Natal do Grande Ponto e da mítica Avenida Deodoro

Avenida Deodoro

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Houve um tempo em que a cidade de Natal, ainda lírica e provinciana, tinha o seu centro de convivência, a sua ágora, lugar onde todos se encontravam.

Corriam os anos de 1960. Nas calçadas da Rua João Pessoa, trecho compreendido entre a Princesa Isabel e a Av. Rio Branco, as rodas de conversa se formavam pela manhã, de tardezinha, e à noite.

As pessoas – políticos, funcionários públicos, profissionais liberais, estudantes, etc. – batiam papo, comentavam notícias do dia, falavam da vida alheia, entre um cafezinho e outro tomados no Café São Luiz, a alguns passos. E sempre arriscavam um olho no mulherio que ia passando, vindo das compras. Neste espaço de muitas tradições – o Grande Ponto famoso – as mulheres não paravam. Por que?

Verdadeira universidade popular, o Grande Ponto era tudo isso e algo mais. Hoje, decadente, sem sombra do que foi, dá pena.

Lembro, com saudades, o bulício daquele pequeno mundo. Boatos, planos (políticos ou não) discussões, intrigas, amizades, comentários sobre futebol, tudo vivia no clima de comunicação fácil. Quanta coisa importante, quantos empreendimentos, quantos poemas teriam nascido ali.

Mercearia

A história do Grande Ponto começa com o bar Mercearia que ali havia, com esse nome, há muitas décadas. Ficava, exatamente, na esquina da Av Rio Branco com a Rua João Pessoa, onde se encontra o Edifício “Amaro Mesquita”.

Para a cidadezinha de então, o bar servia de ponto de encontro, continuava a tradição dos cantões. Com o passar do tempo, o número de frequentadores foi crescendo, sobrando da sala, já pequena para a calçada.

A AVENIDA SUBMERSA

Uma das principais vias públicas de Natal, a Avenida Deodoro da Fonseca, mais conhecida como Avenida Deodoro, atravessa o bairro da Cidade Alta de ponta a ponta, começando em uma ladeira – a do Baldo – e terminando em outra – a da antiga Rádio Poti, ou vice-versa.

Durante o ano de 1955, ainda adolescente, morei na casa de nº 814, situada quase no cruzamento com a Rua Apodi, ao lado do Colégio Marista. Era a casa do meu avô materno João Vicente da Costa.

Três anos depois voltei a morar lá e lá permaneci, como hóspede do meu avô por mais dois ou três anos. De modo que a Avenida Deodoro foi um cenário marcante da minha juventude, que me deixou saudades. Era o meu caminho, da casa do meu avô ao Cine Rio Grande, quando vim do interior, e logo fiquei tocado pela magia do cinema; depois tornou a ser o meu caminho em procura do Grande Ponto.

Nesse percurso diário tornei-me íntimo da avenida. Meus passos por lá ficaram nas calçadas, até que aquilo tudo foi destruído, muitos anos depois, em nome do progresso.

Hoje, quando passo entre as ruínas que sobraram, sinto algo me machucar dentro do peito… Resta-me o consolo de reconstruir, na memória, proustianamente, aquelas casas que tanto me viram passar.

Elite natalense

Ao lado da residência do meu avô morava Seu Messias Soares, pai do jovem Ernani Rosado, futuro médico, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras. Mais acima, na esquina com a Rua Apodi situava-se a casa do deputado Aderson Dutra, de Patu; em sequência, sempre na direção do centro ficavam o pequeno bangalô do comerciante Carlos Silva, a casa dos Matosos e a vivenda de Rui Pereira, senhor de engenho, do Ceará-Mirim (tempos depois, demolida, construir-se, no local, uma bela casa, em estilo moderno, residência do casal Denise Pereira – Arnaldo Gaspar, casa esta também demolida).

Duas quase mansões, geminadas, vinham a seguir, morada dos irmãos Militão e Raimundo Chaves, comerciantes originários de Pau dos Ferros, donos do Armazém Natal, uma das maiores lojas de secos e molhados existentes em Natal, naquela época.

No outro lado da avenida, onde hoje se encontra a sede da Procuradoria Regional da República, uma casa rodeada de terraços, com um jardim acolhedor à frente, era a residência do cônego Luiz Wanderley, professor, orador sacro e latinista emérito, pároco da Igreja do Rosário, onde era moda realizar-se os casamentos da elite natalense.

Prosseguindo na reconstituição nostálgica da Avenida, encontrava-se, já quase na esquina da Rua General Osório, a casa do médico Olavo Montenegro, em estilo moderno, tendo ao lado, no mesmo estilo, a do Sr. Waldemar de Sá, gente do Ceará-Mirim.

Quase no final do meu caminho, na esquina da Rua João Pessoa, erguia-se a ampla vivenda do Sr. Milton Varela, onde, alguns anos depois, funcionou o Centro Cearense.

O castelo da Deodoro

Ponto culminante desse trajeto, no lado oposto da João Pessoa, bem pertinho do Cine Rio Grande, alteava-se, misterioso, o “castelo” do Dr. Moisés Soares, verdadeiro monumento arquitetônico, depois demolido para se construir no local, um monstrengo de concreto e vidro. Esse “castelo” nada tinha de castelo, mas era assim que o povo o chamava, talvez por causa de uma espécie de minarete que encimava sua linda varanda. Já então estava abandonado; ervas daninhas alastravam-se pelo jardim, e suas paredes externas mostravam a pátina dos anos. Com o seu ar de decadência, cercava-o uma aura romântica encantadora.

Dr. Moisés Soares, advogado, homem de posses, construiu esse palacete para sua residência quando casasse com a sua noiva, a poetisa Palmyra Wanderley, mas não conseguiu realizar seu intento, pois a morte o levou bem cedo.

Assim reza a lenda, contribuindo para acentuar o caráter romântico daquela edificação, criminosamente destruída.

E é com a lembrança de sua bela fachada que encerro a caminhada pela avenida dos meus bons tempos.


FOTO:

Esquerda superior: Praça Tamandaré.
Esquerda inferior: Vista aérea da Deodoro.
Direita superior: Vista plana da Avenida Deodoro.
Direita inferior: Praça Pio X, onde hoje funciona a Catedral.

Manoel Onofre Jr.

Manoel Onofre Jr.

Desembargador aposentado, pesquisador e escritor. Autor de “Chão dos Simples”, “Ficcionistas Potiguares”, “Contistas Potiguares” e outros livros. Ocupa a cadeira nº 5 da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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