Eustachio, o vândalo que amava Elvis, os Beatles e os Rolling Stones

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A Guerra Fria ensejava novo conflito mundial ameaçado pelo poderio devastador da bomba nuclear nos anos 50. Era época de aproveitar o presente sem prever o amanhã. E após o twist, Elvis e a guitarra de Chuck Berry, a década de 60 se mostrava prenúncio de mudanças de paradigmas e de uma juventude descolada. E quatro cabeludos de Liverpool se encaixaram com luva nessa atmosfera.

balada sangrenta com elvis presleyNaquele início de 1960, a Natal Trampolim da Vitória também vivia o clima do pós-guerra. Mas a cidade era demasiada provinciana. Notícias do estrangeiro chegavam com atraso via rádio ou pelas telas do cinema. Tanto que, em Natal, a Jovem Guarda tomou a frente da proclamada beatlemania. Era mais fácil ouvir Roberto e Erasmo do que Paul e John, seja nas poucas estações de rádio ou nos filmes de Roberto.

Enquanto Love Me Do apresentava timidamente os Beatles ao mundo, em 1962, Elvis ainda encantava os natalenses com o filme Balada Sangrenta, no cinema Rio Grande. Ou Pat Boone, com Viagem ao Centro da Terra. Era o que vinha do “além-mar” à terra de Cascudo.

Os Vândalos na Sorveteria Ky Show
Vândalos na sorveteria Ky Show, point na rua João Pessoa, logo após os filmes de Elvis no Rio Grande

Em 1964, os Beatles já haviam tomado o mundo de assalto com A Hard Days Night e o natalense ouvia, no máximo, as versões em português por Renato e Seus Blue Caps quando três adolescentes começaram a difundir as canções do yeah yeah yeah em versões originais em Natal.

Os irmãos Eustachio e Afonso Lima e o amigo Bruno Pereira pertenciam à restrita elite natalense matriculada na pioneira escola de inglês Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos (SCBEU), localizada na Rua Joaquim Manoel, em Petrópolis. E apresentados logo cedo a Elvis e aos Beatles, detinham a fórmula até então inédita na cidade para fazer sucesso: dominar a língua inglesa e gostar e ter contato com discos de rock.

EUSTACHIO E O SONHO ADOLESCENTE

Os três viveram o sonho adolescente ao montar o “conjunto” Os Alucinantes. Seria apenas o ensaio para o que viria a ser um dos maiores grupos de rock daquela década: Os Vândalos.

Professores da SCBEU eram intelectuais de Natal
Professores da SCBEU eram intelectuais de Natal

Já com Marcelo Barreto na bateria, os Vândalos organizaram tours por escolas da cidade para tocar Beatles. Colégio Imaculada Conceição, Marista, Sete de Setembro, Escola Doméstica… Várias receberam os quatro cabeludos natalenses, que ganhavam popularidade e apresentavam a novidade daquelas canções em Natal.

Até então o Rei do Rock por aqui ainda era Sérgio Murilo. Celly e Tony Campello tocavam seus rocks comportadinhos com versões de Neil Sedaka e Paul Anka. E apesar da explosão da beatlemania em 63 com Please, Please Me, não só em Natal, mas no Brasil os Beatles só tomaram conta das rádios mesmo em 1965, quando a Jovem Guarda já estourara.

Os Vândalos no Hotel Reis Magos
Os Vândalos posam defronte ao painel do suntuoso Hotel Reis Magos, coqueluche da época

Mas tínhamos Os Vândalos para antecipar toda essa magia. Natal era vanguarda no rock!

O grupo passou por algumas formações. Na bateria revezaram Marcelo Barreto, Nelson Freire e Roberto Alves. Quando Bruno viajou aos EUA e voltou com o inédito álbum Magical Mystery Tour, dos Beatles, lançado só um ano depois em Natal, entrou Jorginho. Fon também foi aos EUA e Luiz Lima, o Lola, substituiu o irmão. Prentice Bulhões também participou do grupo…

MAS JÁ NÃO CABIAM CANÇÕES DE AMOR

Nessa foto acima, os três irmãos: Eustachio, Fon e Lola tocam em 1973 no emblemático Festival do Sol, no estádio Juvenal Lamartine. Já não eram Os Vândalos, mas um trio de folk ao estilo Crosby Stills & Nash. Como os Beatles, o sonho também acabara em 1970 para o conjunto que marcara época em Natal na segunda metade da década de 60.

