Geovani de Souza Almeida, o Gigio Almeida ou, mais recentemente, conhecido como o Poeta dos Espaços, aproveitou uma vida nômade provocada pelas idas e vindas do pai marinheiro para aguçar sua perspectiva geográfica e arquitetônica das cidades, dos espaços urbanos e do processo de vivência.
Mas foi na Natal de dunas que lhe puxou a trabalhar toda a gama de possibilidades da arte urbana com foco na sustentabilidade. Uma atividade que lhe rendeu o título de Embaixador da ONU em Cidades Sustentáveis. Na entrevista a seguir, Gigio fala mais de sua trajetória, seja individual ou coletiva com os Natalquimistas e toda a poesia dos espaços que encontra e transforma:
ENTREVISTA – GIGIO ALMEIDA (POETA DOS ESPAÇOS)
O que o trouxe do Piauí para Natal? Qual impacto a geografia da capital potiguar lhe causou?
Meu pai é militar, primeiro sargento da Marinha, hoje na reserva. E decorrente da profissão ele precisou levar a família para onde era transferido. Viajamos muito; tivemos uma vida nômade. Do Piauí ao Rio de Janeiro. De lá ao Rio Grande do Sul. Depois Paraná e de volta ao Nordeste, primeiro para João Pessoa e em seguida, Natal. Por aqui eu ingresso no Instituto Federal de Educação Tecnológica, no curso de Turismo e Serviços. Parte daí o início de minha formação de consciência artística, criativa e organizacional. E com ela a geografia de Natal – essa terra de dunas, de solo “quartzoço”, areias de origem marinha e todo um interesse por esse desenho geográfico da cidade. Então, logo após o IFRN, ingresso em Geografia pela UFRN e a consequente descoberta de práticas incríveis dentro da Geografia enquanto ciência possível de ser agregada à arte. Também na Universidade me envolvo com a capoeira na academia Corpo Livre do mestre Robson, também influência enquanto africanidade, porque Natal provoca essa discussão da geografia e das psicogeografias, e me considero também um psicogeógrafo.
O que seria um psicogeógrafo?
A psicogeografia trabalha a perspectiva dos mapas não rígidos, mas que estão às sombras; os territórios mais marginalizados, trabalhando e decifrando esses espaços urbanos. E Natal tem total influência em meu trabalho, sobretudo os empreendimentos bioarquitetônicos construídos nos últimos tempos, com criatividade, com a cenografia como suporte… Natal aceita isso muito bem, pelo ar cosmopolita, por ser essa Nova Amsterdã que agrega povos e uma comunhão de tendências e criatividades. Natal é terra do sol que brilha aos afrofuturistas.
De que forma a arte urbana lhe provocou?
A arte urbana me influenciou porque, antes de tudo, a cidade me toca, me encanta, me assusta e me faz criar, me reinventar ao reinventar esses territórios criativos, seja pela geografia, pela percepção psicogeográfica de decifrar novos espaços, ou mesmo pela vida nômade de filho de militar. Também o período em que participei do Circo Tropa Trupe, dentro da Universidade, que me trouxe um suco poderoso de criatividade e entendimento de que territórios são efêmeros e a arte precisa seguir essa efemeridade sem recair na arte constituída, do establishment. Os espaços precisam ser mais fugazes até para ter mais sustentabilidade. Então, a arte urbana me influencia dessa forma: a cidade a ser desvendada, a cidade enquanto palco, enquanto espetáculo da realização criativa da nossa existência. Em espaços opacos e sem brilho, inserimos arte poética, novas táticas à cidade para provocar o despertar das pessoas, rico ou pobre, para uma nova educação ambiental, criativa e urbana. E a criatividade não apenas como ferramenta estética, mas possibilidade de realização existencial.
Suas inspirações partem de algo específico para criar suas artes?
