversas. As primeiras dessas histórias são expressas na fala do diretor do espetáculo antes do início da apresentação, mas são histórias de fundo, apenas compõem o cenário da narrativa principal, não fazem parte dela. As histórias que são parte da narrativa vêm na forma de três contos narrados por personagens míticos que surgem vindos de lugar nenhum e deformam o espaço ao seu redor da maneira que desejam. O primeiro desses contos, chamado “Cajueiro dos enforcados”, é o pior dos três. Sua narrativa simples e simbólica é prejudicada por um texto excessivo que invoca muitos elementos, até então não vistos no quadrinho, sem deixar claro sua serventia. Muitos desses elementos, inclusive, não são trabalhados depois. Eles se tornam parte de um discurso expositivo que embriaga o leitor e prejudica o ritmo da leitura.

Por outro lado, nesse primeiro conto o quadrinho apresenta boas transições. Sua diagramação cresce ao decorrer da história e, quando chega ao clímax, presenteia o leitor com uma das páginas mais bonitas da HQ. Aproveito esse pensamento para me estender sobre a arte que possui pontos favoráveis e negativos. Entre os favoráveis está a capacidade de criar personagens de destaque visualmente marcantes. O primeiro narrador dos contos, chamado de Professor, mais à frente, possui ares de anfitrião de uma casa mal assombrada. Suas feições são muito bem detalhadas, sua presença é incômoda, e o amarelo realça esse incômodo, assim como acontece com o diretor da peça. O amarelo, muitas vezes associado no quadrinho à urina e à morte, atribui a esses personagens um caráter sujo, doentio e profano; constituindo-se como excelente escolha, pensada no quadrinho e não apenas como referência ao Rei de Amarelo. Além disso, os cenários da HQ são ricos e realistas. Mesmo sendo uma narrativa fantástica, a arte mantém os dois pés da história em um mundo crível e reconhecível — o que é particularmente prazeroso para quem mora em Natal.

Entre os pontos negativos estão os personagens secundários. Não existe uma regra clara que os defina, existem personagens que são tão detalhados quanto os protagonistas e existem personagens que são tão simples que chegam a ser plastificados e caricaturescos. Um exemplo dessa diferença, que acontece no segundo conto do quadrinho, são os personagens Humberto e sua esposa. Por causa desse contraste, os coadjuvantes despertam uma atenção negativa por parte do leitor que absorve duas informações distintas ao mesmo tempo, muitas vezes na mesma página, fazendo com que os personagens de traços mais simples se destaquem como estranhos àquele ambiente e a seus pares.

No terceiro segmento da HQ, o leitor está imerso na lógica onírica da história, o sonho expõe a si mesmo aos poucos, justificando as quebras de ritmo e as mudanças abruptas nas ambientações. Nele, surge o personagem mais interessante do quadrinho, o Menino, o Garoto, o Rapazinho. Sua presença maligna o denuncia de imediato, mas é contornada pelo diálogo dúbio que o personagem possui com a protagonista. É nesse momento que o texto da HQ chega em seu ápice, construindo uma relação interessante entre os dois, dando algumas respostas à história, fazendo o leitor entender algo naquele labirinto metafórico de incompreensão. O segundo conto, narrado pelo Garoto, chamado “Três homens ilustres”, possui um desenvolvimento melhor do que o primeiro e suas ações fluem em um bom ritmo, mas sofre com o mal estabelecimento das personagens no primeiro núcleo, de Humberto e sua esposa, e com a caricatura e a exposição excessiva no segundo núcleo, dos três playboys e das estátuas.

No quarto segmento da HQ, o espetáculo, enfim, vai começar; uma nova história se interpõe a narrativa, a cortina se abre e a narração inicia. O terceiro conto, chamado “O cheiro da mulher envenena”, surge pro leitor. Esse é o melhor conto dos três. Diferentemente dos outros dois, esse não busca levar o leitor para um clímax onde o fantástico se interpõe no mundo real com efeitos horríveis. Nesse, o fantástico surge logo no início e opera seus males em uma escalada de violência ousada e extrema. Nos dois primeiros, assim que as coisas começaram a piorar, o leitor é levado de volta para a zona de conforto do quadrinho. Nesse terceiro, ele é forçado a permanecer naquele lugar de incômodo e desconforto pelo máximo de tempo possível, assistindo o sofrimento dos personagens em toda sua impotência e incompreensão. Boa parte desse mérito se deve a diagramação regular e constante que extrai o melhor da história enquanto constrói uma leitura de fácil empreendimento em contraste ao conteúdo narrado.