O fim dos mágicos anos 60 foi em clima de despedida. A utopia de um novo mundo parecia ter diluído no alvoroço do yeah, yeah, yeah ou no mergulho do LSD. Os Beatles e Yoko Ono sinalizavam o fim, enquanto os EUA fincavam bandeira na lua. A estrada virara viagem!

A experimentação ditava o ritmo. O triunfo do corpo, o terror político, a chance para a paz. Lá fora, Nixon e o Vietnã. No Brasil, Médici e o Doi-Codi. E em Natal, Cortez Pereira e uma primeira dama que possibilitou Natal ingressar na vanguarda cultural naqueles primeiros anos da década lisérgica.

Os Vândalos
Festival do Sol. Da esquerda para direita: Lola, Fon e Eustachio

Toda essa profusão de novas sensações alternativas da contracultura desembocou no experimental Woodstock, em 1969, sob lama, drogas e rock. E quatro anos depois a provinciana Natal entrava na onda com o primeiro festival de música a céu aberto do Brasil.

“Quem liberou o estádio para o Festival do Sol foi Aída Cortez (primeira dama). A ditadura ainda era opressora. Mas por causa da mulher do governador, os policiais, se muito, ficaram do lado de fora do estádio”, lembra Graco Medeiros, que arregimentou o festival histórico. E lá dentro, “apenas” a liberdade.

No pequeno palco estiveram a lendária banda Ave Sangria, hospedados no Hotel Bom Jesus, na Ribeira, além da banda Os Fetos, Marconi Notário, Os Berbes, Zimbazoa, uma inédita performance aliada à música do poeta Carlos Gurgel, chamada A Proposta, Walter Vonberbe, que tocou uma canção tristíssima de George Harrison, entre tantas canjas da plateia que subia ao palco nos intervalos, até o fim apoteótico com o Novos Baianos.

O Festival do Sol registrara também o último encontro musical dos três irmãos vândalos, como despedida folkiana para um tempo de canções de amor já guardadas nos porões da memória.

O CAÇADOR DE BEATLES E ELVIS

Dessa época restaram lembranças, discos e um personagem emblemático. Único integrante onipresente na história d’Os Vândalos, Eustachio Lima certamente é o mais rocker dos integrantes e quem mantém a chama das costeletas de Elvis, a magia beatlemaníaca e a utopia beatnik até os dias de hoje.

Aos 67 anos, Eustachio é hoje apenas um garoto aposentado da Cosern que, como eu, ainda ama os Beatles e os Rolling Stones.

A diferença dele para a maioria dos terráqueos é o jeito desse amar. Durante mais de meio século Eustachio construiu uma das mais variadas e completas coleções de discos de Elvis e dos Beatles do Brasil.

Mas anos atrás uma população de cupins pra lá da sexta geração foi descoberta. Mais de dois mil vinis ficaram inutilizados. E uma fortuna afetiva mantida desde os 14 anos foi ao lixo.

“O cupim levou a história da minha vida, mas sobraram alguns pedaços”, lamenta.

discos e compactos de elvis presley

Esses pedaços são exemplares raríssimos de compactos de Elvis guardados em outra estante. Justo as primeiras aquisições do ex-vândalo.

Elvis foi a primeira paixão de Eustachio. Antes mesmo dos Beatles ou das primeiras e muitas namoradinhas conquistadas como garoto do rock natalense de inglês afiado.

O enceto de tudo foi no SCBEU onde o amigo Gileno Azevedo emprestara um compacto de Elvis, ainda em 1964, e recomendou comprar uns na MM Costa, a única loja de discos de Natal à época, situada à avenida Rio Branco.

Eustachio aos 15 anos dublando Elvis no SCBEU
Eustachio aos 15 anos dublando Elvis no SCBEU

“Em um ano eu tinha absolutamente tudo que o Elvis tinha lançado até então. As menininhas teenagers ficavam malucas para ver as capas dos discos”, recorda.

Eustachio logo passou a dublar o Rei do Rock em shows no VIP Show do ABC Futebol Clube, em Petrópolis, e no evento anual Quermesse da Lagoa, promovido na Lagoa Manoel Felipe, na hoje Cidade da Criança.

