O Brasil que esqueceu o Quarup

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A pororoca brasileira já teve muitas traduções. Entre as mais perfeitas, figura um Terra em Transe, o filme; um Tropicália, a canção; um Abaporu, o quadro de Tarsila. Nos anos 60, quando foi lançado, Quarup, a antiepopeia criada por Antonio Callado, surgia com uma das mais poderosas buscas de elaborações a desvendar a alma múltipla, maravilhosa e miserável, deste país.

Quarup se apropria no próprio título do ritual ímpar dos índios da região do rio Xingu para desenbandeirar, a partir do coração territorial do Brasil, uma espécie de estandarte literário que abarcasse os embates travados na alma brasileira naquele momento.

É um livro que abraça o país a partir do delírio de um personagem indeciso entre o rompante e a concisão. Eis aqui o padre Nando, que vai da semiclausura de um mosteiro olindense à vastidão do Planalto Central para desaguar no sertão seco das utopias dignas do nome; ou seja, irrealizáveis mesmo, sobretudo no Brasil.

Nunca havia lido Quarup, nem nos anos 80 quando o filme de Ruy Castro o alçou à moda novamente. Ao encarar o livro agora – que hora, hein? – dei-me conta do quão ainda mais sofrida essa ficção às vezes tão documental em seu conteúdo e ao mesmo tempo tão atrevidamente fantasiosa em sua vastidão pode se tornar dependendo do momento em que é lida.

Se o livro fosse aberto em 1987, ele espelharia o nada-vezes-nada do governo Sarney. Em 1998, seria uma bela bíblia para se contrapor à vaga neoliberal de FHC & Cia. Nos anos Lula, um guia para discutir, mais uma vez inutilmente, as refregas inúteis das várias correntes da esquerda finalmente à frente do país. Na interrupção de Dilma, a recorrência das nossas sinas.

Parece que, como a essência do país não muda, Quarup, o livro, sempre o espelhará de alguma maneira. A questão é só de ajustar a perspectiva. E hoje? Melhor nem pensar, não é mesmo? É puro sofrimento em forma de palavras. Matéria para leitor do tipo masoquista.

Mas isso não diz tudo. Há sim prazer neste livro – e como. Desde a fruição generosa de acompanhar um grupo de personagem como parece não existir mais na vida brasileira. Mesmo Ramiro, o burocrata do antigo Serviço de Proteção ao Ìndio, enfronhado no jogo de poder de terceiro escalão do governo Getúlio Vargas e absolutamente avesso às matas do país – qual um bisavô de Ricardo Salles – nos é entregue mais articulado do que o esnobismo vazio do ministro atual. Temos Sônia, a mulher fatal brasileira por excelência que, disputada por um ministro e aquele burocrata, embrenha-se na mata com seu índio sexual de estimação e nunca mais é encontrada. Temos Fontoura, o sertanista amargo, exato no ceticismo, embebendo em cachaça a sina errática de um país condenado a sempre ser brecado quando mais parece predestinado ao avanço. Temos uma Francisca, a burguesa que não amava o capitão e sim o abnegado líder estudantil morto numa saraivada de balas no portão do engenho. E temos o prazer propriamente dito na inflexão que Nando, a exemplo do vaqueiro seu contemporâneo de Deus e o Diabo na Terra do Sol, faz embora em outra direção – trocar a batina não exatamente pelo punhal, mas pelo deleite do exercício da sedução. Não há mulher que resista a padre Nando – como não há país que comporte tanta promessa e ao mesmo tempo tanta dor.

São esses os brasileiros que habitam as 601 páginas de Quarup (na edição que li, Record-Altaya, dessas que você encontra em qualquer sebo). Você lê e fica imaginando o que essa gente acharia caso, por um milagre literário, se descobrisse transportada para o Brasil de 2021. Desde que, obviamente, antes de aqui desembarcar pra topar com figuras como Damares e Queirogas, fosse informada sobre o que se passou na antevéspera desse momento terminal. Hein?