Nossas criações estão relacionadas à arte enquanto estética e admiração, mas também enquanto ciência; uma arte físico-bio-geofilosófica. Ou seja: uma série de princípios e referências unidos no espaço urbano constituído ao longo da ancestralidade que a cidade possui. Dentro desse conceito vamos do lixo ao luxo, do bambu ao metal para construir uma instalação, uma cenografia para um evento, seja uma festa eletrônica, um design de interiores… Por trás de tudo isso há sempre a filosofia da hiper-inventividade, da influência dos situacionistas, do Maio de 68 – a última das vanguardas do modernismo, que preconizava criar possibilidades na cidade pelo andar à deriva pela urbe. Portanto é uma arte científica, com função de formar e revolucionar usando os materiais possíveis, porque trabalhamos com o disponível: impressão bi ou tridimensional, com a poesia, com o teatro, com o circo. Por isso nos destacamos como multiartistas, porque juntamos esse amálgama de situações para criarmos uma arte tática e criativa na transformação dos espaços urbanos.
Como se dá esse trabalho com material tridimensional?
Há um ano temos pesquisado bastante a impressão 3D, cujo nome técnico é “manufatura aditiva”. Fiz um curso em Illinois, Chicago (EUA). Hoje temos uma empresa com mais dois sócios chamada Médium, de pesquisa, inovação e impressão 3D com foco na sustentabilidade e na criatividade. Temos duas impressoras de alto nível trazidas da China. É uma atividade de impressão pioneira no Rio Grande do Norte e mais uma reinvenção da GGArtesespaciais.
Qual a maior necessidade do espaço urbano na contemporaneidade?
O espaço urbano, hoje, carece de afetividade, inteligência e sustentabilidade. Temos nove a cada dez municípios brasileiros com menos de 20 mil habitantes. Essas cidades precisam se preocupar com o Plano Diretor. É ele que move as engrenagens da cidade, junto com a Lei de Diretrizes Orçamentárias, o Plano Plurianual… É importante à população essa conscientização normativa dos planos e projetos que regem a cidade. Tanto o pobre quanto o rico precisam “reentender” a cidade pelo viés da reeducação ambiental, pelos seus direitos e deveres. Dessa forma surgem cidadãos mais atuantes, pensando em soluções antes do Estado, ou independente deste ou mesmo junto com este. E há outro aspecto: apesar de tantas cidades inspiradoras, o Brasil não possui nenhuma cidade inteligente. A maioria sequer tem saneamento básico. A cidade, antes de ser tecnológica, precisa ser humana e isonômica também.
Como professor universitário, você tenta passar esse conceito aos seus alunos de que forma?
O lecionar, a licenciatura é algo muito importante em minha trajetória e representa outra influência direta no meu fazer artístico. Educação é amor, é libertação, é autonomia e me trouxe tudo que tenho, a começar pela educação de base dada pela minha mãe. Nós que viemos de classes mais populares conseguimos pela arte um pouco mais de ascensão, de sensação de territorialidade. Nossa arte parte do conceito de ensinar, da maneira mais simples possível, tudo a todos. E, claro, levo isso aos meus alunos, sobretudo a questão da sustentabilidade criativa, a estarem despreocupados se não possuem recursos, mas que usem o lixo de casa para compor ideias, não só de formas, mas de representação, de elo criativo. É criar com o que é possível, ir à frente, manipular, decifrar, juntar teoria e prática. Quanto mais possibilidades, melhor. A arte é da existência. Somos artistas para criarmos um mundo mais aprimorado, mais satisfatório e mais amoroso.
Como se deu a formação e como funciona o coletivo Natalquimistas?
Surgiu de uma forma totalmente relacionada a esse contexto da arte urbana como integração e esse amálgama de saberes e conhecimentos. Pela GGArtesespaciais, minha empresa, tenho desenvolvido alguns trabalhos na cidade, e o Darlan (Félix) e o Arbus (Augusto Furtado) também. Encontrei ambos em um projeto de residência artística e grafite chamado Inarteurbana. Enquanto eu trabalhava com tecido suplex, esculturas especiais, malhas, Darlan me convidou para um mutirão de grafite com a ideia de grafitar esse material. Daí surgiu uma nova técnica e a gente se juntou. E nós três pensamos em formarmos um coletivo com a arte urbana como protagonista, e não só o grafite, não só a bioarquitetura, mas todas as manifestações artísticas urbanas existenciais e criativas. E em consequência das atividades desenvolvidas pelo Natalquimistas surgiu essa revista.
Há uma sede própria do coletivo?
