A Deusa Judia que se exilou no sertão: etno-história de um mito cabalista
Autores: Marcos Silva e Vitória Santos Santana
Editora: Sebo Vermelho Edições
Ano: 2022
Páginas: 144
Outro dia estava ouvindo, em um pod cast de temas judaicos, uma entrevista com a professora Natália Pasternak (que ficou famosa por sua atuação durante a pandemia de Covid-19). A professora, conversando com os apresentadores, questionava o uso de testes de genealogia genética para a comprovação de ancestralidade judaica.
Por sua vez, os apresentadores (um deles inclusive falando direto de uma escola rabínica em Israel) discorriam, em alguns momentos com tom jocoso, quase sarcástico, sobre uma suposta mania de alguns brasileiros em afirmarem a própria condição de judeus em função de uma ligação genealógica com cristãos novos perseguidos pela inquisição. Segundo a equipe do pod cast, muitos dos costumes familiares, citados por aqueles que se identificam como sefaraditas bnei amusin (descendentes de convertidos forçados ao cristianismo pela inquisição ibérica) não seriam, sequer, judaicos.
Provavelmente, a base de afirmações desse tipo se vincula a uma leitura restrita ao judaísmo normativo talmudista (muitas vezes a partir de estudiosos asquenazitas), que, desde o tempo do cativeiro babilônico, parece instruir os limites e fronteiras “oficiais” daquilo que se convencionou a chamar de “religião judaica”.
Confesso que não consegui ouvir a entrevista até o fim, bastante incomodado com um certo grau de miopia cultural, explicitada quando o assunto é falar sobre um Nordeste imaginário, que parece povoar a mente das pessoas que moram bem longe desses sertões.
Uma das explicações para essa dificuldade por parte de alguns membros da comunidade judaica em aceitar a alegação identitária dos chamados “marranos” ou “bnei anussim”; provavelmente tem a ver, não apenas aos preconceitos que cercam esse imaginário nacional sobre o Nordeste ou sobre o próprio judaísmo, mas também a uma incapacidade antropológica de entender, com um pouco mais de sofisticação intelectual, os fenômenos que envolvem o chamado “marranismo” ou mesmo o “criptojudaísmo” de muitas comunidades de descendentes de judeus sefaraditas perseguidos pela inquisição ibérica.
No sentido de lançar luz a esse fenômeno muito importante na constituição da cultura brasileira e da história dos sertões do Nordeste, os textos do professor Marcos Silva (da UFS) são muito interessantes.
Marcos Silva já publicou pela editora do incansável Abimael Silva, em 2019, um excelente ensaio sobre o tema, intitulado “A religião católico-sertaneja: reminiscências do criptocabalismo no Seridó judaico”. Agora, em parceria com a professora Vitória Santos Santana, amplia, nesse novo livro, as hipóteses já apresentadas anteriormente, mostrando como os sinais desse criptocabalismo aparecem no imaginário literário nordestino.
A noção de que o criptojudaísmo ibérico e o marranismo sertanejo são formas sincréticas que envolvem não apenas elementos da cultura católica, mas também da Cabala e da mística judaica sefaradita, se amplia nessa edição com uma leitura das obras de Ariano Suassuna, Leandro Gomes de Barros e outros autores nordestinos.
A tese central do trabalho é que há um componente de criptocabalismo disseminado na cultura sertaneja e que o próprio catolicismo do sertão nordestino é também um catolicismo que carrega consigo a influência do cabalismo místico sefaradita.
Os arquétipos da literatura europeia medieval teriam sido, nesse sentido, sincretizados com elementos de narrativas africanas e indígenas nos sertões do Brasil e a parte europeia dessa mistura, traria também a marca forte da influência dos cristãos novos portugueses e espanhóis.
O livro traz uma análise muito interessante do elemento feminino presente tanto na literatura de cordel, quanto em obras literárias mais canônicas, como no romance “A Pedra do Reino” de Ariano Suassuna. Essa presença, segundo os autores, faria referência à figura da Shekinah, elemento central do cabalismo sefaradita e alçada, no período medieval, como uma “resposta” judaica ao grande crescimento da devoção popular à Nossa Senhora, especialmente a partir do século XII.
A imagem feminina dessa Shekinah arquetípica, presente nos textos dos poetas populares, bem como nas formas orais da tradição sertaneja, apresentaria então um quadruplo aspecto: Uma face de misericórdia (ligada a imagem da Rainha do Meio Dia, a Compadecia, a Misericordiosa mãe de Deus filho, filha de Deus pai e noiva de Deus Espirito Santo); uma face de severidade (presente na imagem da Moça Caetana de Ariano Suassuna); uma outra face ligada à sabedoria feminina (presente na figura da musa incandescente do sertão); e, por fim, mais uma última face, ligada à imagem de Lilith, lida como bruxa, feiticeira. Essa seria a “mulher demônio” presente na figura da Anja Abrasadora.
Há, na leitura de Marcos Silva e Vitória Santana, uma relação bem evidente dessas figuras do feminino na cultura sertaneja com as Sephiroth (as emanações divinas) presentes em textos como o Sepher Bahir, o Sepher Zohar ou o Sepher Ietzirah, cujas as imagens e prescrições, mais do que os textos físicos, teriam sido disseminados nas tradições mágicas de cabala prática, trazidas pelos judeus sefaraditas para nossos sertões a partir da sua diáspora atlântica.
Além dessas conexões bastante interessantes, o livro ainda traz referências importantes a figuras centrais da literatura sefaradita ibérica, como Fernando Rojas (1465 – 1541), autor do texto “A Celestina”, publicado em Toledo no ano de 1499 e ao famoso Antônio José da Silva (1705 – 1739), dramaturgo português perseguido pela inquisição, que proclamava abertamente sua origem cristã nova.
Apesar de mostrar muitos bons caminhos para se entender a presença oculta do judaísmo na formação cultural dos sertões nordestinos, o livro deixa um “gosto de quero mais”, apontando a necessidade de um aprofundamento na pesquisa para que as conexões que ele aponta existir possam ser exploradas em maior profundidade.
Para quem gosta do tema esse é uma boa dica para se extrair novos caminhos a fim de se entender esse aspecto tão pouco compreendido e muitas vezes invisibilizado do grande sincretismo identitário que compõe o Brasil profundo. Um sincretismo que se impõe, mesmo diante de olhares superficiais e preconceituosos de quem não entende muito bem a imensa complexidade e a grande diversidade que construiu o nosso país.
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Prezado Pablo, agradeço a resenha e parabenizo pela percepção acurada da situação bnei anussim.
Marcos Silva.