Porque em Quarup, Callado desenha o país em outra antevéspera, a do golpe de 64, em terras pernambucanas, espalhando pelas páginas aquele halo sessentista de crença tão profunda que soa deslocada de refundar um país. Mas eles acreditavam, sim, o que só reforça a beleza desse deslocamento. Padre Nando lamenta, vejam só, que os guaranis das missões jesuítas no sul do país tenham sido dizimados ou mandados a correr com destino ao Paraguai, porque para o padreco hamletiano aquilo era uma promessa de nova civilização coletiva em que todos eram donos do mundo, não havia propriedade privada nem sofrimento – só o júbilo entre religioso e politicamente utópico que partia do seu elemento mais natural, o índio. Tudo bem que logo os tanques descem da serra mineira e Nando vai descobrir novas qualidades para se manter vivo longe dessa revolução sem armas e desse sacerdócio sem sexo.

Os anos passaram, a ditadura veio, foi-se – nos termos dela, claro – e ameaça voltar. Ao menos é o que se comenta nas esquinas. O espírito dela é como a angústia mal disfarçada de um padre que teme quebrar o celibato ao ver as índias nuas no Xingu: parece distante, mas todos os dias diz “presente” na chamada simbólica que acompanha cada alvorecer do país.

Será que seremos, como disse o baiano, condenados a repetir essa estúpida retórica por mais zil anos? Por força de fatos assim, Quarup permanece. Ontem mesmo topei na livraria com uma nova edição, capa bonita, estampas indígenas de incendiar a imaginação de ativistas em Paris ou Bruxelas – como uma espécie de compensação. Um oráculo a que poucos dão atenção. E se derem, podem sofrer um bocadinho mais. Desnecessário, não é? Ah, se fosse apenas literatura. Mas é a vida brasileira erguida em painel de palavras há décadas – e sem mudar o fundamental.

Numa edição recente da revista Piauí, João Moreira Salles gasta páginas e páginas para mostrar o quanto, na ditadura oficial mais recente, foram tentados vários projetos para a Amazônia – todos equivocados, mas ao menos havia uma ambição coordenada a realizar, é o que ele diz. O que o impressiona, na comparação com os dias atuais, é a medida do atraso já que agora, nem equivocados, projetos há.

Ler Quarup hoje, com todo o seu entrecho de medidas repressivas pós-64, com os agricultores pernambucanos das Ligas Camponesas dispersos sem rumo político pelos sertões, é como mergulhar de cabeça naquela comparação sobre o que fazer ou não fazer com a floresta. É abrir a janela dos olhos para a amplidão do novo atraso. Dói.

Nos sábados dos protestos de outro dia mesmo, militares mandavam mensagens pelo zap na porta do palácio do governo de Pernambuco antes de eliminar da face da cidade, com tiros de borracha, qualquer sinal de manifestação. Exatamente como está descrito num trecho de Quarup antes de Nando e seus companheiros das Ligas caírem em desgraça. Só não havia o zap. Mas a tecnologia humana – ou desumana – era a mesma.

Leia Quarup, hoje, agora. Nem que seja por protesto.


Ilustração: Moara Brasil

Tião Vicente

Tião Vicente

Jornalista e servidor público (às vezes essas duas atribuições se confundem). Nasceu por acaso em Caicó, cresceu em Parelhas, estudou em Recife e Natal, aprendeu jornalismo e juventude nesta última, cansou um pouco e mudou para Brasília, trabalhou em edição em jornal e TV até fazer um concurso público para entregar esse brilhante currículo à emissora de tevê da Câmara dos Deputados. Tem funcionado até hoje. Por fora, pratica essas infidelidades paraliterárias. Tem uma central de blogs, quase todos esquecidos (para referência, arrisque novosopaodotiao.blogspot.com).

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