A construção de um universo cinematográfico requer alguns sacrifícios. O maior e mais transparente deles é fazer com que vários filmes consigam, juntos, chegar a uma unidade, mesmo que existam mudanças na cadeira da direção. Nesse sentido, os filmes passam a ser uma obra mais da produção do que da direção. Suprime-se o artista individual para dar voz à individualidade do conjunto. O maior exemplo disso – na história do cinema – é Kevin Feige frente ao Universo Cinematográfico Marvel: por mais que os diretores tenham alguma liberdade, ela precisa ser exercida dentro de um contexto planejado e programado.
A Universal planejava algo parecido. A criação de um universo que interligasse seus monstros, o Dark Universe, parecia certa antes do lançamento do primeiro filme, A Múmia (de Alex Kutzman, 2017). O filme morno e o desempenho nas bilheterias bem abaixo do esperado acabou sabotando a ideia. Mas, talvez, o maior erro tenha sido imaginar que o terror e o suspense, sempre marcados pela genialidade dos seus diretores – Mario Bava, George A. Romero, Alfred Hitchcock, Dario Argento, José Mojica Marins, John Carpenter e, mais recentemente, Kiyoshi Kurosawa, Robert Eggers e Ari Aster (e tantos outros) –, iriam conseguir contornar a individualidade artística e as necessidades individuais de cada história.
Cuidado! A crítica pode conter spoilers!
Não são as fases da lua
O Homem Invisível é, assim, um recomeço, a tentativa da Universal de atualizar seus monstros de forma isolada. Por essa perspectiva, a escolha de Leigh Whannell para a direção é um tanto quanto simbólica, visto que ele é o roteirista e protagonista de Jogos Mortais (2004), filme que deu uma boa revigorada no gênero.
Whannell, que demonstra conhecer tanto o material literário original de H.G. Wells quanto as necessidades atuais – porque o cinema, como arte, pode moldar a sociedade assim como a própria sociedade pode moldar o cinema –, não parte pelo caminho do remake; ele não refaz O Homem Invisível (de James Whale, 1933) ou O Homem sem Sombra (de Paul Verhoeven). Seu trabalho é uma releitura por outra visão: a visão de uma vítima do protagonista. Enquanto os anteriores focam nas questões morais e na ética do personagem-título, a decisão aqui é por seguir Cecilia (Elizabeth Moss) e, pela ótica dela, chegar ao terror.
A abertura é de um simbolismo que, de algum modo, remete ao cinema de Kurosawa (Kiyoshi, não Akira). As ondas que ritmadamente e com violência chocam-se em uma rocha, perto de uma praia, somente introduzem a casa no alto da colina, onde a violência não é regida pelas fases da lua (como as marés), mas é praticada de uma maneira que pode ser muito mais devastadora.
As agressões físicas, aliás, são tratadas pelo roteiro (também de Whannell), como algo menor, o que fica claro em uma conversa em que Cecilia comenta superficialmente (impossibilitada pelo trauma) sobre como Adrian (Oliver Jackson-Cohen) ter batido nela enquanto estiveram juntos ser somente uma pequena parte de tudo.
O peso carregado por Cecilia
Whannell aproveita (no melhor sentido) cada reflexão de Cecilia para ressaltar a grandeza de Moss. A atriz, que, em outra esfera – nas séries Mad Men e The Handmaid’s Tale –, já viveu algo parecido, é exposta a closes com uma constância fora do normal. Dificilmente, essa abordagem da direção seria tão eficiente com uma protagonista menos competente. O talento de Moss, inclusive, alimenta cada trecho de O Homem Invisível, também devido ao tratamento dado por Whannell, que, ao decidir seguir a visão da protagonista, em nenhum momento permite que o espectador duvide dela.
Dentro dessa lógica, o diretor coloca o público como uma terceira pessoa, como cúmplice dos tormentos passados por Cecilia. Em nenhum momento, ele (Whannell) investe em câmera subjetiva (na primeira pessoa de Cecilia). Embora seja possível, vez ou outra, olhar para onde ela está olhando, nunca a imagem assume os olhos da personagem de Moss. Há um cuidado milimétrico para que tudo o que é mostrado seja através de uma observação externa, que nunca tem espaço para duvidar dela (de Cecilia) ou para concordar com qualquer deficiência ou alteração mental sua.
É tudo muito consciente na construção do filme. Whannell, que escreveu e dirigiu o recente e pouco comentado Upgrade: Atualização (2018) – terror que merece ser visto como um dos melhores dos últimos anos –, demonstra ter habilidade suficiente para que a unidade de O Homem Invisível esteja totalmente em harmonia. A música de Benjamin Wallfisch (de It: Capítulo Dois e Hellboy), por exemplo, não é nada sutil ao criar a atmosfera de terror. Wallfisch, sob a direção de Whannell, ressalta a presença do invisível com uma força sonora construída à base da repetição de ostinatos – como se ao lembrar que tudo não passa de uma repetição do que acontece na vida real constantemente – e com graves pesados, cordas sintetizadas, que parecem recair sobre os ombros de Cecilia.
O extermínio do mal
Tudo isso para desenhar o poder destruidor do abuso sofrido por mulheres dentro de suas casas. Existem momentos que, de algum modo, fazem algumas facilidades do roteiro para que o filme continue serem notadas, o que, infelizmente, possibilita uma desconexão com o todo – o celular que é deixado com vibração no sótão e é completamente desprezado como prova; a caneta do hospital psiquiátrico que, suja de sangue, é igualmente menosprezada; o sangue no frasco de Diazepam; o policial que é deixado vivo no estacionamento; a gravidez… tudo para que, enfim, seja revelado que o personagem título está muito além de um traje óptico. Qualquer prova colhida com antecedência, no final das contas, reduziria essa produção da Blumhouse em, de repente, 30 minutos.
E é interessante, então, como até isso pode construir um paralelo fundamental para o tema: ainda que existam obviedades no caminho, livrar-se de uma relação abusiva pode não ser fácil. Um espectador como eu, na poltrona do cinema ou em casa, tranquilo (ou nem tanto), assiste a tudo, como dito, como uma terceira pessoa, mas é Cecilia que está sofrendo e só é possível entender a carga de sentimentos e sensações daquela mulher se você já passou por algo parecido. Claro, não com alguém com a capacidade de ficar literalmente invisível, mas com um indivíduo com poderes reais de invisibilizar o outro, devorando-o psicologicamente até restar somente o trauma de pisar na rua; alguém que, de um jeito invisível, vai adentrando em sua mente, devorando quem você foi, é, gostaria de ser… até sobrar somente o cansaço, a incapacidade de reação.
No fim, somente a vítima pode reagir e o agressor não irá se incriminar facilmente. O Homem Invisível deixa claro, com seu final que pode gerar alguma leitura controversa, que a dita incapacidade de reação não precisa e não pode ser uma regra e que o fundamental é a extinção de todo tipo de abusador. No filme, como terror coerente que é, a retaliação vem pintada de vermelho e com a arma do inimigo. É somente uma metáfora sobre a certeza de uma mulher que, mesmo cansada, decide pôr fim ao seu sofrimento: a morte do fantasma – o extermínio do mal – como início de uma nova vida.
Texto originalmente publicado no Canaltech
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