O jogo dos reis

O Jogador de Xadrez, Satyajit Ray

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O filme RRR (Revolta, Rebelião, Revolução) fez o mundo se apaixonar por Tollywood (filmes indianos em língua bengali) e descobrir que o cinema indiano é incrivelmente vasto, não se resumindo apenas a Bollywood.

O premiado cineasta indiano Satyajit Ray (falecido em 1992) foi o principal nome de Tollywood (conhecido pela “Trilogia de Apu”, com os filmes Pather Panchali, Aparajito e Apur Sansar), mas há uma pequena pérola entre seus filmes que acabou não tendo a atenção que merecia por aqui. Estou me referindo a O Jogador de Xadrez (Shatranj Ke Khilari/The Chess Players), produção do ano de 1977.

O Jogador de Xadrez narra a história dos amigos Mirza (Sanjeev Kumar) e Mir (Saeed Jaffrey), membros da nobreza da cidade de Lucknow, que descobrem o jogo de xadrez e passam horas procurando fazer o movimento perfeito, disputando várias partidas durante o dia. O prazer do jogo os coloca num completo estado de torpor, fazendo com que negligenciem suas respectivas esposas e demais atividades, alienando-os dos acontecimentos políticos vigentes (a Índia está prestes a ser invadida pela Companhia das Índias Orientais, controlada pela Inglaterra, visando anexar o estado de Awadh).

Quem detém o poder no estado de Awadh, cuja capital é Lucknow, é o Nawab Wajid Ali Shah (Amjad Khan), que entende patavinas de política, mas gosta da ostentação da vida na corte. Ele passa seus dias compondo versos e cantando, totalmente imerso nos prazeres da arte, porque confiante nos “tratados de amizade” estabelecidos com a Companhia das Índias Orientais.

Como a Companhia das Índias Orientais estava de olho em Awadh, considerado “o celeiro indiano” para a Inglaterra, o General James Outram (Richard Attenborough) acusa o voluptuoso e bonachão Wajid Ali Shah de má administração, artimanha essa utilizada para justificar a anexação de Awadh (conhecido pelos ingleses como Oudh) à Inglaterra, em 1856, pois já não bastava receber bens e impostos tanto do Nawab quanto dos nobres.

Satyajit Ray escreveu o roteiro de Shatranj Ke Khilari/The Chess Players a partir do conto homônimo, de autoria de Munshi Premchand. Em 1981, veio a adaptar outro conto de Premchand, Sadgati/Deliverance, transformando-o em uma película de duas partes, totalizando 113 minutos.

Em O Jogador de Xadrez, Satyajit Ray cria diversas situações cômicas para os nobres Mirza e Mir (sendo a mais engraçada àquela em que eles se veem impossibilitados de jogar porque a esposa de Mirza surrupiou as peças, então idealizam uma porção de planos para alimentar seu vício), para Wajid Ali Shah (encantado com seu trono, mais pela beleza do que por ser um símbolo de status) e para os ingleses (o culto Capitão Weston, interpretado por Tom Alter, assistente pessoal do General Outram, é um amante da cultura indiana, contrastando com o rude General, que só quer saber dos dividendos), mostrando que se pode fazer humor inteligente da mais alta estirpe.

O jogo de xadrez que envolve Mirza e Mir é, na verdade, uma metáfora para a obsessão do General Outram em invadir Awadh, o qual movimenta cuidadosamente seus peões (os nobres indianos) e a própria Rainha da Inglaterra, visando o xeque-mate no “rei” Wajid Ali Shah. Além disso, Mirza e Mir, que antes desconheciam a variante britânica do xadrez (que encurta o tempo do jogo), decidem deixar o seu modo costumeiro de jogar para pô-la em prática (outra excelente metáfora, agora sobre a perda das tradições entre os povos colonizados).

O Jogador de Xadrez foi o filme mais caro de Satyajit Ray, e um dos mais caros do cinema indiano feito em Bombaim, no século XX, tendo custado dois milhões de rúpias. Também foi o primeiro filme do diretor falado em urdu e hindi, e não em bengali, como era de costume.

O filme foi exibido no Brasil, com o título de Os Jogadores do Fracasso, na 24ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no ano 2000, e hoje faz parte do catálogo da plataforma de streaming MUBI.

Milena Azevedo

Milena Azevedo

Mestre em História (Unisinos/RS), já foi professora e empresária, e desde 2005 milita no campo das histórias em quadrinhos. Atualmente segue como diagramadora, letrista e roteirista de HQs e games, com trabalhos publicados em coletâneas locais, nacionais e em Portugal e Angola, finalistas do Troféu HQ Mix, do Troféu Angelo Agostini e da categoria Quadrinho Alternativo do Festival de Angoulême (França), entre eles: Visualizando Citações - vols. 1 e 2, Fronteira Livre, Máquina Zero - vol.2, Imaginários em Quadrinhos - vol. 4, Haole (webcomic), Amor em Quadrinhos, Penpengusa, Contos Urbanos e Café Espacial #19. Vencedora do Troféu Angelo Agostini de 2019 (Melhor Lançamento) e dos HQ Mix de 2019 e 2020 (Melhor Publicação Mix e Melhor Publicação Aventura/Terror/Fantasia) com Gibi de Menininha 1 e 2. Em 2022, roteirizou as HQs “Oscar e o Pan de 87” e “Viúva Veneno”, ambas publicadas pela editora Ultimato de Bacon. Também criou a webtira Aprendiz de Bruxa, em parceria com Ju Loyola, e atualmente a parceria segue com a desenhista Mari Santtos. Em 2018, fez sua estreia na literatura infantojuvenil com o livro Dara, Dora e as estrelas, escrito a quatro mãos com Glacia Marillac.

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