Do barreiro da Lagoa do Feijão das paneleiras; dos embrulhos das barras de sabão, quando começou a fazer arte, a ouro da Sociedade Acadêmica de Artes, Ciências e Letras de Paris: Guaraci Gabriel.
A arte de Guaraci Gabriel é como a ypajussara, a palmeira que dá nome ao bairro Pajuçara em que mora: alta, vistosa. De longe pode ser observada. O resultado de seu trabalho é misterioso como a copa da pajuçara, instigante, místico, mágico: requer contemplação demorada e análises mais acuradas para a tentativa de discerni-la, decifrá-la.
Ele gosta de grandiosidades. Tem suas excentricidades. Busca recordes. Ele é Guiness.
Tudo começou para ele na Lagoa do Feijão, município de São Pedro do Potengi, Rio Grande do Norte, onde nasceu. Seu pai, Júlio Gabriel Campos, tinha ali um pedaço de fazenda herdada, com vacaria, plantações e criações de subsistência. Era casado com dona Iraci de Souza Campos e tinham nove filhos. Um deles, nascido a 16 de julho de 1961, recebeu o nome Guaraci Gabriel Campos.
Na Lagoa do Feijão havia um barreiro. Dona Iraci, nas horas em que não estava dando conta da casa e cuidando dos meninos, moldava taças em argila.
– Era mamãe acocorada, moldando suas taças, e papai lendo cordel em voz alta; os meninos, em volta, pegando no sono, até a candeeira se apagar. Ele gostava do Pavão Misterioso.
Guaraci se interessou pela modelagem da mãe. Tinha mais afinidade com ela. Gostava do seu lado brincalhão, “vivia rindo, fazendo piada, brincando com tudo. Muito novo, eu fazia esculturas de corpos humanos, sem braços, sem pernas, sem cabeça. Eu me frustrava: ainda não sabia modelar.”
Não sabia, mas continuou tentando. Todos os dias, “eu tomava meu leite ferrado com pedra quente no curral e depois ia para a beira da lagoa ver as paneleiras moldando suas panelas de barro e bois, jumentos, carros-de-bois, vaqueiros. Eu adorava ver as coleções de peças que elas faziam.”
Uma vida feliz
Guaraci e seus irmãos eram felizes, mas seu Júlio não gostava da vida dali. Vivera muitos dissabores quando da partilha da herança e dizia que um dia ia vender tudo e se largar no mundo, vivendo do jeito que quisesse, gastando o dinheiro.
– Dinheiro, pra deixar pra quem? Pra mulher, eu não deixo, que é pra ela não gastar com outro homem. Para os meninos, também não deixo, que é pra eles não brigar por herança.
Em Lagoa do Feijão, Guaraci recebeu suas primeiras instruções escolares. A professora da comunidade ia a sua casa e dava as aulas de primeiros números, primeiras letras.
O menino gostava de traquinagens. Ficava escondido “no mato” e quando as mulheres chegavam e se curvavam para tirar água do cacimbão, passava e levantava “aquelas saias compridas daquele tempo. Eu gostava de ver o pano em movimento”. Castigo, e; barro a fazer bonecos, para preencher o tempo, a ociosidade, “esquecer a raiva”.
Barras de sabão: a primeira arte
Um dia, seu Júlio vendeu a fazenda e comprou o caminhão sonhado. Ia ganhar o mundo fazendo frete e se divertindo. Ele instala a família em Massaranduba, Ceará Mirim, monta uma bodega que deixa aos cuidados da mulher e filhos, e “dana-se mundo a fora em seu caminhão. Viagem que todo caminhoneiro fazia em uma semana, papai fazia em um mês, curtindo a vida, gastando o dinheiro obtido da venda da fazenda com raparigas e boemia. Mas voltava para casa.”
Na bodega, eram vendidas lascas de barras de sabão. Seu Júlio comprava quilos de revistas usadas na feira do Alecrim e trazia para o ritual coletivo dos meninos a rasgar páginas e embalar barras de sabão, produto muito procurado na bodega.
“As barras que eu embrulhava eram as mais vendidas. Eu gostava de ler o que trazia a página; de ver as gravuras impressas; não fazia os embrulhos de qualquer jeito, como meus irmãos: escolhia as páginas que continham as gravuras que achava mais interessantes e dava destaque a elas, deixando-as à mostra, na face exposta do produto. Eu era o mais lento. O que menos sabão enrolava, mas as barras que eu embrulhava eram as que vendiam primeiro. Sempre buscava a que melhor vestisse o pedaço de sabão. Arte mesmo, acho que iniciei a fazer aí.”
Quando nas horas atrás do balcão, continuou na modelagem do barro, confeccionava bois e bonecos já completos. “Eu botava no balcão e o povo comprava”.
Guaraci dividia seu tempo entre a bodega e a Escola Isolada de Massaranduba, onde estudou até o 5º Ano. O ginasial fez na Escola Agrícola de Ceará Mirim, interno.
– Já meio cansado das farras mundo afora, papai resolveu comprar uma casa em Igapó, para que os meninos pudessem estudar na capital, como insistia minha mãe.
Thomé Filgueira
Concluiu o curso de Edificações, da ETFRN, a Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, mas sua paixão era o desenho. Matriculou-se no curso de Desenho, da mesma escola, “mas não era o que eu queria. Era o desenho de régua e compasso, desenho técnico; eu queria o desenho artístico. Fiquei frustrado, mas conclui o curso.”
Na Escola Técnica Federal, ele despertou para a existência de um ateliê, dirigido pelo professor Thomé Filgueira.
“Eu chegava colado à parede e botava a cabeça na porta. Gostava de ver os quadros, mas tinha vergonha de entrar. Passava todos os dias, e já entrava, circulava entre as peças, conversava, até que Thomé percebeu e me perguntou se eu queria pintar. Eu disse que queria; ele me deu uma tela, tintas e pincéis e disse: pinte. Thomé tinha um estilo muito próprio, dele, não impunha aos seus alunos qualquer fórmula mágica de ensinamento da arte. Ele instruía e apostava na criatividade de seus alunos, deixava-os à vontade para pintar o que quisessem, como quisessem.”
– No fim de ano, ele promovia uma exposição coletiva, com os trabalhos de todos os alunos. Na época do ateliê, eu só trabalhava com tela e tinta. Pintava quadros expressionistas. Vendia todos. Quando vendi o meu primeiro quadro, me lembrei da negra Joana Sabina, minha professora lá da comunidade da Lagoa do Feijão. Ela passava de casa em casa, ensinando aos meninos. Corria as quatorze casas do lugarejo. Um dia, ela disse para minha mãe: Iraci, bote esse menino numa escola de arte… Aquilo me encheu de sonhos grandes. Eu queria ser grande. Ser o maior. Ser um artista. Passei dois anos no ateliê de Thomé. Lá, conheci Marcelus Bob, João Natal, muitos artistas que estavam despontando para a vida artística da cidade. Foi um tempo muito proveitoso.”
Fora da ETFRN, agora Guaraci Gabriel está no mundo. Edificações? Desenho Técnico? Começa a fazer esculturas de médio porte em diversos materiais: bronze; ferro; chapas metálicas. E a inserir sucata ao seu trabalho, que cresce cada vez mais em dimensões. Sua arte já não se satisfazia com os limites de uma galeria de arte; queria as ruas; lugares que muitas pessoas transitassem e pudessem vê-la de longe. Parte a frequentar sucatarias e a sonhar cada vez mais alto.