Por lá também cantava o amigo Gileno, que o apresentara a Elvis anos antes e mais tarde se tornaria ícone da Jovem Guarda com a dupla Leno e Lilian.

Isso até que o amigo Paulo Rezende trouxe de São Paulo um compacto de I Wanna Hold Your Hand, dos Beatles. “Quem gostava de Elvis, de Pat Boone, era meio intrigado dos Beatles. Mas fui tragado pela música dos caras”.

E nascera aí o embrião para Os Vândalos e pela coleção quase inimaginável de material beatle.

Após o “incêndio” de cupins, sobrou, além dos compactos de Elvis e uns poucos e excelentes vinis, todo o acervo bibliográfico não só de Beatles e Elvis, mas do rock, do blues, dos grandes e médios artistas dos anos 60 e 70.

cartaz original do show dos Beatles no Chrysler ArenaSouvenires dos Beatles e de bandas de rock também pululam em cada cantinho da casa. Broches, posters, miniaturas, esculturas, quadros, ingressos dos tantos shows que o próprio Eustachio compareceu, porta uísque, fotos de idas a Liverpool, ao Dakota onde Lennon morreu…

As raridades começam já na garagem muitas vezes usada para ensaios de rock em outrora. Um cartaz original do show dos Beatles no Chrysler Arena, em 1965 é a peça mais rara – presente de um amigo que compareceu ao show.

Mas é mesmo a bibliografia onde mora a riqueza. Livros raros, livros caros, livros curiosos, livros definitivos não só dos Beatles, mas de cada um dos quatro Beatles. E não só de cada um, mas também dos principais artistas da época. E não só da década de 60, mas da década de 70. E não só de rock, mas de jazz, soul, blues, tropicália…

Talvez 70% dos livros sejam em inglês. Muitos sequer foram traduzidos no Brasil. E quando são, Eustachio compra de novo. É a compulsão do colecionador.

Eustachio Dos que mais gosta está o ‘Hotel California’, de Barnety Hoskyns, um volumoso livro que traz um apanhado biográfico de artistas setentistas, como Johny Mitchell, Eagles, Neil Young e muitos outros.

Ou ainda o documentário ‘Blues Odyssey. A jorney to Music’s Heart & Soul’, um tributo pessoal de Bill Wyman aos músicos que o inspiraram a pegar um baixo e tornar-se um dos membros fundadores da melhor banda de rock do mundo: os Rolling Stones.

Das últimas aquisições está uma edição especial de ‘Here Comes The Sun: The Spititual And Musical Journey of George Harrison’, escrito por Joshua M. Greene, ao módico preço de R$ 800, com quatro CDs, fotos e um sorriso estampado no rosto de Eustachio quando mostra a peça guardada entre outros prediletos em cantinho especial do seu quarto.

E na estante da sala, dezenas sobre Elvis, 13 dos melhores livros sobre Bob Dylan e as mais completas biografias de Crosby, Stills & Nash, do Led Zeppelin, dos Rolling Stones, de livros de música e poesia da geração beatnik, de toda a biografia musical do blueseiro Robert Johnson…

LIVRO MAIS VALIOSO ESTÁ POR VIR

Entre as centenas de livros o mais valioso, raro e caro ainda será editado. Será a biografia sobre Os Vândalos, escrita pelo próprio Eustachio.

O livro está semipronto e imenso. Histórias, relatos, rico acervo de fotos e o recheio do saudosismo presente em cada página.

A ideia é angariar contribuições com os ex-integrantes da banda, a maioria residente em outros estados ou mesmo no exterior, e publicar o livro de forma independente.

“Acho importante para todos resgatar essa história. Não só pra gente, mas para quem vivenciou aquilo tudo ou quer conhecer aqueles anos. É a história de uma época, é a história de Fon, que nos deixou, e não só de uma banda que por cinco anos participou daquele sonho ilusório das canções de amor”.

Hoje, um velho garoto outsider, Eustachio mantém o astral do yeah, yeah, yeah daqueles anos mais alegres, da rebeldia inocente de James Dean. O sorriso bonachão coloca muitas cenas de época para fora. Mas nas entrelinhas, entre uma conversa e outra, o vândalo também cede espaço ao folk mais compenetrado de quem ainda guarda na lembrança um Bob Dylan de respostas aos ventos.

Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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