No segmento final da HQ, a narrativa se encaminha para seu desfecho. Logo após o fim do terceiro conto, a história começa a se resolver, as respostas são dadas e a zona de conforto do quadrinho é quebrada. Isso poderia significar um novo caminho para o leitor, até mesmo uma forma de sentir o horror sem a promessa de retorno, sem a promessa de afago, que seria intensificada pelo conto anterior. Em outras palavras, poderíamos ter saído de uma história horrenda, no ápice de sua violência, para algo ainda pior. O quadrinho tenta prometer isso, inclusive, mas não é o que acontece. Nesse final, a história possui elementos demais. Pela necessidade de encerrar e unir cada um desses elementos, a HQ se torna um conjunto de explicações em busca de um clímax.

Então vem a questão do sonho que merece uma atenção particular. O sonho e, mais especificamente, o pesadelo, está intrinsecamente associado às histórias de terror. Em Borges Oral & Sete Noites, o autor argentino Jorge Luís Borges reflete sobre as denominações do pesadelo e suas associações demoníacas. Ele invoca a palavra grega efialtes e a palavra latina incubus, ambas denominações do demônio que inspira o pesadelo. Em inglês, há the nightmare, que significa “a égua da noite” e reverbera no francês le cauchemar, mas Borges especula que sua raiz etimológica venha da mitologia saxônica, das palavras niht mare ou niht maere que significam “demônio da noite”. Em O Reinado de Carcosa, a figura do demônio que oprime os seres humanos com pesadelos se encontra no Rei de Amarelo, sua presença maligna repercute em toda a trama até o clímax. Ele é a promessa do horror contínuo onde as pessoas são impotentes perante o seu poder e dimensão. Essa promessa, contudo, se perde quando a narrativa renova sua zona de conforto na figura de um outro mundo, um mundo real e pacifico. Ali, o peso da figura do Rei de Amarelo se esvazia e aquela história se torna como todas as outras narradas antes: mais um conto momentâneo que acabará e tudo estará bem depois. Afinal, o terror de um pesadelo dura enquanto durar o pesadelo em si. Ao acordar, o medo se dissipa, a tensão se esvai e o mundo real se sobrepõe ao fantástico do sonho. O terror, como gênero, emula isso ao oferecer para o leitor ou o espectador um lugar seguro onde sentir medo, angústia, incômodo, etc., sem sofrer as consequências físicas dessas emoções. Em O Reinado de Carcosa, esse lugar seguro ganha uma segunda dimensão, existe o mundo real do leitor e o mundo real das personagens, ambos representam duas zonas de conforto sobrepostas. O paratexto no início do livro tenta anular pelo menos uma dessas zonas de conforto, mas seus efeitos são discutíveis e pretensiosos.

O sonho, por fim, ganha o propósito de justificador da narrativa. Seu ritmo difuso, seu conglomerado de vozes, suas mudanças abruptas de cena parecem ganhar aval na ideia do sonho. Não foi apenas com o fantástico que lidamos durante a história, foi também com uma influência surrealista. Dessa forma, O Reinado de Carcosa ganha dimensões de Blood — Uma História de Sangue, quadrinho de J. M. DeMatteis e Kent Williams. Em ambas HQs, existem as características expressas acima e as histórias dentro de histórias. Entretanto, Blood deixa claro as relações existentes entre os personagens e os sentimentos de cada um na trama, com muito menos explicações. Essas virtudes dizem respeito a construção de uma boa narrativa, com espaço para se desenvolver, tempo para cada ação e precisão nos diálogos. Com toda certeza, O Reinado de Carcosa não goza do mesmo espaço para seus personagens e seus eventos; talvez seus principais problemas venham do espaço reduzido para desenvolver todas suas pretensões. Portanto, o surrealismo justifica a narrativa até certo ponto ao mesmo tempo em que preserva as suas qualidades, mas mantém um outro lado que deve ser enfrentado pelo leitor.

Gabriel Cavalcanti

Gabriel Cavalcanti

Graduando de Letras-Francês, na UFRN, autor do zine Sonhos Marcianos para Terrestre Afogados, membro da Sociedade Secreta das Sarjetas.

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