Meu atelier é a sede do coletivo, das pesquisas, da construção de ideias dos oito componentes, desde a sustentabilidade do meio ambiente até a parte de bioarquitetura, cenografia, grafite, art decó, exposições…
A Camarão Street seria um braço, uma amplificação dessa vontade de mudar a fisionomia urbana da cidade?
Mais que um braço. São os tentáculos de um povo para amplificar nossa vontade de mudar a fisionomia urbana. E não só a forma, mas a função: novos paradigmas, novas metas, novas formas de pensar a cidade, mais entusiasmo e motivação aos jovens, revelando talentos, fomentando a economia criativa e empoderando os mais experientes também, com novas possibilidades.
Paralelo ao trabalho da Natalquimistas, a GGArtesespaciais tem espalhado criatividade pela cidade. Conte como se deu a evolução dessa atividade.
Temos a GGArtesespaciais e a GGGarden, essa última mais voltada ao paisagismo, à botânica e à jardinagem. Fazemos ambientes ou designers sustentavelmente mais criativos, por uma perspectiva de que somos o olho da rua. Essa é uma concepção da Jane Jacob, das grandes estudiosas dos fenômenos urbanos norte-americanos. Então, se não ocuparmos a rua, alguém vai ocupar. Ou não ocupa e deixa a rua árida, áspera, sem urbanidade, ou seja, sem espaços afetivos, aprazíveis. E não é só estética, são os processos de desenvolvimento dessa urbanidade a baixo custo, com materiais da região, ideias sustentáveis a partir do conceito da própria localidade. E nisso temos contribuído há muitos anos, usando o bambu, por exemplo, considerado pela Organização Mundial do Comércio como um dos materiais mais efetivos da natureza, com proposta de trabalhar novos processos criativos, a polivalência das nossas artes como revolução urbana.
De que forma você extrai o material e trabalha esses elementos para criar novas formas e conceitos de arte urbana?
Principalmente do que é reciclável. Desde quando comecei levei como princípio que, mesmo com recursos nunca iríamos nos desfazer do poder que o lixo tem. Então criamos o conceito do “reciclarte”, ou seja, usar o lixo a partir do que ele nos impõe. É trabalhar todo tipo de material: fios, linhas, cordas, papel, metal, bambu e criar uma gambiarra criativa, uma geografia quântica que trabalha os espaços de uma maneira fora do visível, mas que penetra nos átomos da espacialidade para entender melhor o que se pode fazer. Como transformar um esgoto em um ambiente agradável? Como transformar um parque de vaquejada em uma festa eletrônica? Ou um pequeno apartamento em um local confortável? E usamos esses elementos múltiplos que a natureza nos traz, muito a partir dos materiais da própria região, e nisso há toda uma etnobotânica envolvida, também de fortalecimento da economia local. Nosso trabalho é diversificado porque somos multiartistas e trabalhamos com todo tipo de material, todo tipo de segmento: arte temporal, arte musical, arte circense, escultura, modelagem…
Recentemente você foi nomeado embaixador da Organização das Nações Unidas para Consulta Sobre Cidades Sustentáveis em Natal. Como se deu esse reconhecimento ao seu trabalho e o que tem realizado desde então?
Essa história entra em minha vida de maneira mágica, em um momento complexo de epidemia. Primeiro eu fiz um curso, um ano e meio atrás, oferecido pela ONU chamado “Defensores Ambientais”, que seria ambientalistas que defenderiam diretos de outros ambientalistas. Só no Brasil entre 200 e 300 ambientalistas passaram por algum problema de opressão. Então, a partir desse curso já houve uma aproximação minha com o pessoal da ONU. Em seguida procurei outro desafio lançado pela Organização, para artistas urbanos que conseguissem desenvolver uma arte de combate à proliferação da Covid. Eu fiz e fui um dos três selecionados brasileiros nessa competição mundial. Depois, já pela Colab, uma instituição que trabalha com gestão colaborativa entre cidades, consegui convocar uma gama imensa de pessoas para responder um questionário. E assim conquistei essa condecoração de Embaixador da ONU em Cidades Sustentáveis, o que só mostrou que estamos no caminho certo nesse foco de fazer arte pelo caminho da sustentabilidade, da criatividade e no intuito de revolucionar o espaço urbano.